Breve ensaio sobre a beleza na arte
Por Marcelo Moraes Caetano
Emily Kame Kngwarreye. Ntange Dreaming, 1989. |
Para Cassirer, a beleza é uma
constante do fenômeno humano, sem necessidade de teorias metafísicas sutis e
complicadas para a sua explicação.
No entanto, ela sempre foi alvo de
paradoxos em meio às diversas correntes filosóficas. Até a época de Kant, a
filosofia da beleza era ligada a fatores estranhos e exógenos, principalmente
nas culturas “civilizadas” (ou “policiadas”, como diriam Auroux ou Derrida) a
que se vinculavam a experiência estética e a própria arte. Em A crítica do
juízo, entretanto, Kant deu a prova convincente da autonomia da arte no
Ocidente em face de conexões obrigatórias com outros ramos do saber, como, na
época, principalmente em relação à teologia ou, pior ainda, à ciência. É claro
que a Arte Poética de Aristóteles, séculos antes, e embora remanescente
apenas em fragmentos, dera o primeiro passo nesse sentido, com o qual se
dialogou (e se dialoga) desde a sua vinda à luz até hoje.
A arte precisava passar a ser reconhecida dentro de sua lógica própria. A
Alemanha terá discursos próprios que permitirão a Kant (e outros) dar o brado
de liberdade de uma forma muito nítida em face do que se fazia até então. Falo
sobre isso em outro texto meu, publicado aqui mesmo, intitulado “Romantismo e
Alemanha: uma questão de necessidade”. Para essa alforria da arte, foi preciso
distinguir-se a lógica da imaginação da lógica do pensamento racional,
científico. Schlegel afirmará: “O princípio de toda poesia é abolir a lei e o
método da razão que procede intelectualmente e, uma vez mais, dar um mergulho
na fascinante confusão da fantasia, no caos original da natureza humana”.
Foi com a obra Aesthetica (de 1750) que Alexandre Baumgarten trouxe à
luz o primeiro ensaio sobre a lógica da imaginação.
No entanto, a lógica da arte continuava sendo considerada inferior à lógica do
intelecto puro. Heranças de Aristóteles, ou de Platão?! Apesar de se conceber a
lógica da arte como propiciadora de uma revelação moral e ética, feita por meio
de figuras, ainda assim ela era considerada apenas uma gnosiologia inferior e
sem autonomia, ancilar de outras expressões.
A filosofia da arte e a filosofia da linguagem têm em comum o fato (entre
muitos outros) de atuarem sempre entre dois polos: sujeito e objeto. A palavra
sujeito, no entanto, guarda tantas acepções, de intelectuais a metafísicas, que
chega a ser necessário dizer-se de que sujeito se está falando. Repare-se que
“sujeito” pode significar “o que sub-jaz” (do grego: hyppokeimenon) a
todo o restante; o sujeito sintático (na frase); o sujeito cognoscente (na
filosofia); o titular de um direito (na acepção jurídica); o alvo da sujeição
(também na acepção jurídica, em que o sujeito pode ser ativo — autor —ou
passivo — réu); o súdito (do latim: sub-diius), contrário a um soberano
etc.). Portanto, mesmo a questão, aparentemente simples, da oposição clássica
sujeito X objeto não é tão simples, não prescinde tanto de um adejo pela
metafísica, já que o sujeito é demasiado complexo — inclusive no ponto de vista
artístico.
No caso dos objetos, a arte e a linguagem têm a função comum primeira de
imitar, isto é, têm uma função mimética. Aristóteles declarava que a imitação é
um dos fatores que separam o homem dos animais inferiores. Afirmava, também,
que é por essa imitação que se chega a prazeres do aprendizado. Esta capacidade
ou faculdade imitativa seria comum a todas as formas de arte, não apenas às
artes representativas: música, dança, pintura, poesia, todas elas têm a função
de imitar “o que [os homens] fazem e sofrem” (Poética, de Aristóteles).
O caráter subjetivo (o sujeito e suas acepções polissêmicas) entra no seguinte
fator: se a arte é imitativa, a criatividade do artista poderia atrapalhar a
imitação, por falsificar ao objeto o seu verdadeiro aspecto. Dessa forma, a
arte teria também a função de corrigir a natureza, aperfeiçoando-a. Foi o que
disse Shakespeare. Beckett disse que a arte corrige Deus. Ou seja, não disse
nada de novo.
Aristóteles apelava a que o artista se concentrasse no convincente, ainda que
impossível, e não no que não fosse convincente, mesmo que este fosse o
possível. O artista deveria melhorar o modelo. A verossimilhança, assim, e não
a verdade, é o objeto subjetivo da arte.
Essa ideia era repercutida no neoclassicismo: a imitação da arte não é a da
natureza pura e simples, mas a da belle nature. Les Beaux Arts. The
Fine Arts. As Belas-Artes. O beletrismo. Etc.
