Por que somos dantescos?
Por José María Mico
Dante e Virgílio caminham entre os sepulcros abertos que findam o dia do juízo final. Ilustração de Sandro Botticelli para A divina comédia, 1480-1495. Canto X, do “Inferno”. |
Há pouco mais de um ano, as
imagens dos caixões chegando em grande quantidade ao Palácio de Gelo de Madrid
tornaram inevitável a memória de uma das ilustrações que Sandro Botticelli
preparou para o seu inacabado mas impressionante projeto iconográfico da Comédia.
O que Dante e Virgílio veem ao cruzar as muralhas da capital do inferno e
entrar no sexto círculo é uma grande extensão de tumbas, e o autor a compara as
das necrópoles de Arles e de Pula, famosa e relativamente próxima de seus
primeiros leitores.
Em tempos de incerteza, as fotos
de Madrid pareciam uma performance pós-moderna do juízo final e eram, à sua
maneira, uma citação de Dante. Porque a Comédia é uma obra medieval
carregada de futuro. Nos sete séculos que nos separam da morte de seu autor,
foi copiada, comentada, impressa, ilustrada e traduzida inúmeras vezes, mas se
hoje fosse publicado como novidade em uma coleção narrativa, bastaria juntar
duas palavras à la page para designar a melhor estratégia promocional:
autoficção e distopia. E não faltaria quem propusesse sua adaptação em formato
de séria para televisão nem quem encontrasse o melhor resumo de seu roteiro no refrão
de um bolero popular, porque é a história de um amor como não há outro igual e
que nos faz compreender todo o bem e todo o mal.
Dante conta, como se tivesse
acontecido, a sua exploração de uma semana por três reinos do submundo, mas
desde o primeiro verso fala de nós, porque a sua experiência é também a
representação da nossa passagem pela vida, uma forma exemplar de compreensão de
nossas servidões e nossos desejos. Avança a passos largos pelos pecados
capitais que considera mais leves (os da incontinência: luxúria, gula e
preguiça), depois abandona esse esquema e analisa várias formas de violência, e
nos últimos círculos do inferno se demora a condenar a hipocrisia, que culmina em
traição, mostrando desde o primeiro até ao último canto uma obsessão pela avareza
(“velha loba infame”) como causa dos piores males.
O protagonista enfrenta as
consequências do pecado, formas variadas e vistosas de horror numa exposição
permanente de desvios espirituais e males morais: o turbilhão dos luxuriosos, o
grande canal dos soberbos, a linha opressora dos orgulhosos, a chuva
persistente que turva os raivosos, a floresta dos suicidas, a hidropisia cômica
e purulenta dos falsificadores, o gelo abissal dos traidores. Mas não se trata
de abstrações intelectuais: é Francesca de Rimini quem conta como se apaixonou
pelo cunhado, é o pai de Guido Cavalcanti que está entre os epicureus e sente
saudades do filho, é o Papa Nicolau III quem confessa seu nepotismo, é Maomé —
para Dante um cismático, mais do que um herege — quem literalmente abre sua
carne diante do espectador, é o trovador Bertram de Bórnio que caminha com “a
cabeça que, pelo cabelo / agarrada, pendia como lanterna”, é Ulisses que se
levanta ante seus homens e embarca em uma trágica exploração em busca do
conhecimento: “Considerai a vossa procedência: / não fostes feitos para
viver qual brutos, / mas
para buscar virtude e sapiência.”¹
Na poderosa imaginação de Dante,
que prolifera na nossa, esses personagens permanecem lá para todo o sempre, e
talvez nos aguardem. Somos peregrinos como o autor, mas existe também uma
possibilidade mais indizível: que nos reconheçamos nos condenados no Inferno ou
nos penitentes no Purgatório. Quem não conhece um político corrupto, um glutão
simpático, um oportunista sem escrúpulos, um artista vaidoso, um colega
mesquinho, um mentiroso compulsivo, um poeta afeito ao poliamor? Todos têm seu
lugar nos versos de Dante por terem sido como somos; estão onde deverem estar,
mas seu caso os diferencia e exige a atenção do poeta, sensível às infinitas
nuances e delicadas ambiguidades, como quando encontra seu mestre Brunetto
Latini entre os sodomitas e prefere recordar com carinho sua grande lição: “se
seguires a tua estrela, / não falharás ao teu glorioso porto, / se é que eu bem
discerni na vida bela”.
Os livros que nos salvam das
rotinas do dia — mesmo nos contando as rotinas ou as ruínas de seus personagens
— fazem parte de um território sem gênero no qual a verdade e a mentira não se
misturam, confundem ou compensam, não se alternam, nem se desafiam, porque são
simplesmente a mesma coisa. O “Purgatório”, com seus estratos isolados (exceto
para aqueles que, como o narrador, estão progredindo em seu caminho de
perfeição), pode ser a metáfora para este segundo ano pandêmico: os pecadores
devem purgar seus erros por um período de tempo variável, devido suas faltas e
pela ajuda externa que podem receber na forma de orações ou relatos de casos
exemplares, e sua penitência é bastante semelhante à nossa, de duração e fim
imprevisíveis, baseada no sacrifício pessoal e coletivo, mas orientada para a
esperança de um futuro melhor.
