Édipo ou Hamlet: nenhum sistema poético é filho de si mesmo
Por Marcelo Moraes Caetano
Vamos começar com uma hipótese bem
simples: o primeiro teórico a dizer algo não é necessariamente a mais
importante referência naquilo que ele, pela primeira vez, enunciou. Não se
trata de uma regra, mas de um eixo de reflexão. Deixo elucidado, também, que
este meu texto não terá nenhum viés psicanalítico, perspectiva que eu, como
psicanalista, encaminharei em outros momentos.
Assim, por exemplo, Aristóteles
foi, decerto, o primeiro a escrever um tratado de Semântica no ocidente (a
“Lógica”, de que De interpretatione faz parte). No entanto,
não é, nem de longe, hoje, a maior autoridade em semântica no mesmo ocidente
onde a semente foi plantada. Os que o sucederam e recompuseram sua obra, através
de sucessivas reformulações (Santo Agostinho de Hipona em suas Confissões,
Frege, Russell, Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus) em
demolições (do alemão Abbau, no sentido de Heidegger, em Ser e tempo) ou
desconstruções (do francês déconstruction, no sentido de Derrida, em
toda a sua obra), enfim, de atualizações, inovações, diálogos, polifonias e
intertextos, estes devem ser evocados como nomes mais referenciais, porquanto,
por um lado, mais complexos e, assim, mais ricos, e, por outro, mais simples,
por terem “desmontado” (como diria, mais uma vez, Derrida, mas aqui seguido de
perto de Nietzsche, o precursor dessa noção, assim como Deleuze, Greimas,
Foucault, Todorov, Kristeva e Roudinesco) o aparato técnico-tecnológico
implantado germinalmente por um teórico, no caso, Aristóteles, que ilustra a
abertura de minha reflexão. Ou seja, são teóricos mais complexos porque
desdobram a questão primogênita, porém concomitantemente mais simples, porque
fecham pontos da malha que haviam sido negligenciados (não necessariamente de
propósito) ou deixados em suspenso, à espera de cauterização.
Nem quero entrar — mas já estou
entrando — no fato de que Aristóteles via o Taumas (do grego Ταυμάς,
conhecimento), assim como o senso comum o via, divisível em Mito (do grego
μΰθώς, mentira) e Logos (do grego λώγος, verdade), dando importância exclusiva
ao Logos, ao passo que o Mito seria inferior na (e para a) gnosiologia humana.
Em seu livro seminal sobre o assunto, o Tratado sobre a lógica, há uma
subseção sobre a interpretação (“De interpretatione”):
“Toda e qualquer frase comporta um
significado [....]. Mas, por outro lado, nem toda frase é declarativa, mas
apenas aquela em que se ocorre pretender dizer o verdadeiro e o falso; e isso
não ocorre em toda e qualquer frase; por exemplo, a prece é uma frase, mas não
é verdadeira nem falsa. Assim, portanto, sejam deixadas de lado todas as outras
frases — pois sua inspeção é mais apropriada à retórica e à poética – por sua
vez, a frase declarativa pertence ao presente estudo. (ARISTÓTELES, 16a3)”
Portanto, a língua usada como meio
de persuadir ("Retórica") e de causar terror e compaixão (“Poética”),
constitui, na visão inaugural sobre semântica do mestre de Alexandre Magnum,
fatores de somenos valor, ou de “valor relativo”, para usar um pouco a
epistemologia de Sartre.
