Anos de chumbo e outros contos, de Chico Buarque
Por Pedro Fernandes
Desde o primeiro conto publicado
nesta antologia é notável o espírito provocador que Chico Buarque tem empunhado
desde Essa gente, uma caricatura assombrosa do Brasil mais recente. Não
que esse interesse estivesse fora do seu horizonte criativo na prosa ficcional
anterior; há certa lucidez para olhar nossa história com mirada descarnada,
apontando o nosso pior desde sempre. Mas é com o romance de 2019 que melhor
vemos a força desse interesse, ao ponto de se confundir o homem que conhecemos,
suas convicções, e o fazer disso um campo de debate sobre os nossos vícios,
doenças e fracassos. O medo que sempre acompanha o leitor mais interessado no
literário é do deslize capaz de maximizar o político mitigando o estético. É sempre
cedo para se fazer quaisquer projeções sobre uma obra em curso, mas com o que
tem saído da pena do escritor, sosseguemos: com a elegância que lhe peculiar, o
escritor distingue bem os dois limites mas não os sobrepõe. Se acontecer isso,
também não será o primeiro a fazê-lo, tampouco desmerecerá a obra até agora construída.
O livro publicado em 2021 não é, como
se tem repetido, a primeira investida de Chico Buarque na prosa curta. Ainda em
julho de 1966, ao lado de Otto Maria Carpeaux e Augusto de Campos, o imberbe
jovem aparecia no Suplemento Cultural do jornal Estado de São Paulo
com um conto que refigurava — muito à maneira do que faria com a peça Gota
D’água (1975, composta em parceria com Paulo Pontes) — um herói da
literatura grega, no caso, o protagonista da Odisseia num caixeiro
viajante. O texto, os contos para criança e a dramaturgia (sem considerar, ao
gosto dos mais puritanos, as letras de música) demonstram que a afeição de
Chico pela atividade do escritor de literatura pode não ter sido fácil ou simples
(como nunca o é) mas não foi obra do acaso, aventura da maturidade, redizendo
sua própria afirmativa quando aparece com seus primeiros romances; ou seja, ao lado
do compositor, sempre persistiu o imaginador e ficcionista. Esclarecem ainda que
o seu trabalho com o conto não começa com a antologia aqui em questão. E a
novidade é apenas ser este o primeiro livro que reúne apenas ficção breve.
Em Anos de chumbo e outros
contos também não se reuniu esses trabalhos anteriores, como “Ulisses”,
este sim, o ponto de estreia de Chico Buarque contista. Agora é uma síntese dos
interesses desenvolvidos por sua obra literária. Além do reencontro com o
escritor interessado em dizer o Brasil de seu tempo, estão aqui: os sujeitos em
formação literária ou em crise de criatividade, como os de Budapeste e
de Essa gente; os dilemas com a história, como os terríveis anos da ditadura
militar, o que nos reporta da novela Fazenda modelo, uma sátira desse
período emulada de A fazenda dos animais, de George Orwell, a Benjamim,
ou Estorvo, o seu primeiro romance agora reapresentado numa edição
comemorativa das suas três décadas na literatura; deste ainda, a melancolia da
meia-idade nascida da relação com o tempo passado que entrega o rememorador num
impasse entre o passado e o presente; ainda se nota as criaturas obsessivas,
que pouco a pouco afundam nas suas obsessões sem se descobrir metamorfoseadas; os
jogos entre o vivido e o encenado ou do vivido como encenado e vice-versa; a revisitação
das singularidades do vivido pela memória.
Também encontramos o que a essa
altura é possível apontar como estilo buarquiano: contar com uma simplicidade,
sem firulas e pretenciosismos, enquanto abre silêncios que se avolumam formando
uma espessa camada de interditos e estes catapultam o texto para muito adiante
do que se conta. Ora, isso é uma deriva interessante do que vemos nas suas
canções e, por vezes, a textualidade se deixa submeter, propositalmente, ao
sabor do conteúdo; implicados forma e argumento, o resultado é sempre um objeto
bem-acabado, complexo na sua simplicidade, o que obriga o leitor a sempre
permanecer grilado no detalhe, no funcionamento da respiração textual sob o
risco de sair com a falsa certeza da leitura, quando ainda está apenas se encontra
na primeira camada da experiência.
