Teatro, de Bernardo Carvalho

Por Pedro Fernandes

Bernardo Carvalho. Foto: Edilson Dantas


O pensamento e toda a formação de nossa civilização ocidental apresentam-se articulados sob o signo de uma dicotomia que dispensa as continuidades entre as formas pela cisão. Em parte, isso nos serviu compreendermos sobre os organismos e seus sistemas, do mais simples ao mais complexo, e disso engendrarmos outros modelos que estabelecem alguma ordem no funcionamento da coletividade. Por outro lado, a dissociação está na base das crises que enfrentamos enquanto sistema e, desde o advento da psicanálise, como indivíduos. A essa altura, sabemos — se não, ao menos desconfiamos — que a dicotomia distintiva é ela própria a crise, o que ao longo da nossa história cobrimos com remendos capazes de disfarçar suas cisuras, não sem uma dose de força e barbárie.
 
Desde o começo da sua literatura, Bernardo Carvalho parece consciente disso e poderíamos designar como o seu principal interesse os impasses estabelecidos no conflito entre polos que se ignoram, mas muitas vezes, caem no mesmo destino. Nesses embates — e aqui está uma qualidade da sua obra — não se coloca a serviço de constituir espaço de observação ou de contestação. Seu princípio tem sido, uma vez situado no claro-escuro da zona neutra — como é esperado de um bom escritor —, o da problematização a partir de uma investigação muito atenta como se buscasse aferir pela diferença como vigoram esses impasses, sem se descuidar, muitas vezes, de oferecer algumas rotas fora do comum.
 
É verdade que isso só se torna mais claro com a leitura de uma parte considerável de sua obra, mas se mostrava de alguma maneira visível desde os primeiros exercícios criativos, agora que podemos — ao olhar de maneira particular, isto é, considerando especificamente um livro —colocá-los em diálogo com os livros mais recentes. Ainda que possamos admitir cada romance do escritor carioca como um ensaio ou uma escrita que se ensaia sobre algum dos muitos impasses estabelecidos neste âmbito das dicotomias incisivas, é notável, como sempre, alguma linha de força, esta talvez, mais produto do leitor e menos do escritor.
 
Ao preferir este neutro — lugar essencial da escrita de criação — a obra de Bernardo Carvalho oferece não apenas o olhar do não-visto como antecipa os rumos para os quais os tais impasses do platonismo nos empurra. Teatro, seu terceiro romance, publicado em 1998 é um bom exemplo. Podemos ler este livro como uma caixa surpresa — dessas que mesmo pequena abriga em seu interior um conteúdo variado que estoura nas nossas mãos quando abrimos, mesmo obedecendo todos os cuidados. Em parte, isso se deve — impressão nossa — à ansiedade de um escritor entusiasmado por se destacar na cena literária; bem sabemos, essa vaidade é universal e se mostra mesmo quando, por todas as tentativas, acreditamos que a escondemos do mundo.
 
Talvez, a primeira coisa fundamental de se pensar acerca deste livro é como Teatro, ao rivalizar com a forma em que se apresenta, abre uma série de implicações. O título aponta para um gênero literário que, embora recupere algo do seu tratamento essencial, não é o que lemos, afinal, é este um romance, como se inscreve em modo de subtítulo — Teatro / Romance. Agora, uma vez atravessarmos o conteúdo do romance não deixamos de perguntar se este é mesmo isso, sobretudo por duas razões: a estrutura da narrativa, a invisibilidade da tessitura de um enredo e toda força cenográfica que recupera não a dicção do teatro mas a da dramaturgia cinematográfica.
 
