O feiticeiro, de Xavier Marques
Por Pedro Fernandes
É recorrente entre os leitores um
argumento que, talvez por se repetir com alguma frequência, adquiriu um
estatuto de verdade inquestionável e todos nós, alguma vez, teremos nos
utilizado dele: é o de que tempo é sempre o melhor indicativo sobre a
permanência de uma grande obra literária. Sim, todos os livros que lemos como
clássicos da literatura resistiram às forças de Cronos. Mas não existem
quaisquer garantias, mesmo se continuarmos a existir por tempo posterior igual
ao que alcançamos, que estas obras permaneçam lembradas e lidas com o fervor notável
na nossa contemporaneidade.
Da mesma maneira que a permanência
de um livro não se deve exclusivamente ao tempo, parece limitado entender os
esquecimentos como um acontecimento proposital, motivado em exclusivo pelas
artimanhas das ideologias dominantes. Nesse caso, a tendência tem demonstrado o
seguinte: as obras filiadas estreitamente aos motivos ideológicos correntes estão
entre as primeiras fadadas ao esquecimento. Mas isso, outra vez, não é um fator
definitivo.
Mesmo em literaturas jovens como a
brasileira, sobram exemplos que servem como questionamento a esses dois princípios.
E um deles é O feiticeiro, de Xavier Marques. Mas, poderíamos
acrescentar à lista uma variedade de títulos redescobertos na contínua e
necessária revisão do nosso cânone, incluindo, em muitos casos, escritores ainda
em pleno ou no melhor do fulgor criativo que, foram enviados para o limbo ainda
em vida.
Avancemos sobre o caso do escritor
baiano. Embora nascido fora do que se convencionou o eixo do país, sua vida se
fez, em grande parte na capital do Brasil. Foi no Rio de Janeiro onde viveu
durante os anos que assumiu uma carreira política que lhe trará mais desconsolo
e poucas conquistas, ao ponto de retornar para Salvador, a cidade onde se formou
e terminou seus dias de vida. Em reconhecimento ao seu trabalho como escritor Xavier
Marques integrou a Academia Brasileira de Letras, numa ocasião, talvez, em que
este lugar era mais bem frequentado ou ao menos se buscava zelar pelo nome que
carrega.
José Veríssimo, o crítico
literário mais importante do seu tempo, destacou Xavier Marques como possivelmente
“o escritor mais distinto entre os escritores provincianos, e mesmo” ―
acrescenta ―
“um dos mais distintos entre os escritores do gênero no Brasil”. E, quando isso
foi dito, ainda nem havia chegado entre os imortais, nem existiam O Sargento
Pedro e O feiticeiro, que constam entre os mais importantes títulos de
uma prolífica bibliografia que inclui ainda poemas, contos e novelas. Nos anos
1960, outro baiano, este de ampla repercussão, Jorge Amado, saudou o escritor de Itaparica
como “pai do romance baiano”. Numa pista do percurso criativo de Mário de
Andrade nota-se não só o convívio do escritor com o texto de O feiticeiro,
como sua influência direta na concepção do sétimo capítulo de Macunaíma,
“Macumba”.
Ainda O feiticeiro
circulava como folhetim, quando apareceram publicamente as primeiras críticas.
Jackson Figueiredo, por exemplo, destacava o livro como “o mais romance dos
romances de Xavier Marques” e colocava seu autor com o mais importante na
ficção brasileira depois de Machado de Assis e Aluísio Azevedo. Mais tarde, o
livro é lido por Lúcia Miguel-Pereira como a “experiência romanesca mais
interessante de Marques”, repetindo os termos de Thiago Mio Salla no texto de
apresentação da edição mais recente do romance entre nós.
Ora, é verdade que a opinião da
crítica pode sempre soar como galanteio ou mesmo puro exagero de leitor
apaixonado, mas é uma prova de que o livro não esteve preso aos modismos do seu
tempo, um fator primeiro e decisivo para o esquecimento. Por outro lado, nada existe
― ou
pelo menos é isso que parece ― capaz de se apontar como elemento
desfavorável à permanência da obra e do escritor, nem o famigerado critério
biográfico que se utiliza para tudo nos dias que correm, nem a criatividade
medíocre.
A terceira edição de O
feiticeiro foi publicada em 2017 no âmbito de um projeto editorial conduzido
pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo; a ideia é reeditar
obras da literatura brasileira que ficaram perdidas preservando uma criteriosa
revisão crítica dos textos e cuidadosa apresentação do objeto-livro. No caso
deste quinto volume da coleção Reserva Literária, editada numa parceria entre a
Com-Arte e a Edusp, reencontramos o livro de Xavier Marques com um conjunto de
notas esclarecedoras sobre vocabulário e usos culturais e dois textos de apoio
sobre o escritor, sua obra e este romance.