Outro detalhe de Anos de chumbo
e outros contos é sua unidade bem conseguida. Livros de contos, de crônicas
e de poemas quase sempre seguem muito proximamente do conceito de reunião. O
escritor compõe textos de variada matéria, variado estilo, durante um
considerável intervalo de tempo, e depois, por uma linha nem sempre visível
organiza uma edição. Ficam à mostra, quando isso acontece, pequenas arestas. Isso
nada tem de importante, nem faz um livro pior, mas, certamente, não o faz
melhor: a irregularidade é muitas vezes sinônima de desleixo, ou pior, de uma
convicção criativa um tanto problemática nos dias de hoje, a do escritor
intuitivo, que se acredita superior ao leitor porque é deste a tarefa de decifrador
da obra. Sobre isso, sempre costumo pensar mais como arrogância. Não há
senhores do discurso e uma obra literária media uma enunciação comunicativa
proposta entre escritor e leitor
A organização deste livro se nota
desde a escolha para os contos colocados nas suas duas extremidades. Situado nesse
simulacro que passamos chamar de período pós-pandemia, o texto de abertura,
“Meu tio”, recupera a atmosfera de Essa gente. É um fotograma de nosso
entorno. O último conto, por sua vez, está no tempo remetido pelo título, “Anos
de chumbo”, e redivive a violência — simbólica e visível — acompanhada deste o
interior de uma família de patriarca militar por uma criança vitimada pela
poliomielite. Nota-se que o primeiro texto funciona como uma chapa de raio-X do
texto de fechamento da antologia: como se do último conto descobríssemos a
razão principal para os tempos que correm no primeiro, como se o contista nos
constatasse o presente como uma matéria, ainda que não determinada,
profundamente enraizada num passado paulatinamente soterrado, silenciado e
ignorado ao ponto de transformar o presente numa massa amorfa que levam alguns
a acreditar em ventos que nunca sopraram de um todo, ou pior, a relativizar
nossos males.
Em “Meu tio” a road novel
se converte num esquema narrativo para acompanhar a saída de um homem de
meia-idade que vai com a sobrinha à praia e depois a arrasta para um motel; o deslocamento
entre a praia, a concessionária, a favela, o motel e a esquina da casa da jovem
é todo contado pelo ponto de vista e em primeira pessoa dessa adolescente impassível
que se faz de natural aceitadora da exploração imposta pela família. Entre a
ida à praia e a permanência no motel, toda narrativa se concentra em relatar a
atitude bonachona, violenta, de senhorio de um mundo mediado pela posição que ora
impõe pelo dinheiro, ora pela força, ora ainda porque a sociedade a aceita por essas
mesmas posições. O trânsito se firma como o espaço ideal para dizer sobre o
Brasil de Essa gente, tomado e administrado pela milícia, demarcando, com
isso, as múltiplas camadas de violência que nos assolam, os disparates de
classe, as corrupções, os abusos, as relações de interesse e as aparências que
acobertam em silêncios de não-vi — as mesmas mazelas que são mapeadas por outro
olho criança-adolescente nas circunstâncias do ambiente familiar de “Anos de
chumbo”.
As histórias abrigadas entre essas
duas fronteiras — como se um itinerário do presente para o passado, sem
linearidades porque o tempo é em zigue-zague — ampliam, modificam as lentes das
narrativas, mas nunca deixam de expor a crueldade do nosso tempo. “Passaporte”
conjuga a farsa para ampliar os tais valores entregues em “Meu tio”. Em “Os
primos campos” a memória da infância é toldada pelo sangue de um assassinato em
chacina. “Cida”, para mais um exemplo, é o fotograma da gente que aquele miliciano
abusador ignora ou tenta na motorizada corrida pelas ruas do Rio de Janeiro arrancar
o único bem que lhe resta. Moradora das ruas do Leblon (outra vez o bairro
nobre que é uma síntese do Brasil), a mulher vive de esmolas e numa condição tão
terrível que a única saída para a dignidade se oferece caindo no poço da
fantasia: envolvida por um extraterrestre que a resgatará para o seu mundo,
desaparece nas valas do esquecimento para abrir lugar à rua para a filha desse
imbróglio que outra vez perfaz a vida da mãe. A atmosfera de Anos de chumbo
e outros contos não é mesmo a das melhores. Não sobram desesperos, mas a
esperança é parca e só se sustenta por algum fio de imaginação, como se o tempo
de justiça — se alguma vez o experimentamos — está cada vez mais encoberto. Quando
não é fantasia é a recolha decisiva do sujeito em seu próprio mundo. E nesse
caso, o movimento desses contos é pendular.