Até ao tratar da poética na
linguagem, sabe-se que Aristóteles deu primazia à arte dramática em supremacia
à épica. E à tragédia sobre a comédia, de cujo livro se faz menção sem que este
tenha sido encontrado. Aqui, ocorre o espaço do Mito, o êxtase do Mito que o
professor de Aristóteles, Platão, negou com veemência espartana. A arte
dramática (o teatro), então, desvenda uma nova amplitude e uma nova
profundidade da vida. A mimese não é apenas imitar, copiar, mas
reinventar. “A vida só é possível reinventada”, gritaria Cecília Meireles
milênios depois, ecoando a voz de Aristóteles. O processo catártico descrito
por Aristóteles — purificação e mudança do caráter e qualidade das próprias
paixões — passa a ser visto como uma mudança da alma humana. Parece ser
uma primeira manifestação de dialética, já ocorrida no seio da Grécia Clássica,
alguns segundos antes do próprio Helenismo, como, aliás, Nietzsche (NIETZSCHE,
2008) esgotou do ponto de vista mais brechtiano possível: “esgotou porque não
terminou”.
Jacques Derrida, em sua
“Gramatologia”, discerne bastante bem esse ponto nevrálgico, de base
aristotélica, esse logocentrismo, essa “metafísica da presença” (da fala sobre
a escrita, da necessidade da presença do PAI, tão importante em Édipo e
Hamlet), antes esboçados por Platão (em Phèdre ou Fedro) e o
inverte, ao gosto da desconstrução francesa, de um modo que, neste artigo, será
explicitado adiante:
“O poder do logos está na razão
direta da sua proximidade com a origem, entendida como função da presença
plena, ‘a origem do logos é seu pai.’ Pode-se dizer, por anacronia, que o
‘sujeito falante’ é o pai de sua fala.” (DERRIDA, apud NASCIMENTO, 2006)
Eis o que Derrida nomeia como a
“tese do pai”, ou a TESE, simplesmente, “O logos é um filho, portanto, se
destruiria sem a presença, sem a assistência presente do pai”. (id. ib) Por
consequência, ao texto escrito cabe, chez Platão, a tese
contrária: “A especificidade da escrita se relacionaria, portanto, à ausência
do pai”. (id. ib. il.)
Com isso, quero retornar ao ponto
de que o “primogênito”, embora importante, é apenas mais um dos teóricos sobre
qualquer questão que se queira levantar, sobretudo quando se fala em linguagem
ou arte, sobretudo porque a arte não é logocêntrica — nas palavras de
Aristóteles, não pretende dizer “o verdadeiro ou o falso”.
Descendo ao particular da
literatura — a linguagem como arte, e não como ciência —, a primogenitura de um
tratado, obra, gênero, estilo ou sistema poético, ontologicamente falando, não
é suficiente para torná-lo superior a obras que venham antes (e isso também
ocorre) ou depois da primogênita e com ela estabeleça diálogo, ainda que
diálogo por ruptura.
Voltando ao caso de Aristóteles, o
fato de o mestre ter sido o pioneiro em semântica é menos importante do que os
estudos de semântica que dali advieram. Em outros termos, permanece fiel, como
num verdadeiro Velho Testamento bíblico, dos monoteísmos abrâmicos e mosaicos,
o velho e repisado preconceito em prol irrestrito do primogênito. A ele, tudo.
Isso é, em parábola, o preconceito em prol da ruptura. A ela, tudo. Tudo?
Diz ainda Evando Nascimento,
analisando a TESE (do pai) da “Gramatologia”:
“O veredicto do Deus-Rei (Rei dos
reis, Deus dos deuses) para com a invenção do seu subordinado marca a oposição
que se tornou clássica no Ocidente entre um logos determinado pela memória viva
(mnéme) e uma escrita subdeterminada pela simples recordação ou rememoração
(hypómnesis), como caracterizada em caracteres mortos. Como se passa com ‘O
livro do Filebo’, a teoria logocêntrica da linguagem no Fedro se estabelece a
partir da oposição entre o vivo e o morto, a memória e a recordação, o modelo e
a imagem, a presença e a ausência. Em resumo, entre uma reapresentação da
origem, ou seja, o logos determinado por esse que é um
Deus-Rei-Bem-Sol-Pai-Capital, e uma representação de representação, ou
des-apresentação, ou seja, a escrita de Thoth como cópia do discurso falado.