O material utilizado por Xavier
Marques na composição de O feiticeiro foi cultivado por mais de duas
décadas: aparece primeiro como Boto & C., em 1897; só depois é retrabalhado
pelo escritor para ser publicado como folhetim no jornal baiano A notícia entre
1914 e 1915. Aqui, a ideia da forma em livro já está visível, uma vez que,
segundo Thiago Mio Salla, preserva-se entre a versão para jornal e a edição
definitiva de 1922 a divisão em capítulos e as quebras entre um bloco de texto
e outro “não gerarem suspense pela ausência de peripécias adicionais, pela não
multiplicação de incidentes e pela ausência de redundâncias que visariam a reativa
a memória do leitor.”
Ainda não estavam naturalizados entre
nós os procedimentos inventivos que deram forma ao nosso modernismo, mas O feiticeiro
é, em vários aspectos, um romance moderno; inclui-se entre eles: a reapropriação
dos protocolos de narração estabelecidos numa tradição, quais sejam as fontes
românticas, realistas e naturalistas aqui retrabalhadas, quais sejam certa
celebração do homem e a terra de pertença e sua convivência com as múltiplas
manifestações culturais aí estabelecidas em parte como gesto de negação do
estamento português e assunção de uma identidade original; e o desfazimento das
fronteiras de linguagem, “acrescentando-lhe a força ampliadora e libertadora do
folclore e da cultura popular”, para citar uma das características do modernismo
brasileiro segundo João Luiz Lafetá em 1930: a crítica e o modernismo.
À maneira romântica, um dos eixos
de narração é o amor assumido entre dois jovens de classes sociais díspares;
mas o que poderia constituir o impedimento para o enlace amoroso é subvertido
pela presença da capacidade sobrenatural administrada pelo homem que aqui
intervém em favor dos amantes. Eulália, de uma pequena família mantida às
custas do comércio do cunhado, se vê repentinamente envolvida com Amâncio Neri,
filho de um comendador.
Note-se que ainda estamos presos a
outro traço do romantismo: o casamento significa não apenas a realização amorosa,
mas o restabelecimento da ordem social da família num ajuntamento em que tal
condição se funde com certa ideia atravessada de soberania, que é muito mais
certa dose de orgulho próprio sobre o outro. É nesse sentido, aliás, que o
narrador estabelece como elemento rival o núcleo constituído por Basiliano,
médico da família Neri, e sua mulher Tomásia, afeita ao lado mau da feitiçaria,
e a filha Antonieta ― ambas explicitamente picadas pelo veneno da inveja, o que
implica a desidentificação do narrador ao ponto de eleger a deformação como
marca distintiva dessas duas mulheres. Este é um exemplo, aliás, que denota as recorrências
naturalistas.
Correspondido o amor, o que coloca
em perigo sua manutenção e mesmo seu estabelecimento são os fantasmas que
começam a alimentar a consciência de Lali quando, desapontado com o fiasco
destino político, Neri viaja para o sertão em busca de restabelecer o saldo de
dívidas de outros proprietários em negócios do pai. O narrador demora-se na
passagem desses dois meses de ausência do jovem fundindo a angústia de espera
da amada e do seu núcleo familiar com a própria forma narrativa.
Nesse silêncio, acentua-se o
espírito educado entre o fervoroso misticismo que atribui aos domínios do
invisível como manifestações capazes de intervir nos destinos terrenos. Soma-se
a isso os impasses estabelecidos pela rivalidade e intriga entre os dois
núcleos familiares referidos e está formado o grande espectro que abala e
coloca em risco a linha do amor. Esse dilema entre o visível e invisível é, certamente,
um dos melhores momentos da narrativa, porque acompanhamos um eu que se debate
entre a angústia da espera e o fracasso do futuro.
O sujeito descrito na narrativa de
O feiticeiro parece tomado pelo intervalo dessas duas forças. E, por
causa disso, atribui àquele que lida com o oculto a alternativa de controle
sobre o porvir. É aqui que se revela toda a exuberância de uma Bahia que cedo aprendeu
a estabelecer suas conexões com os cultos de matriz africana e a vida
cotidiana, ampliando-a numa rica extensão imaginária. Somos levados ao terreiro
de pai Elesbão, testemunhamos os ritos do candomblé e compreendemos como o
governo das forças sobrenaturais por esta personagem determinam as variações sentidas
na casa de Eulália. Em alguns momentos, e eis um traço da força realista, o
tratamento da narrativa beira ao etnográfico.
