Entre os mecanismos de Aira

Por Tiago D. Oliveira




Depois de atravessar as páginas de A trombeta de vime, de César Aira, fiquei pensando sobre os limites de um texto e percebi que entrava paulatinamente em um universo que se revigora conforme o mundo gira em torno de seu próprio eixo. São doze textos que dificilmente serão classificáveis, o que promove o livro para um lugar que corta o próprio tempo em que foi escrito para se apresentar além, muito além do que nos acostumamos a conformar.  

A mistura de gêneros e de discursos faz com que as narrativas desenvolvam um híbrido entre as palavras, leva o leitor a sentir analiticamente a expansão das fronteiras e limites do fazer literário. Ao ponto que a leitura acontece, percebe-se que o atravessamento dos textos acontece como parte do projeto estético e filosófico que Aira pensou e conseguiu desenvolver lançando seu livro para fora, em um lugar que não para de crescer.

Logo no primeiro texto do livro fiquei ensimesmado com a datação, o que me fez pensar em alguma forma de diário, me provocou bastante, pois ele imprime uma ideia de organização, de linearidade, como se o autor conduzisse a partir desse rico detalhe. Em diversos momentos essa razão entre os textos foi levada a questionamentos, pois a conexão entre os eles leva o leitor para um tatear de peças dispersas no escuro.  

É vária a natureza dos fragmentos ficcionais narrados no livro. Diário, memórias, relato, conto, ensaio, artigo literário, crônica, dissertações, história em quadrinhos, além de diálogos com as artes plásticas, cinema, televisão, teatro, os caminhos que Aira conseguiu grafar são um abraço no experimento/ literatura, o que nos faz mergulhar no que vem sendo feito e chamado de contemporaneidade literária. Aira passeia por diversos gêneros em distintas linhas de discurso, mas não se limita a pertencer a nenhum deles.  A força das narrativas se estabelece como forma também de pensar o livro como um mecanismo do fazer, tecendo considerações empíricas na estética e na semântica do que cresce no olhar sobre o tempo. O livro de Aira passa a ser um marco dentro de sua própria produção, mas também na literatura que vinha sendo produzida na Argentina, no mundo.

A importância do tatear é que no fim gera o resultado. As culminâncias que são apresentadas, a partir dos personagens do livro e seus processos, não constam apenas como finalidade da escrita de Aira. A vida é observada como experimento para a literatura, a fantasia veste a realidade e os resultados conseguidos vão além do final de cada leitura. Os experimentos de Aira são passos para a compreensão, mesmo que alegórica, da vida. Podemos ler tão claramente em “Todo homem” essa direção:
 
“Os resultados obtidos nessa experiência podem ser aplicados na realidade. De fato, os dois estágios não são tão diferentes assim. O experimento pode ser feito na realidade, e se por fim não servir, não se terá perdido tempo porque é uma atividade divertida e instrutiva.” (AIRA, 1998, p. 20)
 
As narrativas levam-nos a perceber que o escrever vai muito além do que o resultado/produto final. A prática, sem que se descarte o resultado, é sim o verdadeiro segredo, embebida de satisfação e instruída pelo processo didático de lapidação e reconstrução do fazer. Mesmo que os textos resultem em uma grande ineficácia para a realidade, o que vale mesmo é o processo pelo qual se passou para que ele fosse construído. O labor e a repetição são faces de uma mesma moeda que é lançada para o ar.

Depois de respirar e segurar mais uma vez o livro, pensei que a escrita de Aira se aproximava da vida e assim gestava a realidade em seu processo, em seu mecanismo de busca, do fazer, independentemente do resultado. Algo que está sempre em movimento, sempre a ser continuado. Mas a literatura carrega o verossímil, a que chamamos de distância entre pontos. Eis o jogo criado por Cesar Aira em seu “A trombeta de vime”.

E logo ele, o título do livro, apresenta inicialmente um primeiro passo para o jogo proposto por Aira. A trombeta, determinada pelo artigo que a representa como específica, e logo depois a locução adjetiva que complementa o título, “de vime”, algo que desenha o produto final como impossível de exercer a sua própria função, já que uma trombeta de vime não geraria som algum. O título aponta para o que vai servir como alegoria para toda a produção – um mecanismo estranho que vigora como metáfora produtiva, o que dá certo tom para auscultarmos a voz da obra.

Em A trombeta de vime, um dos textos do livro que também o intitula, começa por perguntar sobre como são feitos os livros. E o que vem a partir da narrativa se desenrola como uma imagem nítida, No limite, tudo é apropriado; qualquer assunto, qualquer intenção, qualquer atitude. (AIRA, 1998, p. 102). A trombeta de vime como um objeto que é e não é, que ganha a forma, mas não exercer a funcionalidade, ao menos a que se espera, diante de tal estranhamento é que se produz a essência do livro.

Atravessar as páginas, mas não sem ser levado pela força que propõe a obra de Aira, um mecanismo que busca pensar a literatura antes de tudo. Cada texto como um trampolim de aperfeiçoamentos no fazer. Cada página como uma lição sobre o limite. Cada questionamento como uma certeza de que o movimento se dá diante da percepção de cada fronteira. Recordo-me de que os 12 textos do livro me levaram para um lugar de esquecimentos diante das rotinas diárias em sua força inclassificável, e aos poucos a noite caía sobre os prédios e eu me perguntava em silêncio, não mais sobre o fim, olhava para o sol caiado e me detinha nas palavras sobre o fazer do caminho. Silêncio, tudo em silêncio, e já me sentia também entre algum mecanismo de Aira.   
 

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