Os desvalidos, de Francisco J. C. Dantas
Por Pedro Fernandes
Tanto tempo passado e com uma
recorrência tão marcante que podemos falar de uma tradição do romance sobre o
cangaço na literatura brasileira: O Cabeleira, de Franklin Távora; Coiteiros,
de José Américo de Almeida; Os cangaceiros e Pedra Bonita,
de José Lins do Rego; Seara vermelha, de Jorge Amado; Grande sertão:
veredas, de João Guimarães Rosa. Estes e Os desvalidos, de Francisco
J. C. Dantas são os que trabalham o tema como objeto principal da narrativa.
São os mais conhecidos, mas certamente existem outros. E, se considerarmos aqueles
títulos que em alguma passagem façam referência à questão, a lista se amplia;
com os romances existem ainda contos, crônicas e outra variedade de formas e
expressões literárias que figuram, positiva ou negativamente, a vida e as
atitudes no-do cangaço.
É simples pensar no assunto como sobressalente
em Os desvalidos, afinal é o que se encontra à superfície da narrativa.
Mas, comecemos por aqui até alcançar outra camada, talvez mais vigorosa para obra
em questão. Desde a abertura da narrativa principal, sabemos que o seu
protagonista se encontra desterrado num desses povoados perdidos no Nordeste
profundo do Brasil, depois de bater em fuga de um ataque de Lampião e seus
comparsas. Coriolano escapa da triste sina de ser imolado depois de empreender
uma longa travessia também de morte para Rio-das-Paridas, onde num passado estabelecera
um princípio de vida acomodatícia desde a morte de um tio boticário, de quem
herda o ofício e a oficina.
Obviamente que o forçado retorno
não se faz das mesmas garantias do passado. Nem pudera, se a vida mais ou menos
acomodada depois de algumas outras tentativas de subsistência só se mostra possível
noutro retorno anterior, à casa paterna, em Aribé, onde se desenvolve todo
episódio a partir do qual se destrinça os fios narrativos de Os desvalidos.
Entregue às fantasias do passado de alguma fartura, sem nunca se desfazer de
certo orgulho ferido, o que reluz como perspectiva para a personagem é a
notícia chegada de trem ao oco do mundo, dando contas sobre a morte de Lampião.
Esse lampejo, primeiro feito de desconfiança e depois de alguma confirmação pela
riqueza de detalhes que consegue catar no disse-me-disse do povaréu, favorece ao
desenvolvimento dos planos de Coriolano para outra viagem de retorno.
Se esses planos se confirmam ou
não, caberá ao leitor descobrir no entrançado de memórias que dão forma ao
romance de Francisco J. C. Dantas. Alinhavando tudo o que se conta — é muito —
encontramos pelo menos dois fios organizadores da narração: este dia de
iluminação e a longa noite de agonia que precede a fuga de Coriolano para
Rio-das-Paridas. Entre esses dois expedientes são muitas as situações e as vidas
que se encontram, afinal, não é este um romance apenas sobre as peripécias desse
anti-herói.
O primeiro fio organiza a primeira
parte da obra, feita de uma tentativa fracassada de o próprio protagonista escrever
um cordel acerca das duas desventuras até a estadia em Rio-das-Paridas. Aqui,
misturam-se os planos de Coriolano por deixar o vilarejo de seu desterro, sua
vida passada feita das muitas tentativas de angariar alguma alternativa que não
o empurre para dois dos destinos reservados aos do seu tempo: a servidão aos
senhores latifundiários ou sua integração ao banditismo do cangaço. No seu
caso, outro destino possível se assoma a estes, conseguir viver do plantio e da
colheita na nesga de terra do Aribé abandonada numa encruzilhada do sertão
entre Sergipe e Bahia. Mas, além de não se perceber na labuta com a terra
sujeita a ciclos naturais de alta irregularidade (ora a seca inclemente ora o
inverno pesado) este Coriolano está limitado por algumas condições físicas que,
embora não o impeçam para o trabalho formam as limitações carregadas desde a
infância quando se torna um enjeitado da própria família: arrasta uma corcunda
que se avoluma como o fardo em crescimento e uma perna defeituosa.
