O tempo em A montanha mágica: anotações da leitura de Paul Ricœur
Por Joaquim Serra
Thomas Mann. Foto: Bridgeman Imagens |
É inegável, diz Ricœur, que A montanha mágica seja um romance sobre o tempo. Hans Castorp, o homem comum
escolhido pelo narrador, passará sete anos no sanatório “até que o trovão da declaração
da guerra de 1914 o arranque do feitiço da montanha mágica; a erupção da
História, porém, só o restituirá ao tempo dos de baixo para entregá-lo a essa
‘festa da morte’ que é a guerra” (p. 200). Para Ricœur, o fio condutor da obra
é o confronto de Hans Castorp com o tempo abolido do sanatório Berghof. O filho
enfermiço da vida, em visita ao primo Joachim (tuberculoso e há seis meses
internado), adentrará o mundo dos mortos para se tornar íntimo dele, se
aclimatar e vivê-lo na pele. O projeto frustrado de Hans Castorp é o de passar
três semanas com aqueles que não reconhecem essa medida de tempo, o que irá
gerar, num primeiro momento, a convivência dos contrários para aflorar a
significância do tempo.
Segundo Ricœur, “as primeiras discussões
entre Hans e seu primo Joachim, já aclimatado ao tempo de cima, trazem para o
primeiro plano a discordância entre as duas maneiras de existir e habitar. Hans
e Joachim não falam a mesma linguagem sobre o tempo [...] ‘Três semanas são
para eles como um dia... aqui se modificam todas as nossas concepções’” (p.
208). Ricœur ainda diz que o ponto de vista de Hans não aparece apenas no
nível da linguagem, mas será “o meio privilegiado de aprendizado do herói”. Nos
capítulos subsequentes, segundo a leitura de Ricœur, teríamos um equilíbrio
entre Zeitroman e Bildungsroman. Isso estaria claro no intervalo entre as
longas discussões com Settembrini — terreno fértil para as características do Bildungsroman — e os capítulos da percepção de Hans sobre o tempo, como é o “Excurso sobre o
sentido do tempo”. Para Ricœur, essas duas pontas estão unidas pela “aclimatação”
de Hans “como fenômeno ao mesmo tempo cultural e temporal” (p. 210).
De início já temos, através das
explicações de Joachim, e depois das de Settembrini, uma confusão no sentido
próprio das coisas. Segundo Ricœur: “A abolição do sentido das medidas do
tempo é o traço principal da maneira de existir e de habitar dos pensionistas
do Berghof [...]. Do início ao final do romance, essa anulação do tempo
cronológico é sublinhada claramente pelo contraste entre ‘os de cima’,
aclimatados a esse fora-do-tempo, e ‘os de baixo’ — os da planície —, que vagam
ao ritmo do calendário e dos relógios” (p. 199-200). A distinção entre o tempo
tradicional – reforçada pelo espaço, que redobra a oposição temporal — nos é
fornecida pelos olhos de Hans Castorp, que sentirá a alteração desse tempo de
forma íntima. Não à toa, Hans é um jovem comum, sem grande destaque de personalidade,
um burguesote (palavra que, sonoramente, dá uma característica neófita na fusão
“burguês” e “rapazote”), cuja história no Berghof, como nos diz o narrador, é
mais importante por ela mesma.
Para descrever esse choque da
personagem com o mundo de cima, Ricœur separa o tempo da narração do tempo
contado, dois aspectos fundamentais que contarão — e Mann nos avisa já desde o
Propósito – com a participação decisiva do leitor. Diz o narrador, e isso nos
aponta também Ricœur como algo essencial a ser notado, que o relato será feito
com exatidão e minúcia, assim, “a simples evocação do tédio possível sugere uma
analogia entre o tempo da escrita e o tempo da experiência” (p. 202). Por isso,
a relação entre os tempos descritos durante os desproporcionais sete capítulos
de A montanha mágica faz parte da própria sensação de Hans em relação ao
confronto “com o tempo abolido” (p. 200). Desse confronto, pode-se dizer, o
leitor terá a forte impressão do adjetivo que caracteriza essa Montanha.