Os defensores do classicismo e do neoclassicismo foram perdendo eco, e, com
Rousseau, a teoria geral da imitação praticamente ruiu. Ocorre que Rousseau não
considerava que a arte fosse imitação, mas sim “transbordamento de emoções e
paixões” (Lévi-Strauss o cita em Tristes Trópicos).
Com a “arte característica” de Rousseau, e também Goethe, percebeu-se que não
bastaria destacar o lado emocional da obra de arte, porque, se assim fosse,
ter-se-ia trocado a teoria onomatopeica pela teoria interjecional. A arte
deveria ser expressiva, mas também formativa. Trocar onomatopeia por
interjeição seria apenas saltar de um trilho a outro da mesma linha férrea: a
das emoções e sentidos.
Por essa linha de raciocínio é que emerge a necessidade da intencionalidade,
tanto à expressão linguística quanto à expressão artística. “Deixar-se arrastar
apenas pela emoção, diz Cassirer, é sentimentalismo, não arte.”
Por ser simbólica, enfim (lembre-se o famoso aforismo de Cassirer: “O homem é
um animal simbólico”), a arte não é a reprodução de uma realidade pura e
simplesmente, mas uma condução de visão objetiva das coisas e dos seres. Ela é
o descobrimento da realidade, não a sua reprodução.
A linguagem e a ciência são os dois processos principais de verificação e
determinação do mundo externo. A arte, por sua vez, lida com a beleza e a
verdade, a “unidade no múltiplo”, mas enfatizando-as, diferentemente da
ciência, que as abrevia. Assim, o artista é um descobridor de formas da
natureza, ao passo que o cientista o é de fatos naturais.
A ciência precisa abstrair a realidade, e abstração significa um empobrecimento
da realidade. Ao contrário do que acontece com o artista, o cientista precisa
simplificar a realidade, para extrair fórmulas dela. O Sol renovar-se todos os
dias — como diz Heráclito — é uma realidade para o Sol do artista, mas não para
o Sol do cientista. Para o cientista, o Sol é o mesmo. Para o artista, não.
O artista imprime a “fisionomia individual e momentânea da paisagem”. Por isso
mesmo é que a contemplação de uma grande obra de arte como que funde os mundos
subjetivo e objetivo. Hume dirá que “a beleza não é uma qualidade existente nas
próprias coisas: existe apenas na mente que as contempla”.
Para Kant, devemos distinguir “universalidade estética” de “validade objetiva”.
O julgamento estético parte de uma contemplação pura do objeto. A
universalidade estética significa que a beleza não se restringe a um indivíduo,
mas se estende a todos os indivíduos que julgam. Depois dessa penetração na
obra de arte, tudo passa a ser visto com olhos de artista.
Desde Goethe, a arte não apenas imitaria os fenômenos, mas interpretaria a
realidade não com conceitos e pensamentos, nem exclusivamente com sentimentos
poderosos, mas com intuições e formas sensórias.
De Platão a Tolstói, a arte foi acusada de acender paixões no ser humano,
ocasionando a desordem. Platão diz que “a imaginação poética rega nossa
experiência de concupiscência e cólera, de desejo e dor, fazendo-a florescer
quando devia morrer de sede” (Phèdre). Tolstói tem pensamento semelhante em
alguns casos.
Wordsworth afirma que a poesia é “emoção recordada na tranquilidade”. As
paixões, escuras e impenetráveis, tornam-se, com isso, transparentes. Essa
também parece ser a visão de Shakespeare em Hamlet, quando discorre, por
assim dizer, na boca do protagonista da peça, sobre o propósito da
representação: “Segurar o espelho para a natureza; mostrar à virtude seus
próprios traços”.
A arte dramática, então, desvenda uma nova amplitude e uma nova profundidade da
vida. No entanto, o processo catártico descrito por Aristóteles — purificação e
mudança do caráter e qualidade das próprias paixões — passa a ser visto como
uma mudança da alma humana.
Com isso, chega-se a uma liberdade estética, que não pode ser confundida com
apatia, ausência de paixões, mas com domínio dessas paixões. A vida emocional
adquire maior força, e, nessa mesma força, modifica sua forma. Assim como na
linguagem, o processo artístico é dialógico (Bakhtin), polifônico (Kristeva) e
até simplesmente dialético (Hegel), por isso o espectador não poderia ficar
meramente passivo. Em toda grande obra de arte, em todo grande poema, o
espectador tem de passar por toda gama de emoções humanas e de interconexões
com obras que ali estão presentes por contraste ou por comparação (Todorov em
seu Structuralisme et Poétique trata disso da forma mais cristalina
possível).
A grande arte cômica, voltando à raiz aristotélica, tem como característica uma
espécie de “elogio da tolice”. Erasmo de Rotterdam elevou isso à categoria de
monumento, como espécie de legatário da filosofia cínica de Antístenes e
Diógenes. Vive-se num mundo restrito sem que se seja, agora, prisioneiro dele.
