Ada ou Ardor, de Vladimir Nabokov
Por Pedro Fernandes
Vladimir Nabokov. Foto: Giuseppe Pino. |
É num dos encontros entre Ivan Durmânov
e Adelaida Durmânov que os amantes redescobrem uma parte do intenso verão de
1844 registrada num álbum difamatório preparado cuidadosamente por um certo
rival. A leitura desses registros fotográficos, incluindo alguma especulação em
torno das fotografias do segundo reencontro dos dois, em 1888, supostamente
descartadas por Ada, se oferece como a oportunidade para que o horrorizado
espectador interessado em zelar seu amor dos olhos impuros e da sujeira do
mundo se sinta motivado a escrever o livro que agora lemos — “redimirei nossa
infância escrevendo um livro sobre ela: Ardis crônica de uma família”. Não é
apenas a confirmação do que suspeitamos desde o início do romance, quando
encontramos as inferências do narrador, da própria Ada e de um editor, nem só a
revelação do ponto de origem da narrativa, este é um instante que reata um traço
essencial na literatura de Vladimir Nabokov, o da metaficção.
Solto o interesse, Van desistirá
logo em seguida, mesmo apoiado por Ada, a levar adiante a empreitada que se
desenvolverá na surdina mesmo como um acerto de contas para com certa diretriz
do princípio de destituição do envolvimento sexual intrafamiliar, ainda que,
nas suas circunstâncias isso seja comum. No caso da família Durmânov, a
centelha do que passa entre Van e Ada, repete um circuito estabelecido com o próprio
pai de Van, quem, na juventude viveu um tórrido amor com Marina, a mãe de Ada. Esse
imbróglio amoroso do passado interfere continuamente nas situações do que
denominaríamos fio principal do relato desde sua abertura, quando se recupera
em modo cinematográfico o contato das duas crianças com os vestígios deixados
pelos amantes. De certa maneira, este romance brinca com o papel do Destino — e
este aparece assim mesmo como personagem muitas vezes — no desvio e refazimento
dos percursos de um tempo noutro tempo.
Mesmo que instantaneamente a ideia
de um livro capaz de restaurar o nascimento e enovelamento amoroso de Ada e Van
se desfaça, ela permanecerá uma obsessão, principalmente depois do desfecho desse
período de reencontro dos amantes ante o álbum de Beauharnais, que resulta em Ada
ou ardor. Mas Vladimir Nabokov retrabalha o motivo da metaficção de uma
maneira magistral; não se fixa no viciado modelo de destituição, aproximação e
distanciamento das fronteiras dos planos ficcional e da obra, praticando a
confusão entre o interior e o exterior dialeticamente. O tratamento
metaficcional nesse romance é puramente um jogo que se estabelece na redoma da
ficção. Isto é, Ada ou ardor não é o livro de Van, simplesmente porque o
livro de Van não existe; existe a caixa de máquinas do romance e é o que assistimos
como se um espectador assistisse ao ensaio de uma peça de teatro ou de um
filme. O recurso comparativo, aliás, constitui uma parte da narração: no segundo
encontro entre Van e Ada, em 1888, os dois adolescentes se confundem com o roteiro
de um filme que se ensaia nos jardins de Ardis e que reconta a narrativa de um
amor incestuoso tratado num livro de Mlle. Larivière, quem zela pela
educação primeira da irmã de Ada, Lucette. Disposto, assim, naturalmente esse é
dos episódios essenciais que servem à compreensão acerca do funcionamento desse
romance.
O que agora designamos como ensaio
de romance se utiliza de várias outras estratégias engenhosas: o deslocamento
proposital dos planos espaciotemporais; o estreitamento com outras obras da
literatura, mas não só, com obras do cinema e da pintura; e a recomposição de um
universo situado no que se denomina Antiterra, que é afinal, outro lugar
erguido na e pela ficção como retrabalho imaginativo da Terra. Esses tratamentos
oferecem várias camadas de leitura sobre Ada ou ardor que variam desde o
ponto idealizado pelo seu possível autor — uma crônica familiar — a uma pura fantasia
sexual que se desdobra no plano da imaginação a partir dos estímulos oferecidos
pelo primeiro contato desses amantes com o passado oculto dos seus próprios
pais. Realidade e invenção (termos que devem obedecer aos protocolos internos do
movimento ficcional, isto é, do acontecido ou imaginado neste plano) somam-se
como forças essenciais para o funcionamento do romance e sem assumir, quem
conta, um ou outro limite sob pena de não se estabelecer a verdade do narrado
que se desenvolve livre e naturalmente por mais descabida que possa parecer ao
censo literal.
