Pedro Almodóvar, filmes paralelos
Por Carlos Reviriego
“Não há história muda.” As
palavras de Eduardo Galeano que fecham o drama das Mães paralelas,
usadas com inteligência e sugestão lírica, funcionam como elo de um filme fragmentado,
uma espécie de film-frankenstein desdobrado praticamente como dois
“filmes paralelos” que partilham personagens, mas que poderiam muito bem não
fazê-lo. No último longa-metragem de Pedro Almodóvar — que, para não
sobrecarregar o leitor sem uma avaliação prévia, é um filme magnífico,
comovente e de grande relevância — assistimos a um prólogo (em Madrid, 2016) e
a um epílogo (numa cidade não identificada, 2019) que, se juntamos, formaríamos
um sublime e inestimável curta-metragem.
Jamais saberemos como o filme
teria sido submetido à operação, antes utilizada pelo manchego, de estrear
simultaneamente um curta e um longa-metragem (Abraços partidos + A
vereadora antropófaga, em 2009) com personagens comuns (ou pelo menos a
autoria do curta, assinado pelo cineasta que protagoniza o longa); o que
podemos saber, e acima de tudo sentir, é que Almodóvar provavelmente tinha duas
histórias muito poderosas em suas mãos, e que dada a necessidade da poderosa e
essencial “mensagem” da história coletiva para não minar ou engolfar a
magnitude dramática da história íntima, ou ao contrário, ele foi de alguma
forma forçado a realizar uma operação de montagem inteligente como se fosse um
trapezista em busca de equilíbrio.
De certa forma, é quase como se a
própria história de Sirk ou de Minelli, impulsionada pelos trágicos acasos, os
desamores e a determinação de duas mães solteiras, fosse intermitentemente
invadida pela vocação historicista de Manoel de Oliveira ou Jean-Luc Godard. A
operação é de alto risco, mas o resultado é, no mínimo, também altamente
eficaz. Não dizemos que a sutura seja artificial, imperfeita, que “apreciamos”
suas costuras, mas eis que as costuras visíveis (diríamos mesmo, na superfície)
são bem-vindas, pois quanto menos sublinham a importância do que diz (ou vai
nos dizer), e dar origem à emoção de um epílogo (apesar ou à mercê de sua frieza
quase documental) que, como uma luz projetada sobre o que vimos, acaba dando
uma dimensão inusitada ao núcleo do (melo)drama estrelado por Janis e por Ana.
Ele coloca em outro lugar. A ponto de nos perguntarmos se, na verdade, não
assistimos mais uma vez à grande manobra narrativa de um gênio da dramaturgia,
como o autor de Fale com ela (2002) já mostrou em outras ocasiões.
Como fazer um filme sobre duas
mães por acidente coexistirem com um filme que defende a necessidade de
desenterrar os mortos na guerra espanhola? A resposta mais óbvia está na
relação biológica ou familiar, em suas nuances, que é fundamental em ambos os
relatos. Mas há algo mais. Apesar dessas costuras bem visíveis, Mães paralelas
está tecido com inúmeros fios invisíveis que agem a favor de uma certa
organicidade geral, e que a posteriori (naquele lugar onde os filmes se pensam,
projetadas pela memória) conseguem estabelecer uma espécie de diálogo entre um
e outro, talvez entre a fábula rasgada e o comentário histórico e sócio-político,
que não em vão, e é lamentável, ainda é de alguma forma silenciado pelo cinema
espanhol.
Em seu núcleo, portanto, as mães
paralelas do título são Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit), uma mulher
de meia-idade e uma jovem que são obrigadas pelas circunstâncias a criar suas
filhas praticamente sozinhas, arrastadas pelo destino para vínculo de irmandade
que se torna até em amor romântico, ainda que as imagens e a história não o
antecipem em nenhum caso, o que não deixa de sugerir que há outros interesses
por baixo dessa relação, carente de química ou de intenção sexual. Mais uma
vez, e já se tornou lugar-comum pelo menos desde Volver (2006), o
manchego se mostra cuidadoso e distante quando filma o sexo, também entre Janis
e Arturo, propondo apenas um corte entre o orgasmo e o parto em uma elipse de
nove meses na vertigem e tensão dramática que domina o filme desde os primeiros
momentos. Nisso, a atuação de Penélope Cruz, cuja personagem traz o ponto de
vista genuíno do filme (sempre sabemos o que ela sabe), é decisiva, pois parece
especialmente difícil expressar o dilema ético interior que enfrenta.