As características de Coriolano se
repetem de alguma maneira nas demais figuras em trânsito neste cenário feito de
agruras, resistências e alguma criatividade para a sobrevivência. Basta citar a
condição miúda de Tio Filipe e do amigo de desterro em Rio-das-Paridas, o pabuloso
Cantílio; ou mesmo o caolho Lampião e sua posição mal-ajambrada quando irrompe
pela segunda vez na narrativa. Naturais ou adquiridas, essas deficiências reavivam
o contexto de faltas, a aridez das vidas e a barbárie a que essas personagens
estão condenadas. A abastança, a vida aplainada ou o corpo são não comparecem
em primeiro plano no romance e são apenas entrevistos pelo que sonham esses
desvalidos; mesmo feito de toda sorte de deficiências, buscam ao menos
suplantar a condena imposta por um modelo de vida centrado no mando de classe e
na exploração capital.
É importante não se descuidar da
reiterada presença do dinheiro — ou a necessidade dele; todos estão submetidos
a consegui-lo de alguma maneira, sob pena de perecerem à penúria ou à inanição,
como foi caso recorrente entre a extensão de flagelados da seca que não deixam
de aparecer entre as memórias de Coriolano. Com o dinheiro, o poder de mando
imposto de alto para baixo é uma diretriz que determina o funcionamento das
relações em Os desvalidos; é dele que todos buscam, de alguma maneira,
escapar, fazendo-se donos de seus próprios destinos. Disso se orgulham, embora
não estejam permitidos a se livrar do esmagamento dessa roldana feita ainda da
opressão entre os próprios desvalidos. Exemplo disso é o cangaço que, neste
romance, não se apresenta apenas como uma causa da situação política, econômica
e social do seu tempo.
E assim alcançamos o segundo fio
da narrativa que organiza a segunda parte do romance, agora dividida entre as
movências do destino vulgar e incerto de Coriolano, Zerramo e Tio Filipe —
reencontrado depois de um longo desaparecimento desde quando tem o progresso de
vida interrompido pelo casamento com Maria Melona, uma mulher feita de toda a
estereotipia cunhada pela literatura popular — e os dias difíceis de uma
emboscada sofrida por Lampião e seu grupo nas redondas de Aribé. Aqui, a
narrativa busca deslindar a estreita relação entre o cangaço e o sistema latifundiarista
regido pelos coronéis. Aquele deixa de ser descrito como uma consequência deste,
o que muitas vezes levou a uma releitura do cangaço forma de resistência dos
oprimidos, desfazendo-se da imagem pejorativa imposta pelos poderes de domínio.
Sabedor da polêmica e sem querer
rivalizar com as versões dicotômicas forjadas pela história — e em parte fiel
ao princípio fundamental da ficção, o desfazimento das diatribes centradas nos
jogos de isso ou aquilo — o romance estabelece as duas circunstâncias
como produtos de uma dialética de violência e barbárie que remonta aos idos
tempos de formação do Brasil. Por essa leitura, os coronéis se beneficiaram dos
cangaceiros ao transformá-los em bode expiatório para seus desmandos e estes,
por sua vez, ganhavam o apoio capital e alguma segurança do coronelismo. Obviamente
que nessa relação não se opera uma equanimidade de forças — e isso fica
demonstrado pelo discurso de Lampião ao refletir sobre os destinos cada vez
minguados pelo cerco das forças policiais.
A figura histórica do assim
chamado rei do cangaço é poliforme neste romance. Não admite o viés de vítima —
se dele se beneficia —, nem está acima nesse sistema; não se fecha na imagem do
sanguinário ou do justiceiro, modelo de Robin Hood; nem o recria como o herói
ou o sujeito consciente de sua classe e por isso em luta por uma sociedade mais
justa e igualitária. Falamos que na primeira parte de Os desvalidos
Coriolano ensaia a escrita de um cordel possível de contar suas andanças e os
encontros com o bando de Lampião e voltamos a esse ponto porque é notável a
presença dessas narrativas populares na base ficcional do romance. Mas, ainda
que certa dicção dessas formas literárias populares constitua o colorido do
romance, tampouco é o que aqui prevalece, visto que toda idealização forjada,
mesmo citada, é desconstruída pela presença de uma personagem que transita
livremente entre o sério e o cômico; deixemos três passagens.
A primeira de quando ferido o
cavalo e o cangaceiro se arrasta numa série de reflexões sobre o destino, o
modo de vida e as relações com o coronelismo; Lampião caminha com a volante no
encalço para o que poderia se designar como uma longa noite de agonia sobre uma
grota às sombras do Aribé com dois cangaceiros de vigília em pontos alheios da
mata; no desfecho disso tudo, conta o narrador: “Lampião franze a testa ainda
pensativo, reabre os olhos cansados e enxerga em cima o Caminho de Santiago.