Nos dois casos, tem-se uma repetição da origem, segundo um esquema dissimétrico
que já vimos” (NASCIMENTO, 2006, p.3)
Em outras palavras, sem voltarmos
ao livro de Filebo, mas indo à própria concepção clássica de semântica de
Aristóteles, para ele, a escrita era o último estágio da comunicação humana,
criando, inclusive, a seguinte cadeia: Afecções da alma; Pensamento; Fala;
Escrita.
Como se sabe, a desconstrução
iniciou-se pelo lado oposto da cadeia: pela Escrita. Sua tese é o fato de que,
independentemente das afecções da alma ou do pensamento, a comunicação é sempre
mesmo o que Evando Nascimento acaba de chamar de “representação de
representação”, e que, nas palavras de Derrida, são “rastros de rastros”
(“traces de traces”). Portanto, buscar essa origem, esse Logos, essa “verdade”,
tudo isso não passaria de falácia.
Derrida diz: “Oposição sutil entre
um saber como memória e um não-saber como rememoração, entre duas formas e dois
momentos da repetição. Uma repetição de verdade (alethéia) que dá a ver e
apresenta o eidos [em grego, CASO]; e uma repetição de morte
ou de esquecimento (léthe) que vela e desvia porque não apresenta o eidos, mas
re-apresenta a apresentação, repete a repetição”. (DERRIDA, 2006)
Este trabalho não pretende seguir
fidedignamente as ideias de Derrida, mas apenas usá-las em ilustração às
questões de “paternidade”, “sombra”, “dívida”, “presença” e “ausência” em
literatura.
Uma divagação intermediária,
portanto: mesmo que uma obra fosse de fato uma ruptura completa de todo o
passado (agora voltei ao particular da obra artística, não do tratado
científico, ainda que nos primórdios da ciência da linguagem, como no caso de
Aristóteles), enfim, mesmo que uma obra de arte conseguisse romper com o
passado, apresentando um sistema TOTALMENTE novo em relação a esse passado, sem
nenhum ponto de comunhão com a trama egressa nas artes, será válido afirmar
que, quanto mais destacado TOTALMENTE da trama, tanto maior é a homenagem a
essa trama e a necessidade de sua existência pregressa, para que a “nova” obra
tenha podido existir?
Isto é: quanto mais uma obra
consegue romper os pontos emergentes do passado, não estará ela sendo mais
tributária a esse passado exatamente por SÓ poder existir em função dos pontos
emergentes que foram “assassinados”? (Há sempre um parricídio envolvido em
artes, como Hamlet e Édipo soem demonstrar.) Ela, esta obra “parricida”,
é, no fundo, muito mais carente do passado (do Pai) do que uma obra que
não operou necessariamente por ruptura e não operou, tampouco, levada pelo
preconceito abrâmico velho-testamentário ou grego clássico de que só o
primogênito tem valor, por estar mais perto do Pai-Deus, ou que tem valor
superior aos “pobres” filhos que o sucedem. “O desejo da escrita é indicado,
designado, denunciado como o desejo da orfandade e da subversão parricida”.
(DERRIDA, 2006) Eis o preconceito aludido (embora, na concepção de Derrida, o
“pai” seja a fala; para nós, o “pai-fala” é, metaforicamente, a obra
originária).
É bom lembrar, en passant,
sobre o “parricídio” acima, que Édipo matou o pai para existir, sim, porém não
pôde nem de longe abandonar seu passado ancestral para dar continuidade à sua
progênie, Antígona, uma vez que teve de casar-se com a própria mãe, e, com ela,
dar seguimento à sua saga de “poiein — escrita como trabalho” (KRISTEVA,
1974). Aliás, antes de Édipo, a questão Urano/Cronos (em que Cronos corta o
testículo de Urano, seu pai, e o joga ao mar, fazendo nascer, dali, a beleza e
o amor, a deusa Afrodite), assim como a questão Cronos/Zeus, na Teogonia
de Hesíodo, em que Zeus precisa vingar-se da morte do avô e exilar o pai,
Cronos, já esboçavam essa ruptura, e da mesma forma o incesto (o retorno à
ancestralidade, ao passado) era aqui evocado como necessário à continuidade da
obra, uma vez que Zeus se casou com uma das irmãs, Hera, e, antes de tudo,
Urano casa-se com sua irmã, Geia, dando origem ao Tauma humano, subdivido em
Mito e Logos, como se viu. A questão de Thoth versus seu pai, o deus
Thamous, também rememora, a favor e contra, como vimos, a antinomia derridiana
de esquecimento versus recalque.