O romance é formado por duas partes — como se dois atos ainda que o segundo funcione mais como uma leitura ora explicativa ora complicativa do narrador-escritor, essa figura também solapada por múltiplas crises (de pertencimento, de lugar, de identidade, de voz, de linguagem) que são sintetizadas no seu desvio mental. Numa das primeiras críticas sobre o livro, Luiz Costa Lima, chamava atenção para como essa solução, embora integrada a um princípio de ordenação da narrativa, derruba a ambiguidade, o que seria o essencial nesse romance. E é verdade. A saída, além de tudo, é simplória — tal como percorrer um longo itinerário de elucubrações para descobrir no final que estávamos num sonho. Teatro termina quando chegamos ao fim do primeiro ato que se intitula “Os sãos”; este poderia até alcançar um segundo estrato, mas não desconcertado making of. O restante é a tentativa fracassada de explicar o que não carece explicação.
 
Dos aspectos cinematográficos — visíveis na objetividade organizadora dos acontecimentos, nos cortes, na variação entre os pequenos e grandes planos ou mesmo na abertura para a ação aventuresca que aqui destoa do fechamento do indivíduo ante o acontecimento e a necessidade de contar — o que é problematizado pelo romancista, incluindo como tema da narrativa, é a encenação. Todo ato narrativo nas duas partes do romance se constitui em função de assumir-se outro. Por isso, começamos a vislumbrar melhor o que se afirma mesmo como estratégia narrativa desde quando o narrador se assume como alguém que precisou se desfazer de quem era para contar o que precisa contar, compondo um jogo pelo avesso o vivido por seus pais; estes deixaram o país natal sem quaisquer perspectivas em busca de outra vida na pátria da qual o filho agora se fez foragido.
 
Ao se assumir outro para contar o que não pode deixar de ser contado, o narrador instaura toda ambiguidade mencionada por Luiz Costa Lima: se alcançamos alguma certeza sobre o envolvimento do relator nos episódios centrais do romance, uma circunstância impensável mas que tem a ver com a própria atividade de narrar, saímos de “Os sãos” presos pela condição essencial da narrativa, que poderíamos chamar de e-e — o narrador é e não é quem diz ser, ou, o acontecido foi e não foi como diz. Os possíveis esclarecimentos se oferecem em “O meu nome”, o ato-comentário da primeira parte, ainda que a paranoia de antes se dissolva abruptamente em alucinação. Não é o caso de acreditarmos que neste segundo ato possamos encontrar o preenchimento das lacunas do primeiro; a noção de espelhamento do texto funciona até certo ponto, diríamos que é limitada apenas em recuperar algumas evidências, como a da identidade do narrador que deixa a região da ambiguidade para a do entrevisto, visto que o contado se afirma enquanto alucinação.



A chave de leitura da encenação se justifica por todos esses indícios levantados até agora — o título e a posição do narrador — e se confirma pelo excerto de Édipo rei utilizado como epígrafe no primeiro relato. A presença outra vez da expressão teatral cumpre ainda outro papel nessa leitura. Ela oferece uma lógica para o conteúdo narrativo. Trata-se de uma passagem que constitui o nó dramático na tragédia de Sófocles, uma fala de Édipo reiterando a necessidade de, em nome da recuperação da memória de Laio na descoberta e punição do seu assassino, restabelecimento da ordem em Tebas. Sabemos que quem assim se pronuncia é o autor do ato que condena. Isto é, o mal não está algures, mas no interior da própria ordem.
 
Essa ideia — da desordem como princípio da ordem, se assim associarmos a continuidade entre bem e mal tal como evidenciada no romance (“Precisamos da ideia de que o mal está entre nós, e não no exterior, para que possamos nos defender de nós mesmos”) — é uma das muitas derivações oferecidas a partir do impasse das dicotomias de cisão. Alguém poderá designar, recorrendo ao estrato do mito, que Teatro se assenta no tema do duplo e não estará errado: eu e outro; sãos e loucos; ricos e pobres; pessoas de convívio social e marginais; o bem e o mal; a verdade e a mentira; o fato e a invenção; e uma variada relação entre pares de personagens, sendo as mais visíveis, a dos irmãos N. e V., o narrador e Ana C., o narrador e os pais, o narrador e o texto; e outras interferências textuais, como as já citadas do teatro e do cinema; ou recorrências de outras situações da história, da filosofia e da ideologia.
 