Arrasta a perna, desce da pedra e desafivela o cinto. Que bom poder esvaziar as
tripas na hora da precisão!” O ato de defecar se coloca como expressão do baixo
ventre e seu efeito de risível se estabelece justamente por todo o conteúdo que
antecede este episódio. É certo que se opera a desconstrução da figura heroica
ou sanguinária do cangaceiro, mas o impasse entre o baixo e o elevado, fazendo
aquele se sobrepor a este, atinge um interesse mais importante que isso: o de ridicularização
da encarnada figura de rei e tirano assumidas no imaginário popular.
Ainda sobre esse estatuto de rei, mais adiante é o próprio Lampião quem se
pergunta: “Que rei é este que só tem de seu a bela coragem, aqui em cima da
caatinga alheia, corrido como um cachorro?”
A outra passagem se oferece no
encontro entre os três cangaceiros e os três rancheiros de Aribé; estes não
conseguem encontrar naqueles tudo o que se espera pelo que dizem. O excerto se
faz um pouco longo, dispensa o riso porque agora descamba para o ridículo, mas
é um aprofundamento das desconstruções dessa figura pelo romance:
“Zerramo e Filipe estão ali,
sentindo pela primeira vez, em carne e osso, a má figura que faz este chefão
moído e tresnoitado, que nem parece um sujeito de quilate, um homem de tanta
fama! Nenhum dos dois tem olho bom ou algum fiapo de simpatia pra com o desinfeliz
escorraçado, sem estadeio de nenhuma vaidade, cheio de borra e maus tratos na
pedra da feia cara encardida, com um lote de anéis nas garras sujas, e uns
atavios estraçalhados. Ninguém enxerga nele a bela coragem de homem destemido,
a audácia descontrolada em bárbara grandeza quem enfrenta sozinho a milícia do
governo. Bicho caçado a armas poderosas! Fazem é gozar o espetáculo de vê-lo
assim xambouqueiro, de calça arrochando as perninhas de cambito, adernado pelas
cartucheiras que não desatrela; o olho nojento repuxando a fonte descamada;
cachorro diminuído, como um palhaço mangado metido nos seus andrajos. E ali
mesmo os dois se decompõem alarmados diante da figura desconforme com fama de
herói.”
Por fim, o terceiro momento —
sutil e engenhosamente bem construído. Desenvolve-se quando Lampião propõe a
Tio Filipe que sirva de intermediário entre os cangaceiros e seus protetores; a
primeira fama do caixeiro viajante é a de conseguir amansar e educar
cavalos para a boa estirpe. Surpreso e decidido a fazer o líder do cangaço
desistir da proposta, inicia certo trabalho de sedução para com a variedade de
objetos e bugigangas que negoceia. Obviamente que a atitude não surte qualquer
efeito; outra vez o narrador aproveita para dizer sobre Tio Filipe: “Habilidade
verdadeira, só tinha para os cavalos, e seu bom sentido só se esmerava
mesmo na guarda dos antigos metais de estimação”. O destaque proposto aqui é
proposital para uma afirmação também proposital que se sustenta ao alinhar num
mesmo plano de sentido cavalos e Lampião. Mas, ao invés dos dois
vocábulos repousarem em correlação, se repelem. Lampião é mais cavalo que os
cavalos amansados por Tio Filipe, visto que, seus truques em nada funcionaram
com o cangaceiro.
Com isso, o romance alcança seu grande
feito: demonstrar que todos nesse desterro são desvalidos e que estes são a
parte renegada de uma sociedade fundada em cisões profundas, em que as classes
se mantêm de um complexo conluio de forças. Não quer, entretanto, se colocar com
a superada ideia de que os desvalidos são os verdadeiros heróis da
história, porque estes também estão construídos das mesmas características
encontradas em todos os estratos sociais: o orgulho, a ganância, o interesse, a
vaidade, a mesquinhez, a inveja, a cobiça. Esses elementos igualam todos como
filhos do mesmo seio de Eva. Isto é, este é um romance que não faz concessões
como se arrisca muitos dos escritores da geração vigente e que acabam
praticando outra coisa que não é literatura, certamente. Francisco J. C. Dantas
faz de Os desvalidos uma obra-prima. Recupera toda uma tradição
romanesca e popular ampliando-as pelo que a literatura pode sempre oferecer: um
engenho de imaginação e linguagem. Entre o oral e o escrito, o erudito e o
popular, o histórico e o ficcional, nada aqui se sobrepõe, mas se equilibra
para oferecer um rico manancial de sentidos.
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