Aliás, a ascensão de Zeus ao poder
supremo, como se sabe, se deu antes num “coup de dés”, ou “lance de dados”,
como diria Mallarmé (“Un coup de dés”), pois Zeus obteve o Céu não por ter sido
o libertador da fúria glutona de Cronos, mas por ter ganho, numa aposta com
seus dois outros irmãos (Hades e Poseidon), o céu, já que o mais velho,
portanto o que deveria herdar o céu, era Hades, que aceitou, numa aposta, ficar
com o submundo, quando lhe caberia, pela Lei Divina, ficar com o Império
Superior. Isso de certa forma desconstrói o “mito do primogênito” na própria
essência do nascimento dos deuses da Grécia Clássica. Mallarmé, repito, trata
disso em seu Hymen, como demonstra Evando Nascimento (NASCIMENTO, 2006).
Hamlet, por outro lado, em vez de
assassinar o pai, vingou-se do assassinato deste, evocando o seu espectro. E
neste ponto da relação com a paternidade quero me deter.
Poder-se-ia contra-argumentar,
aqui, num breve retrocesso, de modo que considero ingênuo e demasiado
senso-comum: mas sem a obra inaugural, por exemplo de Aristóteles, como viriam
à luz os semanticistas subsequentes? Isso não comprovaria — poder-se-ia
continuar — que a obra inaugural é a mais importante?
Minha resposta é uma outra
pergunta, desdobrada numa série de questionamentos: será que, sem Aristóteles,
não ocorreria o fenômeno do estudo de semântica? Quem poderia comprovar isso?
Se Aristóteles, pessoalmente, não tivesse lançado a primeira semente, outro não
o teria feito? Aristóteles é uma hipótese. A semântica, não. O psicologismo
platônico de biografismo ou “intenção do autor” já se provou o modo, senão mais
ingênuo, no mínimo mais obsoleto e tolo de se fazer análise de obras
artísticas. Pode-se até usar, num ou noutro momento, essa espécie de pesquisa;
mas colocá-la no centro da anamnese é uma verdadeira afronta ao
livre-pensamento e ao progresso do cognoscere.
Enfim, a “aristotelização” da
semântica é demasiado ingênua, metafísica, misteriosa. Parafraseando Noam
Chomsky, não devemos nos ocupar com mistérios, mas sim com fatos que possam ser
comprovados à luz ou à contraluz da razão, do intelecto, da intuição
científica, do livre-pensamento, da dialética, e dos aspectos que sejam
“humanos, demasiado humanos”, invocando-se Nietzsche mais uma vez. E ainda
assim é bom lembrar, como dizia Sartre, em “O muro”, que “é impressionante como
a razão pode ser usada ao lado de uma mentira para fazer convencer”.
A questão do QUEM fez é altamente
superficial, tortuosamente teológica, permanece entre “a neblina e a noite”,
parafraseando o célebre poeta Robert Desnos, pretende ir “longe” demais, à
noite dos tempos, pretende ser hieroglífica, heráldica, e não pode, portanto,
ser respondida com algum artefato minimamente reflexivo, senão apenas com
conjecturas de conjecturas, símbolos de símbolos, “rastros de rastros”, usando,
em outro contexto, a mesma exposição brilhante de Derrida.