Noutro conto situado agora no
final dos anos 1960, encontramos I. J., um moço obcecado pela obra de Clarice
Lispector. Filho de uma professora de artes plásticas contratada pela escritora
para umas aulas de pintura tão logo se recupera do acidente com cigarro que
quase a deixou sem mão direita, o estudante de Letras consegue o endereço de
Clarice e na tímida ousadia envia-lhe um livro de poemas interessado numa
resposta sobre o trabalho. Os dois, sob interesse dela, iniciam um breve
convívio continuamente marcado pelo silêncio sobre o manuscrito e em crescendo uma
paixão amorosa da parte do jovem aprendiz. “Para Clarice Lispector, com
candura” é um bom exemplo (tal como o conto que dá título a antologia) sobre
como a narrativa buarquiana multiplica os silêncios e faz crescer sua parte
invisível, transformando o texto num iceberg. Nada aqui é puro encontro,
tampouco desencontro, porque mesmo depois da revelação amorosa, o distanciamento
que se abre entre a grande mestra e o efebo toma contornos justificáveis pelo próprio
ofício da arte. O incógnito poeta se modifica até se verter em parte da
nebulosa que se tornou a escritora no mundo dos bites, agora feita de textos a
ela atribuídos ou das imagens vendidas como Clarice mas que são de outras nela
transformadas.
Porque é o ponto respiro — ainda que
na sua atmosfera nada pareça liberta, porque a escritora é indiretamente
a bruxa que enfeitiça o despreparado e ingênuo leitor — este conto pode bem
assumir o melhor do livro ao lado de “O sítio”, em que o convívio entre uma
atriz e um escritor isolados da pandemia numa chácara abre uma complexa relação
em que se misturam o vivido e o encenado. Mas, em “Para Clarice...”, Chico
Buarque consegue construir vigorosamente o convívio que se expande da admiração
incauta, modifica-se por uma relação ambígua, e finda numa obsessão avassaladora
capaz de tolher toda uma vida. À primeira vista, o impasse é amoroso, mas não
tarda e descobrimos que I. J., mesmo depois da recomendação de Clarice para que
ele se dedique à poesia de Carlos Drummond de Andrade, tomado pelo primeiro silêncio
transforma sua impotência para o literário numa impotência para a vida; enclausura-se
do mundo enquanto cobra deste o reconhecimento de mais importante especialista
na obra da autora, algo que nunca chega. Além, é claro, do mise-en-abîme,
com Aprendizagem ou o livro dos prazeres, título que Clarice em
revisão de provas quando se inicia ao convívio com I. J. se nega a assinar como
presente da escritora para o seu leitor mais dileto; é deste romance o tema da
espera amorosa, patente no conto.
O conto oferece outro destino para
o tipo do escritor frustrado — abdicando-se da escrita pela continuidade à sombra
do seu modelo consuma-se sua entrega ao que tão bem se reconhece, mesmo sem
assumir essa posição de um todo. Chico amplia, portanto, o tema do escritor em
crise, visto ser comum deste a persistência com a escrita, para recordar o escritor
fantasma de Budapeste. Essa encenação — talvez seja isso o destino
de I. J. — deixa entrever outro jovem imberbe: o próprio contista que numa
entrevista dada a Clarice Lispector revela que, em garoto, começou com
“versinhos”. Aos 27 anos, o entrevistado recebeu da escritora, o seguinte
bilhete que dizia: “Você tem a coisa mais preciosa que existe: é candura”. Para
nossa sorte, Chico não se tornou no fim de I. J. e acaba de nos oferecer outra
prova disso com este Os anos de chumbo e outros contos.
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