Eduardo Lourenço: o poeta do pensamento que escreveu O labirinto da saudade
Por Maria Vaz
“O que fica dos homens e mulheres quando
alguma coisa fica e se alguma coisa fica? Para onde vamos? Eduardo Lourenço
gostaria de uma resposta lírica, “como a de partir em férias”. Fala da morte do
que é absoluto para nós – as outras são ilusórias, “sobretudo a nossa”.”¹
Eduardo Lourenço. Foto: Gonçalo Rosa da Silva |
Foi Lídia Jorge que o apelidou de poeta do pensamento. A sua vasta obra não tem
paredes nem tetos, mas a ausência dos mesmos deixa a instigação aberta aos que
lhe queiram suceder. Uma tarefa difícil que, decerto, ninguém a quererá
afirmativamente. Porque nas letras e na arte as pessoas são insubstituíveis.
Eduardo Lourenço é uma figura incontornável da
cultura em Portugal e nos países lusófonos de língua oficial portuguesa.
Prestar-lhe um tributo, com dignidade, exige que nos entreguemos ao seu
raciocínio e àquilo que fez com as palavras, de forma dedicada ao longo da
vida, para dar a conhecer o que, de si, era interiormente conhecido.
Ainda que o próprio defendesse que somos seres
externos e que a nossa interioridade é uma espécie de ficção, esta é
exteriorizável naquilo que as palavras nos permitem e são aquelas que nos possibilitam
ingressar numa espécie de viagem no tempo pela sua biografia e pelo seu O labirinto
da saudade.
Eduardo nasceu em São Pedro de Rio Seco, em
maio de 1923. Nasceu, por isso, após a primeira Sociedade das Nações e viu,
ainda jovem, o rebentar da Segunda Guerra Mundial, a reconstrução da Europa no
pós-guerra, a emergência do regime do Estado Novo em Portugal e a democracia que
floriu após a revolução dos cravos.
Passou pela Universidade de Coimbra onde, após
concluir a licenciatura, colaborou como assistente na Faculdade de Letras,
naquele que foi o início de uma carreira repleta de sucessos, que o levaram a
visitar as Universidades de Bourdeux, Heildelberg e Montpellier, Grenoble e
Nice.
A sua carreira estendeu-se a outras áreas além
da academia e serviu o país como conselheiro cultural na embaixada de Roma, foi
administrador da Fundação Calouste Gulbenkian e, mais recentemente, foi
Conselheiro de Estado.
Talvez, dizemos nós no tom que o ensaio nos
permite, que tudo isso o tenha influenciado a si e à sua obra.
Por todas as suas peculiaridades, a partir dos
anos 1950 foi associado ao existencialismo, embora nunca tenha assumido a adoção
de uma “escola de pensamento” e tivesse desenvolvido uma espécie de sentido
crítico relativamente aos rótulos ou escolas pré-estabelecidas.
Estudou grandes autores do pensamento
filosófico, como Kierkegaard, Heidegger, Nietzsche ou Sartre. Recebeu vários
prémios e doutoramentos honoris causa em universidades portuguesas e
estrangeiras e algumas condecorações.
Numa das suas obras seminais, que é esta de
que vos quero falar – O labirinto da saudade fala da paciência dos
portugueses e da importância que Os Lusíadas, de Camões, desempenharam como
garantia de identidade nacional durante a ocupação espanhola.
É também nessa sua grande obra, minunciosamente
erguida, que toca em pontos nevrálgicos do Estado Novo para afirmar que o que
manteve Salazar tantos anos no poder foi o analfabetismo.
Como partia do existencialismo, não me choca
que defendesse que podemos construir o futuro, quer em termos individuais ou
coletivos, sem o peso e as glórias do passado. Com os olhos alinhados nos
muitos caminhos que o presente proporciona e que o futuro possibilita como um
caderno de folhas em branco prontas a ser escritas.
Tornou-se um otimista convicto da construção
europeia, mesmo que antes disso se tenha assumido um pessimista em relação
àquele caminho. Uma mudança de opinião que fez questão de deixar fundamentada
com base na cultura e na construção de uma história comum, não só pela história
em si mesma, mas pelo papel e pela reconhecida importância da política europeia
na construção do pensamento europeu, na cultura comum e no avanço
civilizacional com a defesa dos Direitos Humanos.
É incrível a simplicidade complexa com que
aborda temas que requerem a amplitude de visão para deixar para trás o
patriotismo em contraponto com uma Europa globalizada, ao mesmo tempo que apela
indiretamente aos portugueses para irem além do seu umbigo ou das delimitações
territoriais do concelho ou distrito. Antes de se render ao universalismo era,
contudo, defensor de um patriotismo orgulhoso, embora não arrogante.
Mas não nos esqueçamos que, com O labirinto
da saudade escreveu um livro seminal sobre o que nos une enquanto portugueses.
Por isso, vai a Camões para iniciar a obra com a psicanálise mítica do destino
português e a sua obsessão com as glórias do passado, que nos expandiram por terra
e mar, mas também com o sonho do quinto império. Por outro lado, não deixa de
mencionar a quebra de coesão com a fuga da família real para o Brasil ou,
posteriormente, da importância positiva de vozes como a de Antero de Quental.
Traduziu, assim, o saudosismo labiríntico como
resultado poético-ideológico de um nacionalismo místico que sempre nos envolveu
como povo, desde Camões a Pessoa, e que teve muito peso na proclamação da
primeira República.
De forma entusiasmante explica-nos como esse
patriotismo, que apelida de ‘jacobino’ foi transformado em nacionalismo, já não
do povo, na linha do pensamento de Rousseau, mas agora como “totalidade
orgânica” que originou o Estado Novo, entre o paternalismo, o salazarismo e o
obscurantismo socialmente subcutâneo da época.
No meio da explicação passa levemente pelo
neorrealismo e pela influência do surrealismo contra o conformismo secular e
outra contra o moralismo instituído, bem como da importância da filosofia
portuguesa, que não esqueceu a influência da Geração de 1870, de grandes
filósofos antigos como Aristóteles ou Hegel e que passou pela poesia de
Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa ou Agostinho da Silva.
Depois aborda a rápida descolonização, em que
toca nomes como Spínola, Mário Soares e Almeida Santos.
Analisa todas estas questões com uma peculiar
clareza de raciocínio, em que facilmente a sua rica cultura literária nos
penetra mentalmente enquanto flui a narrativa histórica e filosófica.
Eduardo Lourenço tinha essa fantástica
capacidade de conseguir visualizar o todo além das muitas partes que o compõem.
Quem sabe, se ainda estivesse entre nós, teria
uma análise acerca da sociedade portuguesa em tempos de pandemia ou talvez nos
surpreendesse com a enunciação dos fatores que nos uniram ou deram coesão num
tempo de crise sanitária. Ou talvez lhes conseguisse dar continuidade a partir
do labirinto histórico que faz parte da nossa cultura e que ainda hoje se
espelha nos nossos costumes, no património material e imaterial e na cultura
geral que nos torna produtos inacabados de um espaço e de um tempo.
Eduardo Lourenço partiu no ano passado. Se
partiu de férias, onde quer que tenha ido, talvez se, de súbito, regressasse,
colocasse as mãos na cabeça ao ler este pequeno texto.
Nota
1 Texto de uma entrevista a Eduardo Lourenço,
num documentário sobre o autor realizado por Miguel Gonçalves Mendes.
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