Esta é a característica da catarse cômica. As coisas começam a perder o peso
material, e os acontecimentos, antes embebidos em desprezo, diluem-se em riso.
E riso é liberação, até mesmo no sentido de Bergson.
Mais uma vez reforça-se a fusão do olho do espectador com o olho do artista: o
espectador também constrói, a fim de obter a beleza que outrora o artista
extraiu das coisas.
Há artistas que chegam a considerar a natureza como “muda”, só podendo “falar”
quando a arte o permite. Assim é a visão de Benedetto Croce, por exemplo.
Trata-se da chamada “teoria espiritualista”.
Em comum a todas as controvérsias sobre escolas estéticas, vemos o ponto de que
todas concordam em que a arte possui um discurso independente. No entanto, o
poeta não pode se entregar ao simples impulso, pois deve ser guiado pela razão,
sendo sujeito ÀS (e não DAS) suas regras. Deve-se ter um compromisso com o
provável.
Young, no entanto, virá a comparar a pena do poeta à vara de condão de Armida,
pois ambas, a pena e a vara de condão, fariam “de um deserto estéril uma
florida primavera”. Ou seja, amplia-se o ponto de vista clássico sobre o que
era provável.
Vico faz um primeiro ensaio para criar a “lógica da imaginação”, no seu La
nuova Scienza. Ele declara que nas três idades — a dos deuses, a dos heróis
e a dos homens — está a essência humana. Nas duas primeiras idades, segundo
ele, é preciso buscar-se a fonte da poesia. As primeiras nações não falavam por
conceitos, mas por imagens poéticas, pois falavam fabulando e desenhavam
hieróglifos. O poeta e o criador de mitos parecem ter o mesmo poder
fundamental. Ambos precisam contemplar a realidade somente após terem dado vida
a ela.
Depois dessa etapa de sentir a vida interior da realidade, o poeta ainda
precisa exteriorizá-la, junto com seus sentimentos. “O poder mais alto e mais
característico da imaginação artística, escreve Cassirer, aparece neste último
ato”. Nesse veículo, o verdadeiro poema transcende a obra do artista
individual, passando a ser o próprio universo. Para Novalis, a poesia é
“absoluta e genuinamente real”. E arremata: “Quanto mais poético, tanto mais
verdadeiro”.
Com isso, estava proclamado que somente o infinito seria tema da arte. O belo
seria a representação simbólica desse infinito. De acordo com F. Schlegel, só
será artista “quem tiver uma religião própria, uma concepção original do
infinito”. Para tais concepções, a arte também só poderia medrar em terreno
maravilhoso e miraculoso, não podendo estar em meios vulgares e triviais.
Novalis chega a assumir-se decepcionado com Goethe quando este pareceu
enveredar-se por aqueles campos “vetados” da arte idealista.
Os realistas e os naturalistas, no afã, de busca da realidade mais prosaica do
século XIX, acabaram ampliando e aprofundando a concepção da forma artística.
Do mesmo modo como a linguagem pode abarcar todas as coisas, das mais baixas às
mais elevadas, assim também a obra de arte pode penetrar a esfera inteira da
experiência humana.
As teorias psicológicas da arte não precisam, diferentemente das teorias
metafísicas, apresentar um compromisso, por assim dizer, com a beleza. Freud e
sua concepção de Es (Id) ou Inconsciente tem nessa premissa uma das bases
inegociáveis da psicanálise.
Outra filosofia é a do hedonismo estético, que encontrou sua expressão mais
clara com Santayana. Para ele, a beleza é “o prazer considerado como qualidade
das coisas”. Trata-se do “prazer objetificado”. Segundo Santayana, a ciência é
“o pedido de informação e nela perguntamos por toda a verdade e nada mais que a
verdade. A arte é a resposta ao pedido de entretenimento... e a verdade só se
revela quando favorece esses fins”. Cassirer considera que pensar que os
grandes artistas trabalharam com o objetivo apontado por Santayana é
impossível. Na vida estética o prazer se transforma em função, muito além de um
simples modo de ser.
Na visão de Nietzsche, a grande arte de todos os tempos nasceu de um
entrelaçamento entre forças opostas, agregadas em A origem da tragédia —
Apolo e Dionísio.
Há também teorias que tentam elucidar a arte reduzindo-a à função de um jogo.
Trata-se da chamada “teoria lúdica”. A criança brincaria com coisas ao passo
que o artista brincaria com formas. O jogo serve como uma ação propedêutica, na
medida em que antecipa atividades futuras.
Como quer que seja, a questão da
beleza, do belo, de suas expressões, possibilidades (e limites) parece andar à
sombra da discussão maior não do que venha a ser a arte, mas de como ela venha
a se manifestar.
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