As leituras de Karl Marx
Por Christopher Domínguez Michael
Como poucas figuras da história
universal, Karl Marx mudou o destino de milhões de homens. De sua obra deriva,
em boa medida, a social-democracia, a qual, em fecundo conflito com o
liberalismo, criou sociedades onde o bem-estar se expande a níveis jamais
sonhados no périplo da humanidade. De sua obra – como precocemente o fizeram
saber anarquistas como Proudhon e Bakunin – nasceram também interpretações que
deram origem a regimes despóticos de uma crueldade concentracionária jamais
vista.
Mas se nos trasladamos a nosso
pequeno universo, ocorre que há outras pessoas que levam como próprios os nomes
de certos próceres – em minha infância conheci meninos Stálin e Sandino –, e no
México da autoproclamada Quarta Transformação, alguém chamado Marx (tendo
Arriaga Navarro por seus sobrenomes) chamou a atenção por ser um funcionário de
nível mediano, mas cheio de grandes ilusões calcadas no esquadro totalitário.
Muito distante no tempo, ou
arrojados da História em plena rodovia, ficaram aqueles esquerdistas
letradíssimos cuja dedicação à patrística marxista e sua heresiologia era, na
verdade, admirável. Os intelectuais que chegaram ao poder em 2018, como confessou
o próprio chefe do Executivo, contam-se apenas com os dedos das mãos. Eles
representam, digo eu, o mais rudimentar da esquerda, seriamente devastada desde
a queda do Muro de Berlim, quando aqueles que conservavam certa lucidez
apagaram a luz e fecharam a porta. Com exceção dos primeiros anos do regime dos
Kirchner na Argentina, a verdadeira intelectualidade (e não apenas na América
Latina) costuma ser rechaçada pelos populistas, cujos desgovernos,
diferentemente das antigas e saudosas esquerdas, depreciam sem paliativos os acadêmicos
das ciências sociais, os doutores universitários, os cientistas, os escritores
e os artistas. Desprezo moral e mesquinhez orçamentária aos quais se segue
inexoravelmente o slogan de reeducar o leitor. Disse nosso Marx que se deve pôr
fim à leitura como “um ato individualista de prazer”, a fim de utilizá-la com
fins emancipatórios.
Quem conhece a obra de Karl Marx
(1818-1883) encontrará um erudito formidável que encontrou seu paraíso na sala
de leitura do Museu Britânico, longe da vida precária de sua família, a qual
sobrevivia apenas graças à generosa ajuda do industrial Friedrich Engels. Para
qualquer leitor em tempo integral, é difícil dividir, em sua vida, o que lê por
prazer e o que lê profissionalmente. Eu li O Capital por inteiro, e se ostento
isso publicamente é porque uma vez o poeta Eduardo Lizalde e eu falamos dessa
experiência compartilhada, em tempos diversos, e concluímos que não perdemos
tempo: mesmo a página mais espessa e obscura exuma prazer erudito. Quem
comparou O Capital às sinfonias de Bruckner, por serem dramáticas e
brilhantemente barrocas, está coberto de razão.
Deixando de lado, por um momento,
as consequências práticas que tiveram os marxismos, Karl Marx deleitava-se em
ler todo tipo de economista burgueses ou socialistas, como seu amigo e depois
inimigo Proudhon, Jean-Baptiste Say ou Nicolas Linguet, este último uma de suas
inspirações. Sem “prazer individualista”, Karl Marx não teria percorrido da
história romana – de onde vem sua noção episódica da “ditadura” do proletariado
– até o socialismo francês e seus precursores (leia-se o que disse de Rousseau
em Miséria da Filosofia, escrito alegremente contra Proudhon), passando pela
economia política inglesa de Adam Smith e David Ricardo. Para não falar da
filosofia alemã.
