Macunaíma, de Mário de Andrade

Por Pedro Fernandes

Mário de Andrade, março de 1926. Arquivo Nacional do Brasil.


 
É com o romantismo que se vislumbra com a cor da letra uma preocupação dos escritores brasileiros sobre a fabricação de uma entidade capaz de se afirmar como identidade nacional. Os resquícios disso, entretanto, são mais profundos; uma leitura menos escolástica nos permite enxergar esse interesse mesmo quando os conceitos que se problematizam e ganham consciência no século de consolidação da nossa literatura sequer tinham os nomes pelos quais foram designados. Está, por exemplo, na rica, variada e quase desconhecida epistolografia e cronística dos viajantes com suas descrições sobre o vasto mundo de exuberância e modos culturais que designavam como pré-civilizatórios, na poesia de Gregório de Matos quando além de descrever esse mundo procura capturar as linguagens que o enformam, na sátira política de Tomás Antônio Gonzaga, nos versos de feição semi-neoclássica de Cláudio Manuel da Costa que ao mirar um motivo greco-latino findava por encontrar qualquer coisa a meio caminho desse passado nosso estrangeiro e o latente do seu tempo.
 
Quando Macunaíma aparece, ainda como produto do calor da forja modernista, todo o caldo cultural que o enforma encontra-se preparado. E é dessa mistura que Mário de Andrade constrói este móbile — para designar o que ele próprio presume ser não um livro sobre o Brasil, mas um brinquedo, quando muito, um catálogo desnaturalizado sobre o nosso folclore. Para João Luiz Lafetá, o grande achado neste romance rapsódia é a linguagem que não é tanto uma fala brasileira “mas sim de uma língua pessoal e artística, construída também pelo processo de colagem, pela combinação de vocábulos e torneios sintáticos colhidos dos mais variados falares do Brasil” que “forjou um instrumento expressivo de muita força, capaz de transmitir o humor mais fino e o mais debochado, ou um lirismo sutil e trançado à vivacidade picante das anedotas”.

Apenas quando esse romance passa a existir podemos encontrar na nossa literatura o que nos faltava em relação às outras literaturas mais antigas. É curioso descobrir que essa forma nada tem das feições estabelecidas, nada tem de modelar. E ainda, que essa obra preencha um vazio para o qual não foi pensada, à revelia do seu autor, como se um monstro ganhasse vida, um lugar que interessava a todos outros mas esses falharam nas tentativas de alcançar.
 
São seus precursores De gestis Mendi de Saa de José de Anchieta, Prosopopeia de Bento Teixeira, O Uraguai de Basílio da Gama, Caramuru de Santa Rita Durão e I-Juca Pirama de Gonçalves Dias — para citar a parte mais conhecida de uma tradição literária que se constitui a partir da tentativa de estabelecer entre nós a epopeia, uma matriz literária recorrente noutras civilizações, que designa, pelos grandes feitos, pelos estreitamentos com as histórias originais, a identidade de um povo e prefigura um ideal coletivo. Quando dizemos tentativa é porque nenhuma das obras citadas conseguiu o feito a que se propunham; começa pelo seu total desconhecimento entre nós e finda pela risível pequenez em relação a outros textos formadores — esqueçamos Homero, fiquemos com Os Lusíadas e logo notaremos todo o nosso disparate.
 
As razões para tanto são as mais diversas. Podemos pensar sobre a nossa formação histórica, sem o substrato constituído dos feitos e mesmo de uma longa tradição imaginativa que encontrou na palavra escrita seu instrumento. Depois, as limitações dos nossos criadores, que, educados sem a experiência do novo mundo em parte porque encerrados num ideal civilizatório da sua negação, se resumiram, em sua maioria, a emular modelos e estruturas já ultrapassados e, pior, incapazes de autenticamente representar esse outro mundo.
 
É possível que, à medida que distanciem de Os Lusíadas, as gerações mais contemporâneas de portugueses não se percebam parte no imaginário heroico e mítico evocado no poema de Luís de Camões, mas toda vez que tocadas pela centelha da epopeia nela encontrarão, certamente, algum resquício muito próprio jamais encontrado por outros leitores, como se uma força irmanadora, capaz de reativar essa comunicação inesgotável que desenvolvemos, consciente ou não, com os resquícios de nossos antepassados. Essa essência tão singular, tão abstratamente forte é uma das marcas do épico. E nada disso se passa conosco no contato que desenvolvemos com quaisquer um dos textos da nossa tentativa de tradição épica. Talvez isso tenha sido ponto de inflexão ou o descompasso essencial para a ironia de Mário de Andrade que resultou neste romance: nossa própria desgraça entranhada no fracasso de se colocar na mesma estante dos antepassados.
 
O fracasso de Macunaíma é já o em-si de nossa perdição. Embora lide com uma nação, nele não existe qualquer ideal de nação; os feitos são grandiosos mas não são heroicos; e a seiva invisível que circula na epopeia, capaz de integrar leitores dos tempos mais variados — talvez isso que chamamos como pertença — tampouco a encontramos. Mas também este texto não é uma epopeia. Mesmo assim, paradoxalmente, ocupa com toda a força do épico e sua autenticidade essa ausência na nossa literatura desde sempre. O fundamento para tanto está na negatividade, encontrada desde a base de justificação da obra e infiltrada nos temas, na sua forma e estrutura. Todas as tentativas de Brasil pensadas a partir de uma potência da afirmação, repetimos, resultaram no seu oposto, a começar pelo projeto de nação, esta que tem se produzido sempre como um imperativo jamais como vontade própria.



