Stanisław Lem, o homem que fez o que pode
Por Andrea Calamari
Stanisław Lem. Foto: Aleksander Jałosiński |
“Cago-me trabalhando como escritor
com a mesma bravura de um peido.”
Isso é o que Stanisław Lem
escreveu. Não com essas palavras, é claro, ele escreveu em polonês. O que mais
me interessa em Lem é a figura de um escritor de vanguarda que fez toda a sua
obra à margem da literatura mundial e por isso me parece um gesto de justiça
poética abordá-lo através de uma biografia escrita por um polonês e em uma
tradução feita também nas margens.
Quando escreveu essa linha em uma
carta a um amigo, ele já era o escritor mais conhecido da República Popular da
Polônia, Stálin já estava morto e estava perto a alguns anos dos cinquenta.
Também os problemas financeiros de Lem, que o acompanharam desde o início da
guerra. Agora pagam adiantado: tem três contratos assinados para três livros
que ainda não começou a escrever e nem tem ideia. Quando os terminar e
publicar, um deles será Solaris, a sua obra mais reconhecida e levada
três vezes ao cinema.
Para Stanislaw Lem, alguns dias,
na maioria dos dias, nada faz sentido.
Estamos sentados sobre um barril
de pólvora enriquecido com hidrogênio, dizia, e no barril há um pavio que está
queimando há anos, às vezes parece apagar, mas ainda está lá. O barril, o
hidrogênio e o pavio são o comunismo, o sistema que retém as provas de cada um
de seus livros e espia palavra por palavra por longos meses. “O livro ainda
está na censura”, diz nesses casos, porque de coisas assim também são feitos os
totalitarismos: costume.
Lem sabe que o animal humano é tão
elástico que se acostuma com qualquer coisa — com a pólvora, com o fósforo, com
a arbitrariedade, com o controle — mas nunca deixa de ver o absurdo: “na minha
profissão isso faz de alguém um idiota”.
Já se passaram cem anos desde o
nascimento de Stanisław Lem, o escritor idiota que escreveu sobre o que podia
mais do que queria, que o fez a partir das entranhas do stalinismo e depois num
eterno degelo que nunca chegou a descongelar nada.
Ele nasceu em Lwów, uma cidade que
era polonesa e deixou de ser depois da guerra. Quando Stanisław tinha dezoito
anos, sua família não tinha dificuldades financeiras e parecia-lhe que era a
melhor cidade para se viver. Até que um dia os nazistas chegaram. Depois disso,
a vida de Lem se ajustou aos limites de um mundo cada vez mais fechado. Deixaram
a casa e a vida que tinham na esperança de recuperá-la depois da guerra, mas
isso depois nunca mais veio do jeito que imaginavam. Porque depois dos nazistas
vieram os stalinistas, sua cidade foi destruída e eles foram com o que
encontraram para Cracóvia. A Polônia não é mais o que era, agora é a República
Popular da Polônia e está nas mãos de Stálin.
Num contexto em que ninguém
poderia escolher nada, Lem escolherá ser escritor, como pode e com o que tem em
mãos, como o narrador com quem começa “A verdade”:
“Estou sentado num quarto fechado,
com a porta sem maçaneta e a janela que também não pode ser aberta. O vidro é
inquebrável. Já tentei. Não porque eu quisesse fugir, ou por causa da raiva, eu
só queria ver se conseguia. Escrevo em uma mesa de nogueira. Disponho de papel
suficiente. Escrevo devagar. Escrevo mesmo que ninguém leia. Não quero ficar
sozinho, mas não consigo ler. O que eles me trazem para ler é tudo mentira.”
Stanisław Lem havia feito Medicina,
cumpriu toda formação mas não fez os exames finais porque o governo e a causa
iriam designá-lo para o exército. Isso era ser médico na República Popular da
Polônia: andar com uma arma apontada para você.
Nessa pequena república
republicana, a profissão dos cidadãos tinha que ser registrada no documento de
identidade, não se podia ser duas coisas ao mesmo tempo, nem mudar de opinião
com facilidade. Se quisesse ser escritor, tinha que se registrar como tal,
fixar um local de trabalho e não sair dali para que a “Polícia Política”, como
Lem chamava o Estado, soubesse tudo sobre ele.
“Eu me tornei ninguém”, escreveu então.
“Nem estudante, nem escritor, nem editor, nem médico, nem cientista”.
Para receber seu status de
escritor, você deve fazer parte da Sociedade de Escritores, o que exige que
você tenha dois livros publicados. Tem alguns artigos e um romance que está
sendo revisado há meses; toda semana ele traz seu manuscrito, eles o leem,
marcam e sugerem mudanças. Porque o diabo - e o estado - está nos detalhes. Os
relatórios dos censores apontam que o romance precisa de um contrapeso: é
"ideologicamente errado". O que está faltando no livro de Lem é o
comunismo.
