Treze haikus de Yosa Buson
Por Pedro Belo Clara
(selecção e versões)¹
I.
junto à pereira em flor
com o luar por candeia
a rapariga lê a sua carta
II.
sem roupa interior
o traseiro de súbito ao léu
– rajada de vento primaveril
III.
estes ociosos dias
de primavera continuam
– longe os tempos d’outrora!
IV.
de longe chega
o aroma das glicínias
– pálido luar
V.
ao longo da estrada
a lentilha-d’água floresce
sob a chuva nocturna
VI.
solidão imensa
– outro grande prazer
no crepúsculo outonal
VII.
noite de outono
um corvo de súbito grita
– desejo profundo
VIII.
a chuva cai sobre as ervas
enchendo os sulcos
deixados pelo carrinho
festivo
IX.
talhando um Buda de madeira
numa longa e fria noite
– pobreza sacerdotal
X.
a chuva vergando o trevo
como o pé dum vagabundo
– longa, dura jornada
XI.
ao vento frio um monge
curva-se diante palavras
cravadas na pedra
XII.
com nobreza, o sumo sacerdote
cumpre a sua cagada diária
– campos desolados
XIII.
(No aniversário da morte de Bashô)
a chuva de inverno no musgo
silenciosamente evoca
os felizes dias d’outrora
______
Yosa Buson terá sido, muito
provavelmente, um dos poucos poetas que atingiram uma elevada notoriedade sem
sofrer os reveses duma existência atribulada. Perdas pessoais, tragédias
persistentes ou pontuais, problemas financeiros ou vícios incontornáveis:
nenhum destes ingredientes temperou, com agravo, a existência de Buson.
Sem dúvida que tal benesse se
reflectiu na sua arte, nunca apressada para se tornar algo facilmente vendável
ou atingir fama que granjeasse sustentação material, nunca manchada pela fúria
contra o rumo dos acontecimentos, conforme se lhe iam apresentando, a natureza
do mundo ou o desatino dos destinos sempre irónicos e mordazes – ainda que de
tal agitada sementeira muitos tenham colhido frutos notáveis, tantas vezes regados
pelo sangue das suas feridas ou pelo sal das suas lágrimas.
Se bem canalizado, o infortúnio ou
o pesar pode, como tantos já comprovaram, constituir uma matéria bem fértil à
criação duma arte sólida. Mesmo desfrutando duma existência relativamente
tranquila, a obra de Buson não perdeu qualidade ou importância, antes logrou do
tempo e estabilidade necessários ao seu crescimento e maturação.
Ainda que hoje seja considerado um
dos quatro grandes mestres do género haiku, Buson viu a sua obra poética ser algo
relativizada em vida, apesar de respeitada. Publicou livros, teve discípulos,
participou em reuniões de poetas e era, de facto, estimado no meio, mas não se
poderá dizer que tenha em vida alcançado uma fama notória como poeta. No século
seguinte à sua morte – é importante frisar –, já quase ninguém lembrava o seu nome.
Somente graças a Shiki, um poeta do século XIX também versado no haiku, o Japão
adquirirá interesse em descobrir a obra dum autor que, à época, auxiliou a
revigorar o género poético celebrizado por Bashô.
Pouco se sabe da infância de Yosa
Buson, então Taniguchi Buson. Nasceu perto de Osaka, em 1716, no seio duma
família de relativas posses – proprietários rurais, certamente. Os pais separam-se
quando atravessa o período da adolescência, tendo ambos falecido pouco depois.
Teria Buson cerca de dezassete anos. Talvez aqui se encontrem as razões para o
poeta pouco ter falado sobre a infância, sequer visitar a sua aldeia natal. Sabe-se
que já perto do final da sua vida Buson vive a menos de quarenta quilómetros da
dita aldeia, e não existe qualquer registo em como a tenha visitado sequer uma
vez. Existe um haiku onde talvez se descortine um certo sentimento de amargor
relacionado com tal período da sua existência, um desejo em esquecer esses
primeiros anos, de tão árduos que foram:
este caminho
termina na minha aldeia
– rosas selvagens espinhosas²
Após a morte dos pais, parte para
Edo, a actual Tóquio, e começa a estudar poesia com um famoso mestre de haiku,
Hayano Soa. Lê e estuda a fundo a obra de Bashô, mas também se interessa por
outras artes, como a caligrafia e a pintura.
Em 1742, seguindo o exemplo do
velho mestre, parte em viagem pelo Japão, e é durante essa experiência deambulante
que desenvolve um estilo literário onde também se destacaria: o diarístico,
composto em estilo de literatura de viagem. Sendo budista, visita diversos
templos e encontra-se com vários monges, desenvolvendo a sua arte e o espírito.
Revelando talento para a pintura, começa por elaborar vários painéis para
adornar esses lugares religiosos.
Curiosamente, Buson primeiro adquire
reconhecimento através da sua pintura, e não pela arte poética que produzia – na
qual até admitiu saber-se mediano, apesar de sentir que só com vários anos de
prática tal arte poderia ser dominada. Graças aos trabalhos que consegue na
área da pintura, vai aos poucos garantindo a sua estabilidade financeira.