No primeiro prefácio para Macunaíma, seu autor descreve que este livro se escreveu a partir da descoberta de que “o brasileiro não tem caráter”. Assim, é proposital a poética das negações desenvolvida neste e nos textos que Mário de Andrade escreveu depois a respeito do romance: “não é símbolo nem se tome os casos dele por enigmas ou fábulas.”; “(Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e flora geográficas.)”; “(Dizer também que não estou convencido pelo fato simples de ter empregado elementos nacionais, de ter feito obra brasileira. Não sei si sou brasileiro.)”; “não quero que imaginem que pretendi fazer deste livro uma expressão da cultura nacional brasileira. Deus me livre.”;  “não tive a intenção de sintetizar o brasileiro em Macunaíma nem o estrangeiro no gigante Piaimã.”; etc.
 
Agora, a valia de uma poética da negação encontra-se no ponto exato de se estabelecer como paradoxo. Está na sentença tão recorrente Os brasileiros são dita por nós mesmos. E este sentido quando não embotado na própria sentença de negação, emerge de imediato. Como nos raciocínios sublinhados anteriormente: “O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros.”; “E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem caráter.”; “Me parece que os melhores elementos duma cultura nacional aparecem nele. Possui psicologia própria e maneira de expressão própria. Possui uma filosofia aplicada entre otimismo ao excesso e pessimismo ao excesso dum país onde o praciano considera a Providência como sendo brasileira e o homem da terra pita o conceito da pachorra mais que fumo. Possui a aceitação sem timidez nem vanglória da entidade nacional e a concebe tão permanente e unida que o país aparece desgeograficado no clima na flora na fauna no homem, na lenda, na tradição histórica até quando isso possa divertir ou concluir um dado sem repugnar pelo absurdo.”; “É agora, depois dele feito [o livro], que me parece descobrir nele um sintoma de cultura nossa.”
 
A negatividade introduz o paradoxo, região tão bem explorada pelo nosso modernismo, e, por sua vez, o impasse. Nossa identidade é uma aporia constante — nem poderia ser diferente considerando o modelo de colonização que passamos. A princípio, isso pode significar uma condenação, porque a inexistência de ordem, de continuísmos sempre nos empurra para o selvagem, mas se deixamos de pensar o Brasil fora disso, sempre descobriremos outros possíveis. O que aprendemos com “o herói sem nenhum caráter” é não deixarmos de apostar na possibilidade. Quer dizer, o impasse é a pura potência do devir, é muiraquitã, esse objeto de valia afetiva-sentimental, consolo da ausência e impulso de futuro. Uma vez recuperado o amuleto, a vida estiola. Alguém pode enxergar nisso algum sentido existencial até, mas a provocação sugerida por esse romance parece ser exclusivamente actancial. Isso porque fora da vida, a errância do herói é uma permanência. Daí que Mário de Andrade tenha se apropriado da lenda do Macunaíma — que lhe chega por importação, do catalogado pelo etnologista alemão Koch-Grünberg — e nela encontrado a ilustração para sua tese de como a negatividade é o nosso domínio mais autêntico: a malandragem em oposição à astúcia (ou uma forma dela); a preguiça ao trabalho; as verdades à verdade dominante; a língua falada à escrita; a posse do outro pela sua integração.  
 
O que aqui chamamos negatividade, portanto, se esclarece pela noção de recusa. Embora não seja este o momento adequado para uma discussão aprofundada sobre este conceito, é necessário destacar que sua base repousa no paradoxo entre o aceite e a não-admissão. Se expandirmos a noção individual da psicanálise freudiana segundo a qual na recusa o sujeito aceita porém fabrica a ilusão de que não foi impactado pela experiência logo alcançaremos esse valor no âmbito da nossa coletividade. E nossa recusa é dupla: primeiro negamos nosso primitivismo a partir da aceitação de modelos civilizatórios alheios, depois, ao fantasiarmos a colonização como um acaso, desenvolvemos a negação do seu impacto traumático na nossa formação.
 
Há ainda outros dois movimentos contraditórios assentes na recusa: ora desempenha um papel positivo ao nos permitir alcançar o pós-traumático; ora um papel negativo, impedindo-nos de aprender com a experiência, tornando-se uma intransigência, aprisionando-nos numa realidade esquizofrênica. Nesse sentido, a recusa em Macunaíma é da primeira ordem justamente porque se oferece como metabolismo capaz de transformar o trauma em potência criativa. Sua estratégia de negar aceitando é um exemplo. E podemos ilustrar esse sentido com uma passagem do capítulo 10, quando o herói intervém no discurso de “um mulato da maior mulataria” acerca do Cruzeiro do Sul dito num feriado em homenagem à constelação “inventado pros brasileiros descansarem mais”. Ao negar o discurso depois de concordar com “a fala comprida que o discursador fazia”, a personagem não o apaga, mas inscreve no seu interior sua versão.
 
O hibridismo recorrente no episódio de Pauí-Pódole pode ser tomado como o procedimento estético-formal adotado por Mário de Andrade na construção do seu principal romance e uma prova da negatividade enquanto pulsão criativa. Ao invés de adotar uma emulação das formas clássicas, como intentaram seus antepassados e da qual pouco ou quase nada restam na prosa do modernista, ou mesmo das fórmulas populares, seu verdadeiro manancial criativo, o escritor nelas se infiltra ora preservando ora alterando descaradamente nomes, expressões, episódios, ao ponto de desfigurar figurando, inaugurar por acréscimo, tornar superfície o que é nossa dimensão profunda: a contradição. Macunaíma é um romance-gambiarra, um invento feito com os materiais ao alcance do seu criador e cujo funcionamento alcança a serventia esperada mas desacreditada de sua possibilidade. Eis toda a autenticidade de Brasil.

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