É importante pontuar como o escritor
se apropria das variantes vocabulares e das manifestações das entidades
sagradas dos cultos, às vezes percebendo seu sincretismo com as expressões do catolicismo.
É esta linguagem outra que interfere e participa da chamada linguagem comum,
modificando-a; não só isso, mas as variantes linguísticas assumidas entre os
vários estamentos sociais são também capturadas pela sua pena. É nesse sentido que
O feiticeiro se revela moderno. E o melhor, nada dessas interferências
de linguagem são à parte, coisa que desestabilize o discurso narrativo. Tudo
nele se integra e nos oferece um rico afresco da Salvador do fim do século XIX
e início do século XX.
Ainda no âmbito desse espectro que
modifica o espírito e as próprias atitudes de Eulália, há outro elemento que
contribui para tanto ― além do misticismo e da intriga; a presença do vaticínio.
Na tragédia grega, o oráculo sempre prediz a desdita e dela o herói é um inescapável.
No caso deste romance, o predito por Elesbão, que chega à apaixonada não pela
boca do próprio vate, mas pelo que foi dito a Josefa e repassado por ela para a
filha Pomba, é naturalmente vulnerável e não dispõe de quaisquer imperativos,
abrindo a consciência da personagem para novos embates sobre o desfecho do seu
amor.
Há uma passagem singular da
narrativa que esclarece a riqueza criativa de Xavier Marques na articulação
entre visível e invisível no desenvolvimento de uma consciência perturbada do
sujeito. Cada vez mais obcecada com o amor e tomada pela espera e o destino
trágico que se avoluma sobre si, Eulália será tomada por sonhos de cariz
inventivo-surrealistas em que se confundem o vivido como o imaginado. Assim,
encontramos a personagem situada à varanda de casa na contemplação do entrudo
de Carnaval com as notícias sobre os ritos do feiticeiro e o amor tornado em
aberração grotesca. Deixemos falar o romance; a passagem é longa, mas
esclarecedora e necessária:
“Estava à janela, ao descambar do
dia. Sob as frondosas gameleiras do largo viu mover-se uma multidão de negros
que em pouco tempo alastrou metade do Terreiro. À frente uma charanga selvagem,
figurantes velhos, trôpegos, medonhos, obedeciam aos movimentos de um grande
penacho multicolor, sacudido pela mão de agigantado africano, cuja boca
desconforme sorria, num arreganho canino, com a dentadura branquejante sob o
arredondado de uma carapuça vermelha... Negros e negras avançavam numa dança
fantástica, macabra, a rebramir como feras... Chegaram às grades do chafariz,
fizeram círculo; pôs-se a girar como um pião, ao centro da roda, a mais alta de
todas as negras... E a girar, a girar, continuou, até romper o círculo,
aproximar-se de uma gameleira e, num salto de mono, agarrar-se doidamente ao
galho da árvore, de onde se despenhou daí a pouco, hirta, fulminada, em meio da
algazarra das malungas.
Quase ao mesmo tempo, a cena se
deslocara para o interior de um casebre, numa rua ladeirenta e escura. Aí
reaparecia a mesma negra encovada em uma cadeira de lona, a cabeça, toucada de
branco, volta para as chamas de duas velas que alumiavam São Cosme e São Damião.
A seus pés rastrejavam grandes cágados, tamanhos, como tartarugas, e em redor
pendiam das imundas paredes tranças de cabelo, animais dessecados, sandálias de
veludo, adereços e retratos, entre estes e o de Amâncio! Então caminhou para a
alucinada pitonisa o possante negro de barrete escarlate e lhe perguntou se o
Neri voltava para se casar, ao que respondeu a interrogada, arregalando os
olhos, fitando-os no retrato de Amâncio e sacudindo a cabeça em sinal
afirmativo.
Depois disso, outra vez no
Terreiro a mesma turba negrejante, os mesmos tocadores de tabaques, a mesma
comparsaria movendo-se aos pulos, como uma praga de sapos, atroando os ares com
vozeria de candomblé. E chegados que foram ao pé da gameleira, a cujas raízes
amarelejava um lago de azeite da costa, fizeram uma roda, batucaram e, passados
alguns minutos, puseram-se em marcha para o cruzeiro de São Francisco.
