A literatura como reparação
Por Javier Munguía
Quando, em 13 de julho de 1942,
foi capturada pelos agentes de polícia franceses que a entregariam às forças
nazistas, Irène Némirovsky abandonava anos de perseguição. Já em 1936 ela
escreveu a seu editor, Albin Michael, sem dar maiores detalhes para não se
comprometer, que a situação havia se tornado muito difícil para ela. Se na
França, onde tinha escolhido viver, era comum que judeus fossem submetidos a
linchamentos sociais, a situação só se agravou com o início da Segunda Guerra
Mundial, primeiro, e depois, numa França ocupada pelos alemães, com a
promulgação do leis antissemitas, que deixaram o marido de Irène, um banqueiro,
incapaz de trabalhar, e a escritora, sem o direito de publicar. Terá que fazer
isso sob um pseudônimo até sua morte.
Exilada de sua terra natal, a
Ucrânia, desde os 15 anos de idade, Irène se recusou a recuperar sua condição
de fugitiva quando um agente sugeriu que ela fugisse para evitar os campos de
concentração. Foi presa num campo francês, em Pithiviers, e depois em
Auschwitz, onde seria assassinada, aos 39 anos, a 17 de agosto de 1942. Os documentados
esforços de seus amigos, seu editor e seu marido para salvá-la de nada
adiantaram. Este último seria capturado e morto alguns meses depois, e suas
filhas, perseguidas, conseguiram se salvar milagrosamente de um destino
terrível.
A vida de Irène foi pesada desde
sempre: amava o pai, mas ele, um banqueiro rico que viciado em jogatina, não
cuidava dela, ocupava todo tempo atarefado com seu trabalho, suas viagens e seu
vício. A mãe, uma vaidosa e frívola, obcecada pela juventude perdida e habitual
caçadora de amantes, também nunca lhe demonstrou afeto ou simpatia. Além do
carinho de sua governanta francesa, a leitura e escrita eram para Irène o
melhor refúgio diante dos rudes ataques de seu ambiente.
Fugindo dos bolcheviques, que
colocaram um preço pela cabeça de seu pai, Irène chegou à França com sua
família em 1919, após uma breve estadia na Finlândia e na Suécia. Falava várias
línguas, mas escolheria como língua literária a de seu país de adoção, aprendida
desde pequena. Na França, a vida deu-lhe alguma trégua: enquanto estudava
Literatura na Sorbonne, levou uma existência leve e divertida, cheia de danças
e flertes regulares, até se casar com Michel Epstein. No prólogo de um dos
livros de Irène, sua filha Élisabeth Gille se pergunta quem entre seus colegas
de faculdade teria suspeitado que essa jovenzinha mimada e rica escrevia “aqueles
textos sombrios, violentos e até cínicos” a voltar daquelas noitadas. A verdade
é que o gênio de Némirovsky foi precoce: seu olhar penetrante sobre o
temperamento humano e seu domínio da narração já podem ser vistos desde os seus
primeiros textos.
Contemporânea dos grandes
renovadores do romance (Joyce, Proust, Woolf, Kafka, Faulkner), Irène não
parece ter sido tentada pelo chamado da novidade: sua ficção é toda de corte
clássico, o que não implica qualquer limitação da sua arte. A experimentação
literária pode ser louvável e nos deixou um bom grupo de obras-primas, mas
nunca deve ser tomada como uma obrigação ou um mérito em si mesma. Da mesma
forma que o romance do século XIX não é menos importante que o do século XX, a
obra da autora de Suíte francesa também não é menor quando comparada à
de seus contemporâneos mais inovadores. Graças à descoberta e publicação deste
livro póstumo em 2004, o conjunto de narrativas de Némirovsky ocupa cada vez
mais um lugar merecido entre os maiores feitos no campo da ficção.
Despidos de restrições
formalistas, os livros da escritora ucraniana parecem ir direto à medula da
experiência humana por meio de uma sobriedade elegante, um instinto acurado
para descartar o secundário e narrar o essencial e um olhar que penetra nas
entranhas de suas personagens com um fio de bisturi. Em sua própria vida, tão
rica em contratempos, Irène encontrou a matéria-prima para inventar suas
histórias. Embora não se limite à experiência de sua autora, o trabalho de
Némirovsky frequentemente invade sua biografia de diferentes perspectivas como para
se vingar dela, transmutando-a em experiências artísticas intensas e
iluminadoras.
O primeiro romance de Némirovsky amplamente
reconhecido, David Golder (1929), tem como protagonista um alter ego de
seu pai. Golder, um banqueiro judeu ucraniano exilado na França, perde a saúde,
a fortuna, a esposa e o único ser que ama no mundo: sua filha, uma jovem
superficial e caprichosa. Com o objetivo de recuperá-la, Golder faz arriscadas
e patéticas tentativas de restabelecer seu patrimônio que apontam para uma
derrota retumbante e uma reavaliação tardia de sua vida. Sem ênfase moralista,
Némirovsky faz uma crítica severa a um mundo que ela conhecia muito bem: aquele
em que toda afeição está subordinada ao dinheiro e à posição social. Como a exímia
artista que era, mesmo aos 26 anos, Irène consegue fazer com que o objeto de
sua crítica não se transforme em uma caricatura, mas sim em um ser de contornos
diversos, que desperta não só a desaprovação do leitor, mas também sua piedade
e até mesmo sua empatia.
