O asno de ouro, de Apuleio
Por Joaquim Serra
Lúcio, o narrador de O asno de
ouro, está viajando para Tessália e vê dois homens conversando. Muito curioso, interpela os viajantes e quer saber do que eles falam. Um desses homens,
Aristômenes, começa a contar algo inacreditável. A história diz respeito a um
tal de Sócrates, que é encontrado por Aristômenes na rua. Sujo, malvestido,
Sócrates conta sua história ao companheiro: fora enganado pela amante
feiticeira, que tem a fama de transformar pessoas em animais. Tudo parece um
devaneio do pobre Sócrates; melhor talvez fosse dormir para esquecer o tal
acontecido. Assim fazem Aristômenes e Sócrates.
No cume da noite, a feiticeira e
sua irmã aparecem para exigir do amor foragido algo que só poderia ser pago com
a vida. Assim é feito. A feiticeira atravessa a garganta de Sócrates com uma
espada, poupando Aristômenes para que ele possa servir de coveiro ao
companheiro. As mulheres desaparecem, deixando Aristômenes em uma situação
difícil: como explicar a garganta cortada do companheiro de quarto? Nem todos
acreditariam no conto maravilhoso do sobrevivente. Só o sobrenatural para
livrar o pobre homem da encrenca em que se meteu.
A história de Aristômenes é uma
das inúmeras escutadas por Lúcio. Este, curioso pelos mistérios da magia, na
cidade estrangeira para onde se encaminha, se hospedará na casa de um homem
rico e avarento. O problema não é o homem, dizem a Lúcio, e sim sua mulher,
conhecida por suas habilidades mágicas. O mundo da magia o atrai mais ainda
para os mistérios da casa, fazendo com que ele seduza a escrava do casal,
Fótis, que servirá como porta de entrada para Lúcio aos mistérios da magia.
Aqui se misturam as duas facetas da história de Lúcio; o erotismo e o
sobrenatural. Por conta de uma confusão de frascos mágicos, ele é
transformado em asno, conservando sua inteligência humana, e raptado por
saqueadores.
Como nos explica Adriane da Silva
Duarte na apresentação de O asno de ouro, sabe-se que o próprio Aplueio fora
acusado de uso de magia. Mas o livro tem também outro elo literário, a história
de Lúcio, o asno de Luciano de Samósata. Neste autor, conhecido por seus Diálogos
dos mortos e muito lido por Machado de Assis (vide, por exemplo, “A teoria do
medalhão”), Lúcio também é metamorfoseado em asno depois de se envolver, movido
pela curiosidade e pela volúpia, com uma feiticeira. Assim como em Apuleio, o
herói de Luciano é também um curioso contumaz, alguém que sente na pele os
efeitos nocivos de um traço tragicômico.
Mikhail Bakhtin, em sua Teoria do
romance, analisa a situação de Lúcio. Segundo ele, a iniciativa primeira para
que tudo aconteça vem do próprio herói. Ele é “jovem, leviano, desenfreado,
lascivo, festivamente curioso”, diga-se que essas são suas fissuras trágicas, as que o levarão aos acontecimentos posteriores. Para o filósofo russo, a narrativa
de Apuleio está sob o signo do acaso, mesmo antes da metamorfose, pois parte do
jovem Lúcio o primeiro impulso para alavancar tudo. O acaso é o destino cego, a
fortuna que se revela para o herói sem qualquer controle; o encontro com os
viajantes, as histórias que poderiam servir de aviso para ele. Lúcio não é dono
de si.
Não só da cômica história
protopicaresca de Lúcio vive a narrativa de Apuleio. Sua força está também nas
inúmeras personagens que aparecem diante das vicissitudes do destino do herói.
Algumas histórias, como ressalta Adriane da Silva Duarte, ganharam vida
própria, como é caso de Eros e a Psiquê, que ocupa parte significativa de O
asno de ouro. Esses vários contadores de histórias também nos lembram da
narrativa-base do romance moderno, o Dom Quixote, de Cervantes. Nesses mundos, a
experiência era dividida em uma taberna ou escutada pelas longas orelhas de um
burro para ser transmitida a outros.
Junto a Satíricon, de Petrônio,
obra também de vertente cômico-realista, O asno de ouro é uma das relíquias
imaginativas do mundo antigo, obras em que é possível perceber um pouco da vida
doméstica do mundo latino e grego.
Apesar de ter sido fonte para
muitos romances posteriores, chamar O asno de ouro de romance é uma designação
anacrônica, tendo em vista o romance moderno. Mas é certo que muitas de suas
bases já estavam ali. Outro aspecto interessante, tanto na obra de Apuleio como
na de Luciano, é o esforço dos autores em diluir as fronteiras da realidade e
da ficção, algo que se apresentaria sob a ideia de testar a verdade, como diz
Adriane Duarte.
Lúcio sobreviveu a tudo — por isso
consegue contar o acontecido —, mas somente graças a uma intervenção divina
pôde contar sua história. Talvez a relíquia do mundo antigo em O asno de ouro
não seja propriamente o destino que ensina Lúcio a ponderar seus desejos
perigosos, mas os próprios acontecimentos desvelados para o leitor, numa
mistura do cômico, do erótico e do mágico.
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O asno de ouro, Apuleio
Ruth Guimarães (Trad.)
Editora 34, 480p.
Editora 34, 480p.
Bibliografia:
APULEIO. O asno de outro. Tradução
de Ruth Guimarães. São Paulo: Editora 34, 2019.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de
Literatura e Estética. Tradução de Aurora Fornoni Bernadini et al São Paulo: Editora Unesp, 1998.
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