Também não podemos deixar de nos
identificar com alguns dos personagens do “Paraíso”, que na verdade é uma
espécie de abstração, um lugar sem espaço e sem tempo, uma hipérbole sustentada
de milhares de versos em que culmina a aventura do protagonista e que se
poderia resumir com as palavras que Goethe disse ter pronunciado em seu leito
de morte: “Luz, mais luz!” No meio-dia perfeito do empíreo, Dante encontra
exemplos de santidade, “luzentes / lumes dos quais, no qual como no quanto, /
podem notar-se aspectos diferentes”.
O amor de Beatriz ajuda-o a
resistir a essa luz cada vez mais intensa e a compreender os desígnios de Deus
e os mistérios da sua criação, encerrados num ponto de clareza absoluta e
figurativamente como um livro: “Vi recolher-se em sua mente superna, / num só
volume unindo com amor, / o que no mundo se desencaderna”. Em nossa época de
realidades virtuais, em que a ficção de Dante se move como um peixe na água, a
ideia de que tudo pode ser encerrado em um objeto simples e belo de menos de
1.000 páginas que nos acompanhará por toda a vida ainda é reconfortante.
No “Purgatório”, o poeta latino
Estácio tenta um abraço impossível com seu admirado Virgílio, que o lembra que
os dois são espíritos: “Irmão, / não faças, sombra és tu, / e sombra tu vês”.
Entre as centenas de personagens da trama, Dante é o único ser vivo, o único
que move pedras ou projeta sombra e, assim, provoca a ira dos demônios, o desconcerto
dos pecadores, o incômodo dos penitentes e a curiosidade dos beatos, e em seu périplo,
após as dúvidas iniciais, assume com responsabilidade e um ponto de orgulho sua
condição de testemunho feito de acontecimentos extraordinários. Ele é nosso enviado
à vida após a morte e nos conta o que viu. O propósito de Dante não era compor
a figura para a eventual contemplação da posteridade, como na vaidade dos
retratos, mas levantar uma obra memorável, soma de esforço e mistério humanos,
sobre-humanos a seu modo, de inspiração.
As grandes obras do que chamamos
de literatura mundial são incomparáveis, mas quase todas pertencem a uma certa
linhagem, porque aperfeiçoam uma tradição ou iniciam uma. Dante faz as duas
coisas. Em Dante vão de mãos dadas, como em outros autores antigos, a cultura
clássica e a nova poesia em romance que nasceu com os trovadores, mas a lista
de suas obras em latim e italiano é composta por uma sucessão de criações
surpreendentes que são, quase sem exceção, exemplares únicos, livros únicos sem
linhagem (a Vida nova, o De vulgari eloquentia, o Convívio,
a Monarquia).
Diante de outras grandes obras, a Comédia
é ainda mais surpreendente: pela ambição do projeto, pelas circunstâncias de
sua escrita, pela musicalidade de seus 15.000 hendecassílabos, pela angústia
moral de seus personagens, pela prodigiosa invenção de uma forma e de uma
estrutura que cria a ilusão de perfeição, pela precisão evocativa de seus
inúmeros tesouros verbais e por tantos outros motivos que nos ajudam a
compreender a dedicação incansável dos filólogos e, mais importante, seu grande
poder de sugestão sobre os melhores criadores de qualquer disciplina.
E aquilo, que é uma evidência
histórica válida para qualquer letra do alfabeto (Barceló, Blake, Boccaccio...),
também é questão do nosso presente. Enquanto escrevo estas linhas, o jovem
pintor Jordi Díaz Alamà está trabalhando em um ambicioso projeto pictórico para
o “Inferno”; há poucos meses, o dançarino de flamenco Andrés Marín projetava um
grande espetáculo baseado na Comédia e interrompido pela pandemia, e no
dia 10 de maio o compositor Mauricio Sotelo estreou uma intensa peça de “flamenco
espectral” no auditório do Museu Rainha Sofia em que alguns versos de minha
tradução soou na voz prodigiosa de Arcángel².
São maneiras modernas e acessíveis
de se sentir no paraíso, e sempre teremos a mais elementar: ler Dante, porque a
Comédia é um romance em verso, um poema que nos fala sobre do saber e do
viver, sobre a vida mortal e a vida eterna, por meio de uma ficção
autobiográfica que buscou atingir — e acabou alcançando — uma dimensão
ecumênica. É a fábula ideal para dar um sentido grandioso às nossas vidinhas,
uma cartografia do além que é tão imaginária quanto eficaz, porque traça o
melhor mapa antigo de um território invariável: a condição humana.
Notas da tradução
1 As traduções de passagens de A
divina comédia são de Italo Eugenio Mauro (Editora 34, 1998).
2 José María Micó é poeta, músico
e autor da tradução espanhola recente para A divina comédia (Acantilado,
2018).
* Este texto é a tradução de “Por
qué somos dantescos?”, publicado aqui, no jornal El país.
Comentários