Das estratégias que enumeramos na
composição de Ada ou ardor falemos sobre a primeira delas; o que se
desenvolve no século XX — temporalidade que conseguimos alcançar pela ordem de
existência do romance e alguns elementos da narração como o telefone nela
refigurado como dorofone — é um eco preciso do que se desenvolveu no
século anterior. Esses dois tempos formam um todo comunicante ou uma temporalidade
possível no interior do ficcional. Em parte, produto de um trabalho de
rememoração, a narrativa é a força de uma impecável perspectiva, redizendo as
palavras do próprio narrador. Essa estratégia tem favorecido a leitura desse romance
como uma ficção científica e não apenas pelo efeito temporal ou as
prefigurações de coisas e situações mas pela materialização de algumas
possibilidades, como o deslocamento ao redor da Antiterra praticável por via
férrea de continente a continente. Outro exemplo que poderíamos mencionar é
como a Mansão de Ardis, testemunha das descobertas sexuais dos púberes, se
integra numa região ora de um condado russo em plena América ora simultaneamente
como uma propriedade inglesa se reparamos no comportamento social de seus
habitantes ou francesa se observamos o trato de libertinagem com o qual se
colore a formação das relações amorosas do par romântico.
Vladimir Nabokov se apropria de
três núcleos criativos dos mais rentáveis no entre-séculos XVIII e XIX: o
romance russo, obviamente, estabelecido desde a abertura da narrativa de Ada
ou ardor querendo e não querendo restituir a forma do Anna Kariênina
de Liev Tolstói; o romance da era vitoriana — há muito dos imbróglios
familiares e também amorosos da burguesia inglesa continuamente interessada em
mobilizar essa instituição como uma via para acesso a ampliação do capital e de
alguns privilégios trazidos com ele: a certa altura, além de todas as
referências que pululam no manancial nabokoviano, Marina compara a filha a “uma
donzela saída de uma obra de Turguêniev ou até mesmo uma miss de um livro de
Jane Austen”, ao que a própria Ada intervém: “Para dizer a verdade, sou Fanny
Price”. Price é uma das personagens de Mansfield Park e se assume como
uma figura tímida, reservada e insegura, características que não se repetem de
nenhuma maneira na personagem-título do romance.
Isso tem a ver com o terceiro
núcleo criativo reapropriado por Nabokov: o romance libertino. De todas as
fontes, esta é talvez a mais essencial na composição de Ada ou ardor. Não
apenas pela licença dos corpos amantes que deslizam nos usos do prazer imorredouro,
mas pela atmosfera erótica que perturba todos os sentidos, ou melhor, que
duplica a realidade enquanto expansão licenciosa. O amor libertino é
acompanhado desde sua descoberta, passando por sua maturidade (já em conflito
com certa moral social) e alcançando um limite em que sua decomposição se confunde
com a debilitação dos corpos na velhice, quando o impulso erótico (capaz de,
quando não administrado, arrastar suas personagens para o limite trágico) se transforma,
na sua força crepuscular, num convívio que se faz mediado pela recordação do
vivido.
Se olharmos de perto, mesmo a
variabilidade ou interpolação dos aspectos espaciotemporais é executada pela
força da libertinagem, visto a conquista de tais rupturas se opera na e pela
linguagem, o território do possível e, portanto, a força soberana ao libertino
que fala para estabelecer uma ética livre de modelos pré-estabelecidos ou dos
valores imperativos, ainda que este outro mundo sirva especialmente a quem o
forja, sem alcance fora de suas próprias fronteiras ou tratado com desvio da
norma.
Cumpre então notar alguns traços
do amor que se instaura entre Van e Ada. Para os dois — e depois para a irmã de
Ada, Lucette, a aprendiz voyeur que os descobre e se descobre entre os
amantes — o amor é um jogo de extensões do prazer. E diretamente são muitas as
imagens do tipo nesse romance: desde a conquista e a aprendizagem dos corpos
imberbes às competições estabelecidas entre os amantes, desde os usos das
situações cotidianas aos códigos escriturais que adotam para se corresponderem
no intervalo entre o florescimento e maturação do amor. Isso que ora funciona
como impasse ora como estratégia de durabilidade do prazer é o que produz entre
os amantes um estágio que ao invés de favorecer a revelação de um para o outro constitui
o fingimento da revelação. É por isso a dificuldade dos amantes em aceitar que
na distância cada um vivencie outras experiências amorosas ou ainda a
impossibilidade do enlace amoroso quando os limites que o conformam são
bruscamente violados. Nesse último caso, não sobram os delírios trágicos do
amor romântico. Van até teatraliza dois episódios recorrentes nesse tipo de
romance: o duelo à moda russa e o suicídio do romance alemão, mas um é vencido pelas
interferências do destino ou algo parecido, e outro é transformado num pastiche
em que um pente de cabelos se confunde com uma arma. Mas, em algum momento, uma
das situações incorre.
