Privadas de Henry Miller

Por Álvaro Corazón Rural


Henry Miller.


 
Cuide do seu ânus. Cuide do seu ânus! De todo o conhecimento universal, este é o único conselho que vale a pena dar a uma criança. Pode-se quebrar o quadril, sofrer de estômago, não enxergar bem, ter dores nos ossos: muitas dores aguardam o envelhecimento, mas todas as decisões tomadas na vida devem ter como objetivo garantir que o sofrimento nunca venha da flor sagrada.
 
Durante o século XX, milhões de homens se jogaram nos braços da enfermidade retal, ignorando os riscos que corriam. Não importava se eram carecas com bigodes franquistas ou liberais barbudos de óculos; ambos os universos irreconciliáveis ​​se trancavam da mesma forma no banheiro para esvaziar suas necessidades sem sair até que não tivessem completado as palavras cruzadas. Sim, as palavras cruzadas ou as autodefinidas, esse arcano indecifrável para um rapaz da atualidade doutorado em qualquer licenciatura em Humanidades.
 
Na literatura científica, quem além de dilatar o intestino também dilata o tempo e fica duas horas no banheiro lendo tem um nome: toilet reader (TL). Não é muito original, mas a pesquisa sobre seu hábito é. A última sobre a qual se tem notícia apareceu na apaixonante revista científica Neurogastroenterology & Motility em 2009. Seus resultados renderam números que confirmavam as advertências do conhecimento popular.
 
Os toilet readers ou leitores de banheiro percebem que têm menos prisão de ventre do que aqueles que não leem nesse cômodo da casa: 8% contra 13%. A diferença, apontou o estudo, poderia ser devido ao efeito relaxante nas entranhas de um bom livro, o que facilitaria a coisa, em comparação com aquele que está sozinho com a existência em um momento tão íntimo, e pode ser — esta já é uma hipótese — que as consequências derivadas do ateísmo e da perda dos valores tradicionais nas sociedades ocidentais modernas o angustiem diante da vertigem de um absurdo infinito e, por isso, cague com mais dificuldade.
 
Porém, em relação às hemorroidas, cerca de 23,6% dos toilet reader sofriam do mal; entre o cagador analfabeto, 18,2%. Para esta viagem os alforjes não faziam falta. Isso sempre foi conhecido: se você se sentar no trono até terminar o capítulo, você ganhará dilatações. Nove em cada dez mães advertiram e quem tinha ouvidos desistia do hobby fedorento. Sempre se disse que para dominar a obra de Balzac, Zola ou Tolstói é preciso fazer um sacrifício, mas acabar sangrando pelo cu talvez seja um preço muito oneroso.
 
Apesar da gravidade do fenômeno, poucos luminares de nosso tempo alimentaram o debate público sobre esse tipo de leitura. Apenas Henry Miller tem um tratado de alguma relevância sobre o assunto. Ler no sanitário, 1969. Nele, indaga sobre as motivações que poderiam ser nutridas por todos aqueles que, ao lerem, expelem fezes. Uma espécie de reciprocidade cósmica: o espírito é embelezado enquanto expulsa a merda.
 
Miller disse que o que o levou a ler no banheiro foi a perseguição. Quando criança, ele precisava de privacidade e não ser incomodado enquanto tragava páginas e páginas, então encontrou um bom refúgio no banheiro, onde poderia se trancar. Desde então, não havia ocorrido a ele voltar fazer isso. Já adulto, se queria ficar sozinho para ler, ia para o campo. “Quando procuro paz e sossego, pego o livro e vou para a floresta. Não conheço lugar melhor para ler um bom livro do que no meio do mato. De preferência junto ao riacho”, escreveu. Tenho a sensação de que ele não se desligou completamente do antigo hábito e ter um riacho ao lado dele servia para celebrar uma elegante paronomásia fazendo-se deixar correr a merda.
 
A suposta serenidade do reservado parecia-lhe superestimada. Disse que as leituras mais importantes de sua vida foram feitas de maneira ruim, em pé e apertado no transporte público. O melhor, na melhor das hipóteses, à noite nas bibliotecas públicas. Um detalhe isso, o de abri-las vinte e quatro horas, o que poderia ser levado em consideração por quem reclama tanto que os jovens só sabem se drogar e matar enquanto fazem selfies. No entanto, Miller descobriu que a maioria de seus amigos íntimos lia no banheiro. Claro, os chamados gêneros inconsequentes, como romance policial e de aventura, revistas e, claro, a leitura mais inútil de todas para Miller: o jornal.
 