Apesar de alguns achados
expressivos (como um flashback sugerido apenas com uma porta que se
abre), neste filme o Almodóvar-escritor brilha acima do Almodóvar-diretor, que
concede à sua obra muitas cenas “eficientes”, guiadas pela urgência do coração
e a consciência e os perigos do destino que sempre fizeram parte da poética
almodovariana, principalmente as cenas envolvendo a personagem do antropólogo
forense Arturo (Israel Elejalde), único homem com certo protagonismo no filme.
Não é o caso do pequeno papel de Aitana Sánchez-Gijón, verdadeiramente
magnífica como mãe sem instinto maternal de Ana, e que mais uma vez abandonará
sua filha (e sua neta) para crescer profissionalmente como atriz interpretando
a protagonista de Dona Rosita, a solteira (cujo retrato do conformismo é
subvertido na leitura da solteirice que Almodóvar propõe), não em vão escrita
por um cadáver enterrado numa vala comum, o de Federico García Lorca.
Aqui, outro fio invisível emerge
na sutura dos filmes paralelos. As escavações malsucedidas na sepultura de
Alfacar remetem à existência de Mudança (2008), extraordinário
curta-metragem de outro gigante do cinema espanhol, Pere Portabella, que já
alertava, ainda que metaforicamente, sobre a importância social da exumação de
valas comuns na documentação do vazio da Casa Museu do poeta granadino. O
catalão filmou esta peça, agora praticamente invisível, pouco depois de o
governo de José Luis Rodríguez Zapatero aprovar a Lei de Recuperação da Memória
Histórica e que, ante a vanglória de um certo presidente (que o roteiro de
Almodóvar não deixa de nomear), estava dotado em 2016 com 0 (zero) euros nos
Orçamentos Gerais do Estado. Mães paralelas assume sem meias tintas,
mesmo pela superinterpretação, seu “ativismo” político neste assunto.
O fato de Janis ser fotógrafa de
uma revista de atualidades e tendências não deixa de ser mais um fio invisível
que ocupa o leit motiv gráfico dos créditos, pois a fotografia é também
o embalsamamento dos vivos. Nesse sentido, em um ponto do filme, desfilam pela
tela os rostos (acreditamos que, exceto um, todos eles reais) de várias vítimas
executadas pelo lado que se rebelou contra o governo da República nos primeiros
dias de guerra. Será a determinação de Janis que dará início a esta
investigação, a que invoca essa outra história que opera por cima, abaixo e em
torno da trama principal.
Assim, o espectador é exortado a
“desenterrar” o sentido preciso de Mães paralelas e recompor os restos
encontrados, ou pelo menos todos os seus sentidos, que são múltiplos e, como
nos filmes do primeiro Almodóvar, relevantes no ethos social e moral do
tempo a que pertence. Tudo isso para entender que a maternidade, a irmandade, o
feminismo, os abusos sexuais, o lesbianismo, as famílias disfuncionais e não
biológicas estabelecem uma conexão mais ou menos direta com a identidade
geracional e a memória histórica, com os testes de DNA, as valas comuns e os
mortos da guerra (in)civil que, mais de oitenta anos depois, ainda aguarda
sepultamento adequado. E parece incrível que tenhamos chegado aonde estamos,
quero dizer à “normalização” de certas conquistas de gênero, sem ter cavado no nosso
passado.
Não há história muda (nem História)
neste filme, nem no enorme segredo que Janis guarda para si face ao medo de
perder a sua filha e que lhe magoa a consciência, nem na evidência de que os
mortos, quando se quer ouvi-los, também falam conosco. Esta última
circunstância não deixa de perpetuar o último período de maturidade da
filmografia almodovariana, aquela nascida em Fale come ela, onde o drama
prevalece sobre a comédia, praticamente desaparecida (exceto em Os amantes
passageiros), e em que as histórias que ele filma são povoadas de fantasmas
que voltam da morte ou do passado para modificar, redirecionar e explicar o
presente.
* Este texto é a tradução de livre de “Almódovar, películas paralelas”,
publicado aqui, em El Cultural.
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