É o ano de 1949 e a Sociedade dos
Escritores dita que o realismo socialista será obrigatório para todos. Lem não
tem ideia de como cumprir essa doutrina, não sabe que palavras ou ideias
concretas usar para cumprir a ordem e é por isso que seu manuscrito retorna
repetidamente, torna a fazer correções e torna a ficar retido durante anos.
Ele escreveu uma peça na qual
zombava de Stálin e a distribuiu entre seus amigos, incluindo alguns contos dos
quais sempre se envergonhava: “A coisa mais nojenta e real-socialista que eu
poderia ter escrito”. A desculpa para publicar seus livros virá com a ficção
científica. Ninguém na Polônia então sabia o que era, mas quando os censores
leram o novo livro trazido pelo mesmo jovem insistente, decidiram com os
editores que poderia ser publicado com um esclarecimento para não confundir os
leitores. Assim apareceu Os astronautas.
O romance não era bom, mas, em
meio ao tédio realista, brilhou como um asteroide. A crítica local não o
acompanhou. Qual era o problema? Os astronautas da história não usam “a palavra
camarada, tão cara para nós” e preferem o pouco socialista “senhor”. Para as
histórias seguintes, Lem aprendeu a lição e planejou tramas que se encaixaram
na doutrina obrigatória.
Afirmei no início que a figura de Stanisław
Lem me interessava pela posição de marginalidade a partir da qual escrevia e
agora devo acrescentar outro aspecto: o contexto político e social em que fez sua
literatura. Lem não era um escritor polonês, era um escritor da República
Popular da Polônia e, portanto, suas publicações só podem ser vistas como a
epítome do absurdo. Não vou falar sobre o trabalho dele porque não sou uma boa
leitora, nem dele nem de ficção científica em geral. O gênero me distancia, sei
que aí opera um preconceito, suponho que os burocratas da censura polonesa
conseguiram classificar seus livros. Muito antes de sua biografia, minha
primeira aproximação ao trabalho de Lem foi por meio de Borges. Procurei em sua
literatura o que se assemelhava aos jogos borgeanos: esses textos incomuns nos
quais inventou livros para depois resenhá-los.
Em Um vácuo perfeito, os
livros apócrifos permitem que ele fale sobre tudo: filosofia, política,
ciência, tecnologia e, claro, literatura. Em Magnitude imaginária,
escreve prólogos para cinco livros que não existem: é um catálogo de
imposturas, um exercício de imaginação e uma exibição de erudição sem
solenidade. Há pornografia com raios X, linguagem poética feita a partir de
bactérias, literatura com bits e uma enciclopédia borgeana que guarda os
conhecimentos que ainda não alcançamos, os do futuro. Em Provocações, discute
a história e a natureza humana. Nestes textos, a literatura de Lem é a escrita
de um leitor.
Os livros metaliterários que li
foram de um autor consagrado dos anos setenta, quando já não precisava escrever
por motivos financeiros, mas nos anos cinquenta ainda estava muito longe disso.
Ainda estava se construindo como escritor. Já era casado e viajava todos os
dias para ver a esposa porque morava em “um nicho” que não cabia duas pessoas.
Em pouco tempo passaram a viver numa casa comunitária que compartilhavam com
outra família e ele procurou o lugar mais tranquilo que lhe permitisse pensar e
datilografar a máquina sem descanso até que finalmente apareceu a constatação
oficial do que já era:
“O cidadão Stanislaw Lem é
certificado como membro da Associação de Escritores Poloneses. É romancista,
autor de romances fantástico-científicos, dramaturgo e comentarista da
atualidade, divulgador de temas científicos.”
De tudo isso, o que mais gostava
era da ciência e da atualidade, porém governo e editoras achavam que era muito
melhor para ele continuar escrevendo a mesma coisa, o que chamava de “bobagens futuristas”.
Também continuará a tentar se manter atualizado com as notícias literárias e
científicas. Isaac Asimov, um contemporâneo seu, provavelmente sabia das
vantagens incalculáveis que tinha nos Estados Unidos sobre os escritores do
outro lado da cortina de ferro: escrevia em inglês e acessava qualquer
publicação com facilidade, enquanto saía e ao mesmo tempo em que descia para
fumar ou beber. Enquanto isso, Lem lia o que podia ou o que encontrava.
Stanisław Lem. Foto: Lucjan Fogiel |
Em 1953, Stálin morreu e o
processo de desestalinização começou tão lentamente que mal se percebe, mas Lem
encontrou o retorno da censura e publicou um livro após o outro. É quando começam
a pagar adiantado. Ganhar dinheiro antes de começar a escrever é a melhor coisa
que pode acontecer porque ele ama as comodidades: gosta de esquiar e viajar com
sua companheira, gosta das “maquinetas”. Comprou um pássaro de corda que bica
migalhas, um gatinho inglês que corre atrás de uma borboleta e um eretor com um
pequeno motor que lhe custou um terço do que cobrou por seu último livro.
