Álbum de testemunhos
Por Sandro Ornellas
Duas palavras se destacam para mim
depois da leitura de Pequeno álbum de silêncios, livro de Monica Menezes e
Sarah Fernandes: silêncio e segredo. Ambas estão em locais-chave: no título e
na epígrafe de Cecília Meireles: “Dizer com claridade o que existe em segredo”.
Sem serem sinônimas, silêncio e segredo se somam para dizer o que é de certo
modo literatura e, dentro da literatura, poesia.
Se a poesia pode ser entendida
como uma margem extrema da literatura, margem que se confunde e mistura com a
música e as artes visuais, faz todo o sentido os poemas virem no livro lado a
lado em importância e diálogo com fotografias. Nem as fotos ilustram os poemas,
nem os poemas são legendas para as fotos. A montagem de ambos ao longo do livro
cria atmosferas que interrompem qualquer tentativa de unidade discursiva ou
narrativa que se queira lhes dar. E ambos, poema e fotografia, são portadores
dos silêncios e segredos do que chamamos poesia, essa interrupção da fala, com
sua continuação por outros meios.
No diálogo entre linguagens desse Pequeno
álbum..., destaca-se as suspensões do tempo da fala nos poemas e do tempo da
vida nas imagens. Essas suspensões como que silenciam a ruidosa e descartável discursividade
informacional do nosso tempo de agressões verbais e nos arremessam num instante
de atmosferas sutis e discretas. São essas atmosferas que justamente por suspenderem
o ruído delineiam como que um testemunho dessa roda-viva de ruído e
descartabilidade em que eu todos vivemos. É a violência cotidiana desse grande
caldo cultural que consumimos dia a dia, nas ruas e nas redes, e o que faz com
que vida e morte tenham se tornado também objetos de cálculo político e
mercadológico.
Daí que fotografias são uma das
formas mais conhecidas de testemunhar tudo isso, embora também poemas o sejam,
como o livro nos faz perceber. Não à toa, fotografias e poemas se tornaram muito
populares nos dias que seguem. As pessoas socorrem-se deles como que para se
dizer ou mostrar algo que escapa aos enquadramentos dos discursos cotidianos. Por
isso, não me refiro ao testemunho em que um sujeito fala autocentrado,
testemunhando a si mesmo. Refiro-me ao testemunho que fala pelo outro – silenciado,
abandonado e morto por uma cultura violenta, travestida de informação, política
e cálculo publicitário. Todo testemunho é esforço em dizer de um choque
inesperado e violento ocorrido na vida, mesmo que essa vida seja a de um outro,
e mesmo que esse outro sejamos nós mesmos – um outro calado, desconhecido, reprimido,
silencioso, secreto.
É, portanto, conectando eu e outro,
testemunha e intestemunhável, que os poemas e fotografias de Mônica Menezes e
Sarah Fernandes nesse livro se lançam na página – não revelando nada, mas como
são: segredos e silêncios. Até porque dizer pelo outro é dizer de um silêncio pesado
e intransponível, um silêncio que circula como uma atmosfera entre o foco e o
fora-de-foco, como nas fotografias do livro que capturam pessoas ligeiramente desfocadas.
Ou entre o dito e o interdito, como em “sonhei com um poema/ e acordei muda”,
intitulado “Poética”. De um lado, o fora de foco visível em algumas fotos implica
a existência de um foco invisível, fora de quadro; de outro lado, a mudez falada
no poema implica a enunciação interditada do sonho. Em ambos, o visível e o enunciado
testemunham a atmosfera de algo ou alguém invisível e interdito. E assim, nesse
jogo entre dizer/ interdizer e ver/ ocultar, o livro se faz contemporâneo de
todos nós. Entre o visível e o invisível, entre dito e interdito, a atmosfera
testemunhal dos silêncios da vida contemporânea, tão próxima e tão distante,
tão ruidosa e tão inclassificável. Parece que mito da informação total nos conduziu
à descrença total, e só uma poesia secreta e silenciosa parece capaz de nos redimir
desse esboroamento da linguagem e da vida.
Algo sempre ronda os sujeitos da
fala nos poemas e do olhar nas fotografias, um mistério e uma incerteza, como
nas fotografias duplas de mãos rugosas e veias pronunciadas por sombras –
índices que expõem as experiências duras da vida diária. E como em “Vídeo-chamada”,
poema no qual lemos que “minha mãe penteou os cabelos/ trocou de blusa/
enfeitou com flores a mesa”, indicando sem expor que a mãe é fonte de quem se
herdou “esse olhar de vales chovidos”. Essa é a atmosfera testemunhal de Pequeno
álbum..., sua implicação coletiva, não apenas pela “Vídeo-chamada” em tempos de
pandemia, mas como essa condição se apresenta pelo microcosmos familiar. A
família: sempre tão rica em traumas guardados e secretas violências vividas
coletivamente.