É a partir de Lucette que o
universo fechado aos olhos dos amantes começa a perder o prumo. Ainda muito
pequena, a menina, interfere no enlace amoroso entre os amantes com gestos e atitudes;
mais tarde, fazendo-se dona das volições naturais do próprio corpo, se mostra
mais obcecada e intervém — está em todos os lugares possíveis da Mansão de
Ardis, o que sufoca os encontros e a realização dos amantes, e não se deixa
mais iludir com os jogos desviantes propostos por eles: “tal como um
bonequinho de uma caixa de surpresas, surgia de repente em qualquer lugar.
Queria que a levassem para passear. Exigia que brincassem de pular carniça com
ela...” É singular como o romance engendra as implicações sexuais do corpo
feminino a partir de uma perspectiva interior, desfazendo, portanto, das injunções
morais que deslocariam a questão para o regime das perversões. Para a irmã de
Marina, Aqua, na Antiterra só os bebês são inocentes, opinião que remonta
o comportamento da sobrinha e confronta com certo moralismo que impôs à criança
uma natureza desfigurada do desejo, da corporeidade e da sexualidade. A saída
de uma sexualidade mal administrada não é obviamente a mesma para Ada e Van.
Uma acusação contra qual este romance
de Nabokov opera é certo universalismo atribuído ao romance libertino. Se diz
que a libertinagem é produto de um mundo burguês, uma estratégia desses
habitantes de se afastar e escapar do tédio. Ou seja, o sujeito que aqui se
define encontra-se alheado de seu entorno social e submetido ao prazer como
prova da sua existência. Em parte, é o que se convém ao mundo dessa dinastia
russo-canadiana; prevalece a volúpia dos sentidos, as festas, as mesas fartas, a
entrega aos saberes que se confundem com o preenchimento de uma curiosidade
íntima e inútil ao andamento da história. Mas isso não é tudo em Ada ou
ardor. Ainda que não interfira na vida das personagens, estão manifestas
circunstâncias como a guerra, a perseguição e a censura.
Vale recuperar a referência
essencial para este romance, cuja famosa passagem de abertura é incorporada na entrada
de Ada ou ardor — Anna Kariênina, de Tolstói. No sentido obedecido
pela Antiterra, o romance de Nabokov em relação ao grande romance russo se
assume um antirromance. É possível dizer que o livro de 1969 é um romance
escrito sobre a Rússia, mas desfazendo-se de ater ao epígono de russo. Esse movimento
se estabelece em vários sentidos: no da forma e do tema, visto que, as histórias
de família e de amor negam os protótipos comuns e o universo fechado e
impositivo sobre a mulher não tem prevalência; e na dimensão do contexto. Dissemos
que o libertino se situa contra os modos encerrados e determinados e nesse caso
os do modelo soviético em vigor. Podemos ler a proposital alteração das feições
realistas pelas infiltrações do romanesco de cariz inventivo como uma tarefa
ora de desconstruir o grande romance russo ora de interferir numa diretriz ideológica,
sustentada esta pelas extensões do histórico, da política e do social. Isso
está muito às vistas no episódio tragicômico em que o narrador discorre sobre a
perseguição e a censura vividos por três renomados cosmólogos profundo
conhecedores da vida fora da Antiterra e sua obra: “X se suicidara; Y fora sequestrado
pelo empregado de uma lavanderia e levado para Tartária; e Z, um sujeito
engraçado de rosto avermelhado e suíças brancas, vinha levando seus carcereiros
de Yakima à loucura ao produzir crepitações incompreensíveis”.
Obviamente que Vladimir Nabokov
assim como se apropria de outros modelos romanescos não retoma pelos mesmos
sentidos o imperativo do romance libertino. Recupera-o desfigurando-o.
Recupera como modelo e reinventa-o como expressão própria. O mesmo gesto
praticado com os modelos sociais e ideológicos dominantes. Ao desfigurar, pela
diminuição ou pelo exagero, os costumes e todo um sistema social, Ada ou
ardor oferece uma visão irrisória do contexto com o qual dialoga. Esse
deslocamento constitui um esquema que diz sobre a degradação desse sistema ou mesmo
do indivíduo não como sintoma do tempo vigente e os valores do presente não
como empobrecidos em relação ao passado. Ao império da totalidade, do sujeito autocentrado,
da tradição como modelo permanente, o romance abre-se para a mundanidade e
esclarece que os tais desígnios de unidade são em parte subterfúgios para
disfarçar o que se estabelece como degeneração. Do mesmo modo, demove o que se faz
condenável da marginalidade imposta. O modelo do romance libertino lhe é útil
justamente por assumir essa dupla dimensão: refazer certas feições realistas
sobre a deterioração dos costumes e modos e esclarecer que isso não é efeito
exclusivo de um apagamento do passado. Este é, enfim, o ponto alto na obra de
um escritor que não se findou com apenas um livro nesse limite.
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