“Preciso de dinheiro para novos brinquedos”, escreve ele aos amigos, e é por
isso que está obcecado em continuar ganhando dinheiro “sem me prostituir”. Para
isso, ele terá que continuar escrevendo aquelas “bobagens” que todo mundo
espera.
Stálin se foi, mas os comunistas
permanecem. Lem está cansado de lidar com burocratas e censores. Ele nunca se
manifestou publicamente contra o comunismo, nem então nem depois; daí, a
sensação de que surfa a onda da melhor maneira que pode. E assim chega a 1956,
o ano da sua consolidação definitiva como escritor, e aquele momento em que o
vimos com três contratos assinados e sem ideias para desenvolver.
Com os adiantamentos comprou um
carro e é provável que não sirva porque, como os vendedores avisaram, na
Polônia um em cada três carros novos quebra. Também comprou “uma casinha no
subúrbio”, onde passa o tempo escrevendo. Está pensando e datilografando três
livros ao mesmo tempo, manda os manuscritos e a censura os atrasa, sempre tem
algo a dizer sobre o que escreveu. Fala sobre estas coisas aos amigos, explica
as tramas e personagens, diz-lhes que existem nuvens e plantas metálicas,
lançadores de foguetes de antimatéria, descargas magnéticas e, depois de todos
os detalhes acrescenta, resignado: “escrevo esta bobagem por desespero e
obrigação”. Não pode se dar o luxo de outro livro detido. Após vários meses de
trabalho, em 1961, publica Solaris e, mesmo depois de passar pela censura,
alguns críticos e leitores consideraram que os nomes dos cientistas não deviam
soar tão ingleses e que teria sido muito mais apropriado que fossem russos.
Por essa época, a União Soviética
enviou o primeiro homem ao espaço, Yuri Gagarin. Lem não está muito interessado
no assunto, só se diverte com o estado de excitação em que todos estão, chama
isso de “gagaromania”. A história de Gagarin em seu entorno não tem nada de
épico ou cósmico: “Ele não foi o primeiro homem no cosmos, mas um homem
soviético grato às autoridades e ao partido.”
Lem sempre se sente um pouco
deslocado e, ao mesmo tempo, nunca pensa deixar essa posição.
Solaris tornou-o
famoso, tem dinheiro para viver “rodeado de caranguejos e aspargos enlatados”,
vendeu mais de dois milhões de exemplares dos dezessete livros que publicou e,
no entanto, sente-se um fracassado. Por quê? Porque não se orgulha de quase
nenhum deles, exceto de alguns em que finalmente deixou de lado o espaço e o
futuro para começar a escrever sobre os problemas filosóficos e culturais que
sempre o interessaram. Queria gerar perguntas e discussões profundas com sua
escrita, mas diz que tudo o que encontrou foi o silêncio absoluto. “Não
encontrei oponentes violentos ou partidários entusiastas, não dei origem a
nenhum movimento, nenhuma troca de frases sobre nenhum assunto.”
De que adianta ser famoso se você
não pode incidir sobre a conversa pública. De que servem todas essas questões
que têm na cabeça, se ninguém está interessado em fazer perguntas. De que
adianta Moscou tratá-lo como um astro do rock se seus livros continuam a
depender da aprovação de um funcionário. De que vale o dinheiro se não há onde
gastá-lo. Mas há algo pior, de que adiantaria partir? Então fica.
Durante os oitenta e quatro anos
que Stanisław Lem viveu, apenas cinco foram fora da Polônia: foi nos anos
oitenta, depois de uma lei marcial que o preocupava, mas não tanto a ponto de
ir para o exílio, pedir asilo ou deixar de usar o passaporte da República
Popular. Durante os oitenta e quatro anos que Stanisław Lem viveu, viajou
muito, mas nunca foi mais longe do que a Berlim Ocidental: ia de vez em quando
para tomar uma pequena dose de capitalismo e comprar um brinquedo ou um vestido
para sua companheira. Durante os oitenta e quatro anos que Stanisław Lem viveu,
passou quarenta escrevendo ficção até parar de fazê-lo e se dedicar a assistir
a queda do muro, reclamando de tudo, escrevendo sobre a atualidade e
conversando com jornalistas até que a surdez o deixou falando sozinho,
definitivamente.
A biografia dele é um conto e sei
que assim haverá muitas outros, porém fico pensando naquele vínculo
contraditório e trágico que por oitenta e quatro anos uniu Stanisław Lem à
Polônia. Aí morreu, aí o sepultaram e aí está a lápide com o texto que ele
havia escolhido esculpir na pedra e deixar para a posteridade:
“Fiz o que pude. Que outros
melhores façam mais.”
* Este texto é a tradução de “Stanisław Lem, el hombre
que hizo lo que pudo”, publicado aqui em Jot Down.
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