Aquele Karl Marx não sabia que
iria incendiar o mundo, e era apenas um militante exilado tratado com todo o
respeito por essa sociedade vitoriana cuja hospitalidade honrou com um oportuno
e impecável comportamento burguês. Teve, infelizmente, seus sonhos de Prometeu;
e, igualmente, seu prazer de leitor, a ponto de em 1859 ter abandonado seu
“trabalho científico” para escrever um de seus livros menos conhecidos, Sr.
Vogt (1860), um volumoso panfleto (por seu gênero) para denunciar um espião, no
qual seu prazer pela sátira dividiu os leitores. Houve quem o reprovasse por
perder seu valioso tempo com a literatura, e quem, ao contrário, pensasse que
se tratava de um dos livros mais significativos de Karl Marx. No fim, diga-se
de passagem, quem fora um dos primeiros e dos maiores jornalistas modernos
acabara por ter razão: o tal Vogt – a quem Marx quis processar por difamação –
era de fato um espião prussiano a serviço de Napoleão III. Isso foi revelado
após o desastre de Sedan e a abertura, pelos comuneiros de 1871, dos arquivos
imperiais.
Karl Marx é inconcebível sem sua
paixão por Epicuro, assunto de sua tese de doutorado. Sem as paixões
intelectuais dos Jovens Hegelianos, contra quem acabou por opor Cervantes.
Várias de suas numerosas biografias o apresentam libérrimo em seu prazer
intelectual. Amava Ésquilo e Shakespeare (a não muito canônica Timão de Atenas
era sua tragédia preferida), Dante e Defoe, Goethe e Schiller, foi íntimo de
Heine (a quem perdoava suas inconsistências políticas de poeta) e dividia com
Engels a leitura, por prazer, de A Comédia Humana, de Balzac, a descrição mais
precisa do mundo burguês assinada por um legitimista monárquico, diziam,
estudiosos que foram da contradição dialética em filosofia.
Por prazer individualista lia Karl
Marx, como qualquer bom leitor que transmite sua emoção, por meio da leitura,
ao próximo, escrevendo gigantomaquias, manifestos, artigos, convocando círculos
de leitura. Atrevo-me a afirmar: não há estudante de filosofia, em sua
silenciosa solidão de leitor, aquela descoberta por Agostinho de Hipona diante
de Santo Ambrósio de Milão, que não se alegre desentranhando paulatinamente os
mistérios de Hegel. Assim foi Karl Marx. Suas consequências emancipatórias são
outra coisa: a tragédia do século XX. Mas os homens de ideias são apenas
parcialmente responsáveis pelo uso destas pelas gerações por vir. O Gulag,
retrospectivamente, é uma possibilidade remota na polissêmica obra
karlmarxiana, mas não deixa de ser uma possibilidade. O mesmo ocorre com a
relação entre Nietzsche e o nacional-socialismo.
Ler, apenas ler, não faz dos
homens livres. Stálin e Mao foram leitores de uma aptidão monstruosa, mas liam
para corroborar que a letra penetra com sangue, para não falar daquele
derramado pelos piedosos leitores dos livros revelados do monoteísmo. O frenesi
do livro emancipador empunhado contra o inimigo de classe desencadeou os crimes
da Revolução cultural na China. Se quem lê por prazer ou por egoísmo acha-se
sob ameaça, suas leituras hão de logo ser mandadas à fogueira. Vão querer
salvá-lo. Reeducá-lo, insisto.
Ler por fanatismo, como sugere
nosso Marx, com um propósito “emancipador”, é receita velha e malévola. Ler por
prazer individualista, pelo contrário, é ler criticamente, como fez Karl Marx,
que nunca teve poder – é bom lembrar – senão sobre um punhado de discípulos. Os
broncos com dinheiro do Estado para distribuir e recomendar a libertação por
meio da leitura são perigosíssimos. Não menosprezemos nosso pobre Marx: não
deixemos passar seu ameaçador desprezo pelo leitor criativo e vivo. Pelo leitor
irresponsável, acima de tudo, diante do poder e seus anátemas.
* Tradução livre de Guilherme
Mazzafera para “Lo que Karl Marx leia”, publicado aqui em Letras Libres em 31 jul.
2021.
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