Espetáculo pungente angustiado,
desdobrou-se-lhe então aos olhos. À frente do rebanho louco, uma figura
hedionda ―
uma africana monstruosa, de olhos de carbúnculo, com as mamas formidáveis em
completa nudez ― trazia às costas, atado à cintura por um pano de listras,
um moleque retinto que apenas mostrava o focinho simiesco por baixo do sovaco
da mulher-monstro, quando ela erguia o braço armado de vergasta e vergastava,
compassadamente, implacavelmente... Amâncio Neri! Ele ― coitado! Que horror!... ― E
ela via-o contorcer-se àquele desumano açoite, com a mala de viagem de uma para
a outra mão, a dor e o arrependimento estampados na fisionomia espectral.”
O sonho não cumpre neste romance
nenhuma antecipação do futuro; este parece obscuro até mesmo para o oráculo que
apenas prediz uma possibilidade. O sonho estabelece uma maneira de
presentificar os volteios de uma consciência sob o signo da espera; é ainda uma
memorável síntese da própria narrativa, uma vez se misturar nesta passagem
todas as circunstâncias entrevistas pela dimensão imaginária formada desde as
histórias que lhe chegam sobre o terreiro e os ritos do candomblé; e mais, esclarecem
o embate da própria mulher branca, de educação católica para com outras
manifestações religiosas relegadas por sua ideologia formativa.
A narrativa de O feiticeiro esclarece
como os cristãos católicos abnegam e até condenam a religiosidade dos africanos,
mas se decide pela confluência do sincretismo ao testemunhar os estreitamentos
de Paulo Boto, o cunhado de Emília, com o terreiro de pai Elesbão; se toda a
realidade das personagens está administrada pela dimensão do sensível, então
não é apenas sob sua sombra que se desenvolve o amor impossível, mas prosperidade
dos negócios familiares e a proteção dos trabalhos feitos para o mal.
Xavier Marques desconstrói a imagem
negativa forjada pela ideologia do catolicismo ao mostrar o convívio harmonioso
entre credos ou o exercício do culto afro como uma atividade para o bem e não
para o mal como ensaia a inimiga da casa Boto. Com o mesmo interesse oferece sub-repticiamente
uma denúncia sobre a perseguição imposta pelos poderes dominantes contra as
liberdades de credo em seu tempo. Paulo Boto não apenas angaria recursos para a
manutenção da ordem administrada por Elesbão; exerce o papel de importante
força política para a segurança e a liberdade dos cultos.
E por citar a política, todo
conturbado momento da segunda metade do Segundo Reinado, com as rixas entre
conservadores e liberais, as crises econômicas e desinteresse do centro poder com
o que se passa no interior do país, além do testemunho sobre o aparecimento dos
primeiros brotos da ideia republicana, comparecem em O feiticeiro. Deixamos
de acompanhar esses conflitos pela inteireza emergida do centro do poder ―
como vemos em Memórias do sobrinho do meu tio ou mesmo em Recordações
do escrivão Isaías de Caminha para citar dois romances com narrativas
situadas na capital do Brasil ― para entrever suas reverberações e
impactos no interior profundo do país. O que se atesta não difere muito do que se
passa nesse instante: o desinteresse da ordem política em oferecer outra saída
que não a condena ao esquecimento porque está, antes de tudo, interessada nos
interesses particulares; o eleitor como moeda utilizada ao gosto dos candidatos
e mesmo assim a alienação cega daquele para com estes. Um tempo que recorda o
país de sempre, afinal, se agora atravessamos o que atravessamos é porque, em
grande parte, não aprendemos com o nosso antepassado de ludibriados.
Além disso, entre as várias
críticas estabelecidas pelo romance de Xavier Marques, estão as denúncias sobre
o compadrio, a variabilidade dos interesses conforme comporta-se o humor do
poder, o longo silêncio dos conformados, a invisibilidade do interior do país
que circunscreve males como a seca na mais absoluta falta de alternativas
capazes de resolvê-los, o funcionamento de um mal crônico que só ingênuos
desconhecedores da história do Brasil atribuem como nosso contemporâneo, a
corrupção, além de uma ausência de projeto de nação. Alguém poderia dizer que
este é mais um romance pessimista sobre o nosso destino. E não é. O final da
sua narrativa, aliás, se reveste de um importante valor simbólico e de alguma
expectativa que só agora sabemos que ainda continuamos por alcançar: uma nação,
despegada da crendice e afeita a uma razão iluminadora e organizadora. Mas este
era um tempo que ainda nos era permitido sonhar. Ao menos.
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