Se outro QUEM tivesse tratado da
semântica inauguralmente no lugar de Aristóteles é questão que deve descansar
em paz. Ciência e arte, em mais um de seus pontos em comum, de que trato, por
exemplo, no meu ensaio “Simulacro, ciência, arte, poder e burocracia”, devem se
ater a problemas, e não a mistérios. Não importa quem inventou a roda, mas sua
invenção é fundamental. Não se pode viver sem ela. Dogmas de fé, por exemplo,
são mistérios, e a Teologia, um dos quatro ramos ancilares de cognição
(juntamente com a Filosofia, a Arte e a Ciência) é que deve se ocupar disso.
Usar a Teologia para explicar ou explicitar Filosofia não é nem Teologia nem
Filosofia. Os três outros ramos do saber se intercomunicam (não
obrigatoriamente), mas deve-se, repito, deixar a Teologia fora da tertúlia.
Isso porque a Teologia é EXCLUSIVAMENTE Logocêntrica, pois só pretende lidar
com VERDADEIRO X FALSO. Essa minha afirmação é bastante
desconstrucionista, se for observada atentamente, uma vez que, na origem
germinal do TAUMAS, de que já falei, cabe classicamente à Teologia o papel de
se situar no MITO e nunca no LOGOS. Sem querer descartar essa teoria com
milênios de existência (teologia como mitologia), pretendo, sim, demonstrar
dialeticamente que sua contrapartida não é nada falsa. Ou seja, a Teologia
repousa, antes, no LOGOS, e, só como sombra, no MITO. Teologia como
logocentrismo. A Teologia é a mais logocêntrica e a menos mítica das formas de
conhecimento humano, e creio que exatamente pela dificuldade em se enxergar
essa questão tão óbvia é que o pensamento nos outros ramos do saber caminha a
passos de tartaruga. É que a Teologia é demasiado idealista e, nas palavras de
Wittgenstein (Investigações Filosóficas):
“Par. 103. O ideal está
definitivamente instalado em nossos pensamentos. Você não pode se afastar dele.
Deve voltar sempre a ele. Não há nenhum lá fora. Lá fora falta o ar. — De onde vem
isso? A ideia é como óculos assentados sobre o nariz e o que vemos vemos
através deles. Nem nos ocorre tirá-los.“ (WITTGENSTEIN, 1999)
Pode até haver primogênitos em
todas as searas (a matéria velha persiste, o ideal são óculos assentados sobre
nosso nariz, nem nos ocorre tirá-los... Abraão e Moisés não conseguem repousar,
pobre Isaac), porém, mais significativo e congruente que ele, o primogênito,
será aquele que desdobrar o primeiro passo e o der em continuidade a outros da
maratona em questão. Como foi mostrado, nem nos velhos mitos da ruptura (Édipo,
Laio, Urano, Cronos e Zeus), pôde-se, de fato, se livrar da antiguidade e
precedência, pois todos os que saíram “vitoriosos”, antes por serem
“primogênitos”, precisaram aliar-se incestuosamente (reparem que, a partir do
momento em que se perpetra a ruptura, a continuidade passa ser nomeada como um
tabu universal: o incesto), enfim, os “primogênitos” não puderam abrir mão de
sua ascendência (mãe ou irmã) para prosseguirem na progênie. Afrodite, Ares, Hebe,
Ilítia e Antígona o comprovam, filhos do “incesto”, que, para quem não matou o
passado, não precisaria ocorrer.
