A obsessão dos olhos: Buñuel o voyeur
Por Glafira Rocha
Todo se hace en silencio
como se hace la luz dentro del
ojo.
Jaime Sabines
Frame de Um cão andaluz, filme de Luis Buñuel. |
Um olho no buraco da fechadura
olha, observa, espia. Um marido ciumento do outro lado e uma agulha comprida e
afiada que é inserida com a intenção de perfurar esse olho que irrompe no
universo dos amantes. O olho se esvazia, sangra, o espião grita: perdeu um de
seus valores mais preciosos. Na imaginação paranoica de um homem aprisionado
pelo ciúme, acontece essa história que não tem relação com a realidade; ninguém
vê, não há ninguém atrás da porta, embora sua resposta corresponda à sua
fantasia, pois um cérebro não distingue entre o que realmente está acontecendo
e o que a ilusão lhe indica. Os olhos são a sua obsessão, a visão do voyeur
que participa do evento como ausente e presente ao mesmo tempo. O olhar que
realiza um jogo de espelhos: o autor que imagina, o ator que representa, o
espectador em sua poltrona, que também invade aquele caleidoscópio elucubrado
por uma mente, a de Luis Buñuel.
Em Ele (1953) entramos na
doença da personagem: cego de ciúmes, ele vê o que não existe e então a
história nos envolve no marasmo do não saber o que é verdadeiro e o que é
falso. O olhar de cumplicidade do espectador divide-se entre a pobre mulher
maltratada e o triste marido traído. Buñuel deixa a suspeita: foi o ciúme que
deu origem à alucinação ou a infidelidade alimentou uma patologia?
Agora o espectador se encolhe na
poltrona; não pode acreditar no que vê, continua a observar, tem calafrios,
quer gritar mas não se atreve, é impossível cortar um olho numa panorâmica, não
há palavras, a imagem é silenciosa e em 1929 a intenção de Buñuel entrou em
vigor: causar um choque, um choque traumático com o qual os pensamentos são
cancelados e só resta o registro do medo. Pode-se criar uma imagem que convida
à introspecção, à análise simbólica, a uma interpretação metafórica, mas Buñuel
apenas diz: “Coloquei a imagem porque tinha surgido num sonho e sabia e sabia
que causaria repulsa nas pessoas”. Mais simples do que um piscar de olhos.
As crianças podem ser perversas,
cheias da mesma falta de sinceridade de qualquer adulto: a inocência se perde
na miséria. Um cego violenta uma garota no meio de uma chuva de pedras, o olho
de uma galinha encontra essa visão morta. Buñuel busca há mais de seis meses,
perambula por bairros que ninguém olha, vasculha reportagens de jornal e surge Os
esquecidos (1950). Um olhar diferente, que mostra o outro lado de uma
grande cidade. A crítica dividiu-se, o espectador indignou-se e ao mesmo tempo
se surpreendeu. Buñuel mostra em câmara lenta: “porque dá uma dimensão
inesperada até ao gesto mais trivial, faz-nos ver detalhes que não percebemos à
velocidade normal”.
Os olhos são um detalhe e ao mesmo
tempo o conteúdo completo dentro de uma estética, a buñueliana. O olhar é uma
constante, é a história não contada que oferece mais elementos do que qualquer
diálogo. Olhos grandes, profundos e protuberantes que enxergam além do que é.
Um voyeur que curiosamente não gostava de ser visto e se escondia atrás
de seus sonhos e histórias nas quais, segundo ele, não era mostrado a sua.
Tomás Pérez Turrent afirma: “Buñuel proíbe que alguém tente olhar para o seu
interior”. José de la Colina menciona: “Buñuel relutava em explicar seus filmes
e, embora negasse categoricamente que não tivessem sentido, não afirmava nem
negava nossas interpretações”.
Uma visão com mudança de
perspectiva e agora o diabo é uma mulher, uma beldade que mostra os seios para
tentar o santo. Espiritualismo e realismo. Simão do deserto (1964)
participa da tentação, do encontro com a renúncia ou entrega a qualquer desejo.
O anacoreta que pretende ser tocado está em sua coluna rígida, como as
personagens de que Buñuel gostava: “personagens com ideias fixas”, com o olho
posto na objetiva e sem retirá-lo até que apareça a imagem perfeita. Como em Nazarín
(1958), Viridiana (1961) e Ensaio de um crime (1955), temos
personagens que, embora nítidos, movem seu registro para aceitar uma realidade
que os toca. Assim, seu criador cinematográfico, diante da censura, melhora uma
pequena mudança, porque o objetivo é maior: acompanhar o olhar de um público
que precisa ver além do melodrama, do riso ou da reflexão. Luis Buñuel suscita
uma explosão de congruência: o onírico se mistura com uma crueza do
compreensível para golpear a lógica do psiquismo: “não psicoanaliso meus filmes”,
diz o autor que um psicanalista qualificou de não-psicanalizável.
Diante de uma imagem carregada de
simbolismo, há algo mais profundo no olhar cinematográfico de Buñuel: entre
sonhos, insetos, galinhas, sapatos e roupas femininas, revelam-se os detalhes
insignificantes e esquecidos. O objetivo parece transformar o espectador em
outra personagem do filme, de modo que eles enfrentem a sua própria história a
partir da qual o cineasta, com o seu olhar, sacode o registro do quotidiano. Há
então uma paralisia diante do incompreensível: essa nova visão surge com
recorrência em nossa vida cotidiana, pois o filme se apresenta na memória, se
confunde com a própria realidade, e sua lógica fragmentada adquire clareza. O
objetivo é cumprido quando a história é impressa, fixada, para levá-la conosco
para todos os lugares.
Novamente o olho se aproxima do
buraco da fechadura para ver sem ser notado, o olho se aproxima para entrar no
universo buñueliano, mas não encontra nada, há censura, o olho pisca para
umedecer o globo ocular irritado, quase renuncia à sua tarefa, até se assustar
quando percebe que está sendo observado: outro olho de outra fechadura está lá
vendo que eles procuram vê-lo. É Buñuel entrando numa rede de olhares, e nos
quais o dele diz: “Gosto de estar sozinho com a minha alma e devanear, imaginar
o imaginável e o inimaginável”.
* Este texto é a tradução livre de “La obsesión
de los ojos: Buñuel el voyeur”, publicado aqui, em Confabulario.
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