Já com quarenta e dois anos,
fixa-se em Quioto, onde viverá o resto dos seus dias. Decide, então, adoptar o
nome Yosa, provavelmente em homenagem à mãe e à sua região natal. Três anos
depois, casa-se finalmente. Acaba por ter uma filha, de nome Kumo. Pelo que se
sabe, por haikus e cartas, a sua vida familiar decorreu sem grandes
sobressaltos. Apenas, anos depois, o divórcio da filha constituirá um episódio
de maior relevo, mas ainda assim pouco significativo.
Passando as cinquenta primaveras,
Buson, atingindo uma perfeição notável na pintura e gozando fama no meio,
dedica-se com maior afinco à poesia. Funda um grupo literário com três amigos
poetas e investe seriamente no aperfeiçoamento da sua interpretação desta arte.
Sendo já um pintor de sucesso, populariza o género haiga, isto é, pequenas pinturas
a aguarela ou tinta que geralmente acompanhavam o haiku. Sendo experiente e
talentoso nesse tipo de arte, a transição foi natural. Ainda nessa década,
gozando duma vida financeiramente estável (mesmo que em vários haikus vá
confessando que é pobre), paga do próprio bolso a restauração da cabana onde Bashô
vivera. Foi um modo de prestar a sua homenagem ao grande mestre.
Em janeiro de 1784, segundo se
conta, Yosa Buson dita ao seu amigo Gikkei os últimos três haikus, falecendo de
seguida. Contava já com sessenta e sete anos de idade. Por sua vontade, foi
enterrado junto da cabana de Bashô³, lugar onde a sua esposa se lhe juntou,
anos depois. No ano seguinte à sua morte, os discípulos de Buson decidem
assumir o risco de publicar uma antologia dos seus haikus, mesmo que o próprio,
em vida, se tenha recusado a fazê-lo.
Para muitos críticos e estudiosos,
a dúvida não subsiste: se Bashô é o imenso e magnífico oceano do género haiku,
então Buson é um dos maiores rios que aí deságua, talvez só a par de Shiki ou
Issa Kobayashi.
Não se poderá obscurecer o facto
de serem visíveis as diferenças para com o grande mestre, esse sim, dotado dum
notável condão poético, capaz de maravilhar o seu leitor através do trabalho
simples e, ainda assim, imensamente belo e significativo. O carácter humano da
poesia de Bashô, altamente sensível, é inegável e, acima de tudo, duma
luminosidade ímpar, transparente como o som da água que ainda nos dias de hoje
ecoa naquele seu famoso haiku. Embora um talento inato tenha a sua participação
no resultado final, além do natural desenvolvimento do ofício praticado, os
preceitos do budismo Zen que Bashô cultivava também tiveram um papel crucial no
contorno da sua arte.
A contribuição de Buson para o
género é diferente, mas merece relevo: sendo principalmente um pintor, trouxe
ao haiku a sua capacidade de observação, um sentido de evocação notável,
permeado por uma sensibilidade muito própria. Deixa-nos assim este poeta-pintor
imagens duma beleza respeitável, mas também várias situações cómicas e, por
vezes, críticas, sem se coibir por maneirismos ou códigos de virtude. O retrato
impresso nos seus “haiku-pintura” era realizado de modo puro, sem grande
contaminação do pensamento ou da imaginação (pelo menos, em doses não
recomendáveis), correndo até riscos de parecer ou limitar-se ao óbvio, mas permanecendo
perto da essência de cada coisa, do coração de cada instante, seguindo o mais
sábio conselho de Bashô: “O haiku é somente este momento que acontece”. Afinal,
o próprio em vida admitiu que “procurou o que Bashô procurara”, pelo que a sua influência
não será de estranhar.
Yosa Buson teve o mérito de
injectar no género um novo ânimo, de o fazer erguer-se para além de si mesmo,
tão brando que corria o seu sangue desde os tempos do velho mestre – cortando o
laço com os preceitos mais clássicos, já num declínio ameaçador, embora não
tenha exercido uma influência propriamente revolucionária. Mas, se abrirmos os
portões do panteão dos imortais do haiku, não duvide o estimado leitor que aí
encontraremos Buson e a sua obra em lugar destacado – e que merecido repouso,
esse.
Notas:
¹ A partir das
versões inglesas elaboradas por Sam Hamill em The Sound of Water: Haiku by
Bashô, Buson, Issa and Other Poets (Shambhala Pub., 1995).
² Versão de
Joaquim M. Palma em Yosa Buson, Os quatros rostos do mundo – haikus (Assírio & Alvim, março de 2020).
³ Num certo haiku, escrito junto da
sepultura de Bashô, no templo de Konpuku-ji, lê-se: “quando eu morrer / quero
ser uma haste de erva ressequida / ao lado desta tumba” (Versão de Joaquim M.
Palma, idem.)
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