Roberto Calasso
Por Gabriel Bernal Granados
A maior parte dos textos
publicados em decorrência da morte de Roberto Calasso reflete, além de seu
lado criativo, o trabalho editorial que desenvolveu à frente da Adelphi por
pelo menos quatro décadas. Parece-me um equívoco não compreender que sua obra
editorial é um distanciamento natural da obra de escritor, que
foi alimentada, do primeiro ao último dos livros publicados, por uma
curiosidade intelectual insaciável.
Na verdade, a vida de Calasso
poderia ser dividida em dois grandes ciclos. O primeiro seria marcado pelo
profundo interesse que despertou, em sua juventude, o mundo das ideias
ocidentais (filosofia, psicanálise, teoria do capital); e o segundo, pela
amplitude incomensurável que sua obra se desdobra diante de nossos olhos como
criador de paisagens fragmentadas ou em ruínas.
Desde os primeiros livros se anuncia
já a vontade, tão profundamente nele enraizada, tão legítima, proveniente de
uma tradição que tinha Robert Musil, Elias Canetti e o improvável Franz Kafka
entre os seus integrantes mais ilustres; desde então, se anunciava a vontade de abarcar
tudo através do procedimento simultâneo de recontar tudo outra vez, mas de uma
forma diferente: alterando a ordem original das coisas e propondo uma nova.
Por trás da mania da pessoa — ou
da mente — que quer cobrir tudo, está a mania — não menos perniciosa — da mente
que quer entender tudo. Não é gratuito, nesse sentido, que o primeiro romance
de Calasso, L’impuro folle, foi um ensaio sobre as origens da neurose
moderna (ou da modernidade como neurose), que por sua vez se desdobra em um
romance policial em que o autor se identifica com o assassino. O que pode ter
sido originalmente o prefácio de uma edição moderna de Memórias de um doente
dos nervos, de Daniel Paul Schreber, tornou-se um romance sobre o caso
Schreber e a morte — ou assassinato — de nossa ideia de Deus.
O exame meticuloso desse conjunto
de evidências revelou-se um tanto ajustado aos alcances de uma sensibilidade
como a de Calasso, mais próxima da grafomania do que da contenção; assim
Calasso empreendeu a primeira de suas grandes expedições pela cultura do
Ocidente, com La rovina di Kasch. A publicação deste livro
inclassificável, no início dos anos oitenta, foi um acontecimento no panorama,
então um tanto nebuloso, da literatura europeia.
Quem era o autor; quem era Roberto
Calasso? Adorno o havia definido anos antes, quando, diante do espanto que a
conversa com o jovem lhe provocara; disse que este lera todos os seus livros,
os que havia escrito e os que não. Mas o italiano não foi apenas um acumulador
de cultura (um editor, cujas virtudes incluem também saber formar um catálogo,
tarefa que não é fácil se a editora para a qual trabalha está destinada a ser
uma das mais importantes do mundo), mas também um eleito.
Em La rovina di Kasch, Calasso desconstrói
e faz uma série de cortes transversais na grande árvore da cultura ocidental
moderna, deixando a seiva correr como sangue pelas quase 400 páginas de sua
história. Porque este livro, como um pouco depois As núpcias
de Cadmo e Harmonia (o mais belo de todos os seus livros) conta uma
história: a história da fragmentação da nossa cultura. Com seu grande estilo,
com a vontade inesgotável de abraçá-la e contar tudo, ele revela o que está por
trás, ou o que está embaixo, da Grande Árvore que ele derruba com a luxúria e a
violência de um lenhador que não sabia renunciar à piedade (o sacrifício, não
esqueçamos, é um dos grandes temas da obra ficcional de Calasso); e o que está
sob — ou na base — de uma árvore nada mais é do que raízes. Discernir as raízes
do que estava vivo até muito recentemente. “A cultura no Ocidente está morta”, parece
dizer, junto com George Steiner, seu par em mais de um sentido — o levaria mais
tarde a se aprofundar na mitologia grega e indiana (Ka, mais um marco em
seu vasto e rico universo bibliográfico); e o trouxe de volta às suas origens —
em A folie Baudelaire —, mas de uma forma muito mais
sensual e menos itinerante do que em La rovina…
Em suas obras ficcionais, Calasso
não imita seu alter ego ensaísta; também não podemos dizer que o excede, mas
antes o incorpora. Intervém narrativamente no corpo da cultura acumulado ao
longo de anos de voracidade de leitura e entrega uma série de livros-chave que
mostram sua coragem — sua vocação como absoluta. Depois do Ulysses de James
Joyce ou do O homem sem qualidades de Robert Musil, era impossível
voltar ao romance do século XIX para contar essas histórias.
No entanto, Calasso voltou e
aceitou o desafio de se tornar um contador de histórias no meio de um deserto.
Além de sua obra editorial, a obra ficcional, o significado de sua figura
literária, equivale à ressurreição após um período de esgotamento supremo. “Tutto
finisce in storia della letterature” [tudo termina como história da literatura¹], escreveu
em A literatura e os deuses. O leitor de suas obras não se dirige a
elas, porém, em busca de conhecimentos ou de citações, mas em busca de momentos
de perplexidade e de espanto. Sem dúvida, com ele se foi um dos escritores
mais significativos do final do século.
Nota:
1 A tradução é de Jonas Batista Neto (A literatura e os deuses, Companhia das Letras, 2004).
* Este texto é a tradução livre de
“Roberto Calasso (1941-2021)”, publicado aqui em Letras Libres.
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