Deleuze foi outro que pensou nesse
idealismo platônico. “Assim, devia guardar, de sua leitura da obra
nietzschiana, a ideia de que era preciso inverter o platonismo, para descobrir,
por trás do simulacro das ideias e repetições ideais, um caos dionisíaco, feito
de dor, alegria, e desordem, o caos festivo, intempestivo” (ROUDINESCO, 2007)
Em “Introdução à análise
estrutural da narrativa”, Barthes demonstra os típicos retornos do herói, em
suas relações de parentesco ficcional/real:
I RETORNO DO HERÓI
a) Retorno negativo
Partida (filho) + Deslocamento
horizontal (filho) (a partir do lugar da prova)
Retorno deceptivo (filho) (não
conjunção pelo fato da ausência do ponto ad quem) [....] (BARTHES et al., 1976)
Nem “romper” nem “ser precursor”
oferecem o galardão de supremacia, até porque, ontologicamente, na verdade são
atos impossíveis, e, mesmo quando o foram, no mito, na teologia, no logocentrismo
imperante, na noite dos tempos, requereram a hýbris do incesto para serem
continuados (obviamente entre os deuses não se pode falar em hýbris).
Para dar um outro exemplo de
ciência da linguagem bem mais recente que o de Aristóteles, Saussure e o Estruturalismo
têm seu ponto vocativo mais brilhante na figura de Jakobson, o “segundo filho”,
que, por seu turno, refundiu-se às ideias de Martinet, e, posteriormente, de
Barthes, Benveniste, Bakhtin, Kristeva, Foucault, Freud, Lacan, Sartre...
Einstein...
Do mesmo modo, um texto literário
“posterior”, que não tenha vergonha de sua dívida, é, portanto, superior, mais
vital, mais vivo, mais “respirante”, capitalizador natural e cheio de signos
plenos, que emergem com mais potência e exponencialmente que os seus
“anteriores”. Os proverbiais “anões sobre os ombros de gigantes, que, em sua
pequenez, enxergam mais longe que seus próprios gigantes”, na paráfrase
imemorial de Newton. O antes morreria sem o depois, e, por outro lado, o depois
só pode existir por causa do antes. O momento de ruptura, hoje, é antes um
momento de homenagem envergonhada, que obrigará seu articulador a alguma
hýbris, como um estupro ou um incesto para poder continuar, caso contrário,
morrerá sem fôlego. Isso pode ser interessante, mas, desde o Romantismo, desde
o Modernismo, que já percebeu a necessidade de se digerir o passado e o
tudo-cultural (Antropofagia e Tropicalismo, por exemplo), em vez de interessante
torna-se apenas um objeto empalhado e empoeirado num museu de curiosidades
tolas, circenses, como uma cigarra de doze patas, um arlequim de sete olhos...
“‘Não é nos grandes bosques nem
nos atalhos que a filosofia se elabora, mas nas cidades e nas ruas, inclusive
no que há de mais artificial nelas’ [DELEUZE, apud ROUDINESCO, 2007]. Com esse
gesto, tentava ligar um acontecimento, e era a Heráclito que se referia para
mostrar que nada se repete identicamente — nunca se entra duas vezes num mesmo
rio — e que todos os fenômenos são sempre múltiplos como fluxos irredutíveis a
uma unidade.” (ROUDINESCO, 2007)
O “antes” estaria morto (e só não
está porque há evocadores de mortos que o evocam exatamente porque dizem que o
negam) e completamente sepultado sem o “depois”. É inexorável. Por isso,
assumir a dívida, em ciência, em filosofia ou em artes, é, talvez, para se
dizer o mínimo, o caminho mais honesto. É não permitir, confessamente, a morte
do antes, e render-lhe dívidas em naturais desdobramentos muito mais criativos,
complexos e simultaneamente simples. Afinal, não se entra duas vezes no mesmo
rio. Nunca.
Brilhante aqui é o conto
metalinguístico de Borges, “Pierre Ménard, autor do Quixote”. Também muito
importante é o artigo de Silviano Santiago, “Eça, autor de Madame Bovary”, em
que o autor mostra, ensaisticamente, ao contrário de Borges, que o faz
literariamente, que uma obra que tenha vindo DEPOIS de outra dá, àquela
primeira, sua verdadeira existência capital. Santiago cita Poulet: “Il n´y a pas
de véritable critique sans la coincidence de deux consciences” [Não há crítica
verdadeira sem a coincidência de duas consciências] (SANTIAGO, 1978). A
propósito, este mesmo capítulo é aberto com a epígrafe brilhante de Roland
Barthes: “...quelles textes accepterais-je d´écrire (de ré-écrire), de désirer,
d´avancer, comme une force dans ce monde qui est le mien?” [que textos eu
aceitaria escrever (re-escrever), desejar, avançar como uma força neste mundo
que é o meu? — traduzi].