O escritor se perguntava, não sem uma certa graça, se essas pessoas poderiam absorver “mais guerra, acidentes, mais guerra, desastres, guerra de novo, homicídios, mais guerra, suicídios, guerra de novo, assaltos a banco, de novo guerra e mais guerra fria e quente”. Poucas coisas mudaram a oferta informativa nos jornais. Na melhor das hipóteses, agora também temos detalhes, em meio a tantas mortes e destruições, de como o aquecimento global está nos levando a um cenário pós-apocalíptico. Um cenário que afetaria também o confortável Ocidente que segue as guerras com muita atenção para não se entediar, mais do que qualquer outra coisa.
 
Atordoado, revelava o autor de Trópico de câncer que tinha um peña que mantinha duas estantes no banheiro com suas leituras preparadas para a correspondente deposição. “Seu material de leitura o aguarda”, ficou surpreso. A este respeito, o jornal The Guardian entrevistou Val Curtis, responsável da London School of Hygiene and Tropical Medicine, em 2011, que desaconselhou esta prática. Conforme explicou o médico, é muito fácil as fezes passarem para os livros pelas mãos. Se você tivesse uma biblioteca no banheiro, alertou, esfregar os olhos, tocar o nariz ou colocar os dedos na boca depois de tocar nesses livros representava um risco de infecções. Não por coincidência, os amigos de Miller não estavam acostumados a ser prodígios da longevidade.
 
Então o escritor raciocinava. Se você se sente tão confortável no banheiro, continuou ele, e só aí você encontra a paz e o sossego para fugir da leitura, por que não aproveitar também para se presentear com as iguarias mais suculentas e refinadas. Seria igualmente lógico sentar-se na privada e aproveitar o alívio intestinal para comer com um bom vinho. Se o que é necessário, por outro lado, é apenas alimento espiritual, Miller sugeriu que os banheiros pudessem ser feitos com grandes janelas para contemplar o horizonte; que experiência seria, tanto ao gosto dos hippies de Ibiza, estar diante de um pôr do sol e cagar confortavelmente.
 
Ele também disse que as telas podiam ser penduradas nas paredes do banheiro para se apreciar a pintura. É em detalhes como esse que a vasta cultura de nossos criminosos pode ser apreciada. Na Espanha, a Guarda Civil constatou que Juan Antonio Roca, no âmbito da Operação Malásia, tinha um Miró no banheiro. É muita cultura para escolher uma pintura surrealista abstrata para fazer cocô, ou muito pouca. O certo é que deve ser infalível.
 
No final, Miller se perguntava sobre o novo milênio, ou seja, sobre o século em que vivemos agora. Tinha certeza que o que quer que acontecesse, continuaríamos cagando. O que já não sei mais é se o escritor teria antecipado que um cavalheiro fazendo cocô em Calahorra poderia interrogar o presidente dos Estados Unidos da América pelo celular.
 
Porque não vamos mais ao banheiro com jornal ou livro, agora levamos o telefone conosco. Não sei que cara Miller teria feito se tivessem contado a ele. No futuro, estaremos todos cagando conectados a uma party line mundial. Pode-se escrever uma mensagem de paz que assombre centenas de milhares de pessoas sem que elas saibam que o autor, quando escreveu, estava defecando. O mesmo que, se alguém quando responde à brilhante reflexão dizendo-lhe que com aquela mensagem a sua vida mudou e alegrou a manhã, tampouco aquele usuário cheio de felicidade saberá que o autor, ao marcar o agradecimento favorito, pode ter deixado uma marca de impressão digital marrom na tela do celular.
 
Essa foi a atenção de Val Curtis. O médico alertou que as bactérias sobrevivem melhor nas superfícies lisas dos telefones celulares do que nas páginas dos livros. Curtis descobriu em um estudo que um em cada seis telefones celulares no Reino Unido está contaminado com matéria fecal. Tudo isso sem contar os tweets a favor do Brexit que possam ter saído desses terminais. Por todas essas razões, independentemente do século em questão, o conselho que Miller compartilhou em seu ensaio a título de conclusão ainda é válido: “medite em seu tempo livre”.  

* Este texto é a tradução de “Retretes de Henry Miller”, publicado aqui, em El Cultural.

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