Figura secundária em David
Golder, a mãe da autora é modelo central em três romances magistrais: O baile
(1930), O vinho da solidão (1935) e Jezabel (1936). O primeiro é
um romance de iniciação em que uma menina de 14 anos toma conhecimento e se
vinga de um mundo adulto miserável e degradado, cuja figura principal é seu
progenitor; o segundo relata a hostilidade e rivalidade sentimental entre uma
mãe obcecada com a juventude perdida e uma filha que envelheceu sua raiva pela
indiferença materna; a terceira é uma história de intriga em que uma mulher
madura acusada de assassinar seu jovem amante revela ao leitor uma existência
marcada pela incapacidade de aceitar sua decadência física. Com todo seu
talento e toda sua raiva, a autora entrega um tríptico que não tem nada de explosivo:
é produto de experiências bem assimiladas que encontram seus melhores aliados
na precisão e na progressão dramática vividamente compartilhadas.
Denominado inicialmente As etapas
do levante e publicado em folhetim em 1939, Os senhor das almas
(2005) mostra uma autora cujos dardos não se limitam mais à esfera familiar,
mas a uma sociedade francesa que nunca acabou por admiti-la entre os seus —
apesar do seu talento e do reconhecimento que seus livros logo mereciam — e que
acabaria entregando-a àqueles que a matariam. Vindo da Crimeia, o médico judeu
Dario Asfar chega a uma França que o rejeita por causa de sua origem. Marcado
pela miséria, Dario não vê escolha a não ser se tornar um charlatão disfarçado
de psicólogo que se aproveita da inquietação e das deficiências emocionais da
burguesia para extorqui-la. Embora o protagonista inicialmente se perceba acima
desse mundo fraco e corrupto que busca dominar, à medida que sobe na escala
social, se parecerá cada vez mais com suas vítimas. Sem estardalhaço, com três
ou quatro palavras, o final dá conta do clímax de degradação alcançado pelo
protagonista na adoção total do modo de vida de seus “pacientes”.
De acordo com já falecida
Élisabeth Gille, filha de Némirovsky, Myriam Anissimovla, autora do prólogo de Suíte
francesa e Mario Vargas Llosa, que reafirma Anissimovla, Irène tornou seus
os preconceitos antissemitas, sendo judia, em suas ficções. Considero esta
observação um tanto inapropriada. A escritora mesma esclareceu numa entrevista
de 1935 que em seus livros descrevis não os hebreus em sua totalidade, mas os “judeus
cosmopolitas para os quais o amor ao dinheiro substituiu qualquer outro
sentimento”. O fato de a autora tocar profunda e impiedosamente o interior de personagens
judeus exilados na França — seria o caso de seus pais e dela mesma — não deveria
ser tomado como uma forma de rejeição aos judeus como povo. Como Olivier
Philipponnat e Patrick Lienhardt, biógrafos do autor, sugerem, é absurdo acusar
de antissemita quem “sempre evitou generalizações e apenas esboçou seres
singulares”.
Quando o entreguismo francês a
capturou, Irène trabalhava naquele que seria seu romance mais longo e
ambicioso. Ela conseguiu terminar duas partes de cinco. Suíte francesa
só veria luz em 2004, quando sua filha Denise Epstein encontrou o manuscrito numa
mala com os papéis de sua mãe. Escrito durante o conflito que engoliria a
autora antes do fim, o livro resgatou sua obra do silêncio ao que havia sido
relegada. A primeira parte narra o êxodo dos parisienses durante o ataque
alemão; a segunda ocorre durante a ocupação. Longe de fazer uma lista de
algozes e vítimas, Némirovsky recria, além dos horrores da guerra, toda a
substância humana que surge no estado de emergência: as mesquinharias, a falsa
caridade, a indiferença, a violência inesperada e vaidade dos próprios
deslocados, sem esquecer, ainda que escassos, a dignidade, o heroísmo e a
consciência de pertencer a uma humanidade feroz, “uma manada de animais
selvagens e covardes” segundo uma personagem.
A ideia de que a Suíte francesa
é, sem dúvida, o livro maior da autora, não tão verdadeira assim. Embora seja
um afresco extraordinário sobre uma França derrotada e despida, exposta aos
olhares, essas narrativas não são inferiores, praticamente a todo o resto de
sua produção conhecida, em que Némirovsky se limita a nos intima a mergulhar profundamente
com dois ou três personagens; é até provável que nesse âmbito seu talento tenha
alcançado um nível mais alto de percepção.
Em seus romances, Irène Némirovsky
faz um ajuste de contas incontestável com sua família e com o mundo que a
tocou, mas não um mundo mesquinho. Trata-se de uma vingança luminosa que troca
solidão e a dor pela literatura da melhor linhagem: aquela que investiga o
claro-escuro do ser para compreendê-lo melhor. A estupidez nazista não permitiu
que ela contasse sobre o pânico dos campos de concentração. Certamente, com a
pena de mestra contadora de histórias e sua visão mais aguda, ela teria
transfigurado essa infâmia em arte, teria se vingado transformando-a em peças
narrativas de terrível e delicada beleza.
* Este texto é a tradução livre de “La
escritura como revancha”, publicado aqui em Confabulario.
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