Um dos momentos em que mais vemos o
tempo interior em ação é na aferição da temperatura. O termômetro, que se torna
um motivo recorrente no romance (poderíamos até pensar em uma metáfora
continuada que sincretiza tempo e morte), é um ponto de relatividade do tempo
de resposta. Na cena em que Hans descobre os seus 37,6 graus de febre, o tempo
de sete minutos para aferir a temperatura começa muito devagar, justamente
porque é o tempo relativo da espera, o tempo que não se concentra em mais nada
além daquilo que deseja. Já quando o termômetro está para alcançar os sete
minutos, Hans se distrai e dá espaço para o tempo do devaneio, outro de
natureza muito diferente.
Ricoeur aponta Settembrini e
Naphta como os preceptores de Hans Castorp, mas poderíamos pensar em outros; a
própria condição de Hans em relação ao tempo e ao espaço parece também
contribuir para a percepção de si e das coisas. Diversas vezes o narrador
aponta o estranhamento de Hans diante do mundo dos de cima (como o riso solto ao
tomar conhecimento do léxico ou dos costumes) mas, na cena em que Hans está com
sintomas mais graves da tuberculose e procura o Dr. Behrens, diz o herói em uma
conversa com Joachim: “Settembrini diz que a jovialidade de Behrens é forçada,
e Settembrini é, indiscutivelmente, um homem crítico [...]. Eu mesmo deveria,
talvez, formar com mais frequência uma opinião própria, em vez de aceitar as
coisas como se apresentam” (p. 113). Encarar aqui a seriedade dos fatos não
parece ser somente um “influencia” do preceptor Settembrini (afinal, poderia
ter acontecido antes do fato em si), mas o princípio de uma tomada de
consciência do tempo do Berghof e uma possível superação – que irá ocorrer – da
sedução do discurso de Settembrini. Não à toa, para Ricœur, o Capítulo V, que
está pouco depois da cena supracitada, abre a fase pós-aclimatação, “agora que
a lei de cima prevaleceu, só resta mergulhar na densidade do tempo. Não há mais
testemunha de baixo. O tempo do sentimento eliminou o tempo dos relógios” (p.
213).
Pode-se dizer que o elemento do Bildungsroman
não direciona Hans para uma única formação — a cultural pelas das ideias de
Settembrini e Naphta —, mas também para uma formação sensual e mórbida, na
figura de Chauchat e no próprio espaço, o que comporia elementos interiores
como motivos “preceptores”, estes alinhados à tríade tempo, morte e cultura; ao
fim e ao cabo, o espaço e o tempo também disputam o espírito de Hans Castorp.
Settembrini, o italiano
iluminista, que tem horror ao que as polcas podem causar no espírito (certamente
aqui os leitores de Machado de Assis se lembrarão dos efeitos da polca no
espírito do compositor Pestana do conto “Um homem célebre”), tem uma postura
irônica diante da vida dos de cima e insiste na ação como resultado para a
vida. Quando decide dar sua primeira volta sozinho, Hans Castorp diz ao primo
que está “farto da vida horizontal”, assumindo assim o vocabulário do preceptor
Settembrini. A vida horizontal não é a da ação, algo essencial para o italiano,
mas da espera, da morte.
É interessante pensar que o espaço
do romance, a condição da morte e o tempo criam no Berghof um ponto de encontro
globalizado, possibilitando contatos e diminuindo fronteiras entre os vários
mundos distantes naquele momento. Essa condição da morte parece ser essencial
para manter a verossimilhança dos debates. É como se na condição de doentes os
inquilinos do Berghof pudessem ter um ponto de vista de um Brás Cubas, suspenso
da vida comum, criando assim a possibilidade de não soar falso qualquer que
seja o debate, pois tudo é interpretado como “a vida fora do Berghof” ou “a
vida para a qual um dia voltaremos”.