Aqui está novamente presente
Hamlet, o arquétipo dos novos tempos, que se vinga de Cláudio, o suposto
assassino de seu pai, simulando dramaturgicamente (aliás, semelhante ao “Don
Giovanni” de Mozart) um espectro paterno que em tudo rende homenagens à sua
figura e permanência, sem envergonhar-se dele ou ter em relação a ele a sanha
parricida logocêntrica obsoleta e enferrujada. Deleuze e Guattari, ao
escreverem O Anti-Édipo, denunciaram essa ânsia de tomar o lugar do pai
como o fundo e a forma principais das suas famosas “máquinas desejantes”, dessa
vontade que introjeta o fascismo nas almas surdas e faz com que elas queiram,
sem se dar conta disso, o mesmo poder que as oprimira e sufocara outrora. Em
outra obra de Roudinesco, que tive o prazer de ler a seu lado, entrevistando-a
a respeito (ROUDINESCO, 2010), seria o que a psicanalista evoca nas palavras de
Hölderlin: “Os oprimidos de hoje tendem a ser os opressores de amanhã”. Ou
seja, o poder do pai, que oprimia e limitava, precisa ser aniquilado com o
parricídio, para que o primogênito tenha o mesmo poder e possa, pois, oprimir e
limitar. Eis o complexo de Édipo na arte.
O mito de Édipo é semelhante ao
mito-preconceito da ruptura: o filho precisa matar o pai para se tornar QUEM
(ele) é. Mas, como se disse, esse mesmo mito precisa casar-se com a mãe, numa
prefiguração da necessidade da ancestralidade, e, mesmo assim, não se torna um
Rei, como o era Laio, mas, antes, um Tirano (que em grego significa “porteiro”
e não “Rei”), porque a palavra que designa Édipo (que em grego significa “de
pés atados”), em Sófocles, na “Trilogia Tebana”, não é “Édipo Rei”, mas “Édipo
Tirano”. As traduções são frequentemente erradas.
Enfim, são questões para se
refletir.
Dialeticamente, podem surgir
discussões salutares desses pontos levantados antes como “sementes de dragões”
do que como soluções comportadas.
Referências
ARISTÓTELES. De
interpretatione. 16a3 Disponível aqui.
BARTHES, Roland; GREIMAS, A.J.;
BREMOND, Claude; ECO, Umberto; GRITTI, Jules; MORIN, Violette; METZ, Christian;
TODOROV, Tzvetan; GENETTE, Gérard. Análise estrutural da narrativa.
Petrópolis: Editora Vozes, 1976.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI,
Félix. O Anti-Édipo — capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio e
Alvim, 2006.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
KRISTEVA, Julia. Introdução à
semanálise. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974.
NASCIMENTO, Evando. “Escrita e
Gramatologia.” In. Derrida e a literatura. Niterói: EdUFF, 2006.
NIETZSCHE. Die Geburt der Tragödie
– Aus dem Geist des Musik. Cambridge: Cambridge literary (german
edition), 2008.
ROUDINESCO, Elisabeth. Filósofos
na tormenta. Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze e Derrida.
Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
ROUDINESCO, Elisabeth. Retorno
à questão judaica. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
SANTIAGO, Silviano. “Eça, autor de
Madame Bovary”. In. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1978.
SHAKESPEARE, William. Obra
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S.A., 1995.
SÓFOCLES. Édipo. Disponível
aqui.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische
Bemerkungen. Frankfurt: Suhrkamp, 1984.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações
ilosóficas. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999
Comentários