O caso-limite de Teatro se confirma por um conjunto de atentados com cartas químicas enviadas por um remetente anônimo que depois de cumprida a missão oferece outra carta justificando sua atitude como uma maneira de levar a população a se reconhecer parte de um sistema de explorações sustentado por um aparelho de poder que a determina sem que ela própria saiba. É fora desses acontecimentos que encontramos o narrador de “Os sãos”, mas são essas as circunstâncias que implicaram ao ponto de se assumir um outro, o que agora quer contar a verdade por trás dos atentados, visto que, a ordem social, tantos anos depois, na ausência de um culpado, conseguiu encontrar seu bode expiatório.
 
O pressuposto para o romance, vê-se, é excepcional. Bernardo Carvalho oferece um debate que, embora fosse caro no berço do Ocidente, permanecia intocado entre nós, mesmo com o sempre alarmante número de violência jogado na nossa cara inerte diariamente. Quer dizer, o tema do terrorismo em Teatro encena uma discussão nunca desenvolvida seriamente no Brasil: a quem interessa a banalidade do mal e como o Estado tem se mobilizado para desfazê-la. Uma resposta é oferecida pelo próprio romance. É no impasse entre bem e mal que se instaura e opera a paranoia, o lugar para o qual vimos continuamente empurrados, apostando sempre num inimigo exterior e contra o qual é preciso unir forças de combate: o colonizador europeu, o neoliberalismo estadunidense, o comunismo russo-chinês etc. Quando os responsáveis por nossa miséria estão dentro da nossa ordem sã.
 
No impasse entre os mundos da ficção e da história, em certo momento o que assombra o narrador de Teatro é como o que escreve se realiza pontualmente. Sintoma de sua condição instaurada desde quando numa consulta irrisória alguém lê sua mão e diz “que eu me tornaria um terrorista ou coisa que o valha, entraria para a clandestinidade, enfim, que desapareceria, pelo menos da maneira como tinha vivido até então, e isso seria lá pelos cinquenta ou sessenta”. O paranoico se apega ao pouco verossímil e provável, transforma o acidente em acontecimento desfavorável e só consegue girar no seu entorno continuamente, ampliando-o até o limite do delírio; tal instinto pode se manifestar individual e coletivamente, sobretudo quando o individual se percebe coletivamente.
 
Sem quaisquer profecias — a literatura não é isso, mas quando o escritor está situado na posição da suspeita, o ponto neutro como dissemos — Teatro antecipou duas coisas: cinco anos depois da sua publicação, os Estados Unidos vivenciaram semanas após os Atentados do 11 de Setembro uma sequência de ataques com armas químicas. Na ocasião, o país estava no delírio de combater os terroristas islâmicos; para o FBI, um solitário estadunidense estava por trás dos episódios, mas sem chegar a conclusões as investigações foram arquivadas. Leia o romance e encontrará, entre os enredos possíveis, exatamente este que, repetimos, só se processará cinco anos depois do aparecimento de Teatro.
 
A segunda coisa — e essa é mais importante que a primeira, ainda que o sugestivo seduza mais porque encontra nosso próprio e comum nervo da paranoia — é como o romance de Bernardo Carvalho esclarece o Brasil de meados da segunda década do século XXI. No nosso caso, porque os ventos de um sistema que se sustenta na crise estavam mais serenos, começamos a inculcar de todos os lados uma conspiração de mando e poder que nos arrastou para uma situação que se ampara diariamente na arguição da paranoia. Aqui, o romance erra. Ou não. Mas isso é um romance, não um manual de instruções. Na narrativa, a paranoia é condena e saída da dicotomia de cisão bem / mal. O que não é nosso caso. Ou será?

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