Toda família é feita de silêncios,
sabemos. E nesse Pequeno álbum... – e não apenas nele – os silêncios giram em
torno principalmente das mulheres. São poemas como “Eleição” – “[...] o que
ecoa mesmo/ no fundo mais fundo da alma/ são as palavras-lâminas da minha mãe/ sussurradas no quarta ao lado“ –, “Centelha” – “minha mãe grávida/ de
vestido azul/ [...] // eu-menina no barranco/ aprendendo intensidades” –, “Dentro”
– “mas dentro / bem dentro de mim habita uma dor/ fina/ ancestral/ e calada”
– e principalmente “Poema para os olhos de minha mãe”, que merece ser citado
por inteiro:
minha avó materna não deixou
fotografias
morreu de parto
numa manhã de inverno
aos trinta e seus anos de idade
em sua própria cama
dizem que era bela
com seus cabelos negros
e o olhar azul profundo
a espiar o tempo
minha avó materna era judia
como sua mãe, a mãe de sua mãe
a mãe da sua mãe de sua mãe
e sua filha
como a filha de sua filha
e a filha da filha de sua filha
dizem que era forte
com seu corpo esguio
atravessando vales
a desafiar a sina
minha avó materna não nos legou
seu sobrenome hebreu
pois o perdera antes mesmo de
nascer
também jamais lhe escutaram
pronunciar a língua
nenhuma carta, nenhuma joia,
nenhum caderno de receitas
nenhuma velha torá no fundo falso
de um baú
nenhuma fotografia
somente a ausência
seu sangue antigo em nossas veias
e uma dor quieta
e infinita
nos olhos ternos de minha mãe
Neste
poema se apresenta sem meias tintas o testemunho ao mesmo tempo familiar e
coletivo de que falo: a ausência silenciosa e sem fotos, sem nome, sem torá,
sem língua, sem carta, sem joia, sem caderno de receitas; e o segredo que essa
ausência silenciosa produz “nos olhos ternos de minha mãe”. Ausência-presença,
pois sua atmosfera a anuncia a todo momento pelo livro nas fotografias de um
vestido sobre a cerca, de uma mulher desfocada do balanço em meio à mata e
outra desfocada por um enquadramento dentro do quadro. É dessa ausência que
esse livro se faz presente, o que me leva a pensar também nas mãos envelhecidas,
de veias salientes, como mãos de mulheres. Como as que escreveram esses textos
e fotografaram essas imagens feito testemunhos.
Assim
como essas e outras fotos dizem muito sem mostrar tudo, tal como nos detalhes
das asas de uma mariposa (ou libélula?), vários poemas mostram muito sem dizer
tudo, reforçando o testemunho dessa ausência-presença que é do segredo e do
silêncio. Em “Sobre o que dói” se lê: “o menino sírio encontrado morto na praia
/ o olhar da moça vendendo paçoca no sinal / a loucura do meu irmão / a
cicatriz atravessando meu ventre”; em “Do lugar”, se lê: “havia o rio / os
morros / a pracinha / a igreja encravada no monte / a sorveteria da esquina / a
casa da tia marita”. Muitos poemas falam do olhar, talvez porque a crueza
icônica da imagem fotográfica, quando descrita pelas palavras, perca muito da
sua evidência e produza algum efeito de segredo, um “Sinal” incerto: “seis
horas da tarde / a moça atrás do vidro teme o perigo / seis horas da tarde / a
criança através do vidro é o perigo / seis horas da tarde / ave maria ave maria
ave maria”. No subentendido “sinal” da cruz, a sugestão de um segredo que é signo,
palavra e poesia do poema. Testemunha-se sempre o silêncio de alguma dor inominada.
Leiamos “Artifício”:
abri um buraco no meu ventre
escavei fundo
com minhas próprias unhas
todos os dias
cinzelo suas formas
faço da dor
minha única arte
há uma rosa escarlate
sob meu vestido
e dentro do meu silêncio
mora um grito
Os poemas e as fotografias de Pequeno
álbum de silêncios acabam por ser artifícios para testemunhar aquilo que é
intestemunhável e necessita desses restos possíveis de palavras e imagens. Esse
é o grande e perverso truque dos nossos tempos: normalizar no cotidiano pessoal
experiências brutais e incompartilháveis, que calam fundo. E só pelo artifício
da arte, a atmosfera desse terror cotidiano da contemporaneidade se faz
presente e coletiva. O que também explica de certo modo este livro ser a quatro
mãos. Ou mesmo muitas outras – (in)visíveis e (inter)ditas.
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