O herói de A montanha mágica tem
qualidades necessárias para ser uma personagem de um romance de formação. Lukács,
aludindo a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, diz que o herói do
romance de Goethe não está em harmonia com o mundo desde o início — assim como
Hans Castorp com o novo mundo. A própria passividade de Hans é corroborada pelo
narrador, espaço e personagens disputadores da alma simples de Hans; nas
palavras de Ricoeur, ele que é “a vítima semilúcida” (p. 211) do mundo de cima.
Mas, para Ricœur, a força inegável do Zeitroman se sobressai. Para ele, Thomas
Mann “optou por fazer das investigações do herói sobre o tempo a pedra de toque
de todas as suas outras investigações sobre a doença e a morte, sobre o amor, a
vida e a cultura” (p. 206). Assim, o aprendizado pode parecer de natureza mais
sutil, rompendo com a tradição do Bildungsroman, o que se dá, para Ricœur,
pela natureza irônica da própria relação entre o narrador e sua personagem.
Segundo Ricœur: “Faltou-lhe o teste da ação, critério supremo do Bildungsroman.
A ironia está aí, talvez até a paródia. Porém, o fracasso do Bildungsroman é o
avesso do êxito do Zeitroman. O aprendizado de Hans Castorp limita-se à
presença de alguns instantes que, considerados juntos, têm por única
consistência a de um ‘sonho de amor’. Pelo menos, o herói ‘governou’ os sonhos
de onde surgiu esse sonho de amor” (p. 223).
O propósito não é aderir ou não à
essa leitura complexa levantada por Ricœur, mas adicionar novos problemas. Um
deles, se não seguirmos a leitura de Ricœur, é admitir que Mann compreende
mais de uma formação para Hans durante os anos no Berghof, colocando-as em
conflito com o que entendemos (e novamente temos o leitor) da formação do mundo
de baixo. Ora, se o tempo no alto da montanha segue outra lógica que não o da
planície, a formação das ideias e sua “ação” também podem seguir lógicas
intrínsecas à montanha. Essas formações – muito mais do espírito — seriam muito
particulares do alto da montanha e seriam retomadas pelo narrador quando Hans
vai para a guerra de trincheiras, quando é revelado que o embate no seu
espírito pôde sobreviver ao que a “carne dificilmente poderá resistir” (p.
472). Seguindo essa linha, Hans esteve muito mais doente do espírito, quando no
alto da montanha, do que da carne. Nessa leitura, a ideia de “ação” seria
questionada — já que a ação seria muito mais espiritual —, mantendo a ironia presente
nessa formação. Ricœur não estaria longe dessa leitura quando diz: “Por mais
que se presuma de suas leituras antagônicas, é, contudo, sozinho que Hans
Castorp realiza sua educação sobre o tema da vida em sua relação com a volúpia
e a morte” (p. 214).
Por fim, Hans Castorp saltou do
tempo da alta montanha para o tempo da mais baixa irracionalidade, quando a
menor unidade de tempo seria a subfração de segundos, algo que definiria pela precisão
quem vive e quem morre: o tempo da guerra. A Grande Guerra inauguraria diversas
tecnologias e aceleraria o desenvolvimento de outras tantas, mas todas trabalhavam
em função do tempo da destruição e da informação, o que colocaria uma tropa
alguns passos na frente da outra. O tempo humano seria anulado e, assim como acontecia
aos jovens acometidos pela tuberculose, o próprio tempo ajudaria a ceifar suas
vidas, abrindo uma hemorragia narcísica na Europa e no mundo.
Bibliografia:
MANN, Thomas. A montanha mágica.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Versão Digital).
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa.
São Paulo: WMF (Versão Digital).
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance.
São Paulo: Editora 34, 2009.
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