Dante e a experiência
Por Marco Perilli
Embora o rosto meu, qual por um
calo,
agora pelo frio, qualquer evento
estivesse impedido de afetá-lo,
ainda me pareceu sentir um vento¹
Assim é como o peregrino, chegado
ao centro da Terra, percebe a presença de um limite tenebroso, algo que atemoriza
e o enche de terror. Não ignoro o que acontecerá. Encontro-me a poucos metros
de profundidade. Dante, por sua vez, suspeita, deduz, pergunta ao seu guia; seguramente
teme alguma coisa. Tem medo, muito medo. Viu alguns gigantes que distante pareciam
torres: um deles lhe acenou com a mão, junto com Virgílio, para descer até ao
fundo do abismo. Agora sopra um vento frio, que lembra o inefável. Ou algo tão
físico e concreto como o espasmo do homem que encara o possível.
pelo que eu: “Mestre, eu sinto
algo mover;
não é isto aqui de todo sopro
isento?”
E ele a mim: “Poderás logo saber;
teu próprio olhar vai te dar a
resposta […]
A resposta é a experiência. A
primeira imagem de Lúcifer, de longe, é a de um moinho de vento. Os gigantes do
Canto XXXI pareceram-lhe torres... Não temos documentos que comprovem se Cervantes
se utilizou de Dante para nutrir a imaginação de Alonso Quijano: a única prova coerente
defende que a literatura é uma licença coletiva, correnteza que brota de um manancial
difuso, que respinga em quem se aproxima, que chegará a existir outra vez na
palavra escrita adiante, na grafia desconhecida dos gestos que inundam a
memória, na leitura solitária de um indiscreto tradutor. Cervantes, como Dante,
espera do olho a resposta. Enquanto isso, a fantasia cavalga. Aguarda-o. No
Canto XVII do “Purgatório”, chove no interior da “alta imaginação”. O peregrino,
anteriormente, avistara altos-relevos esculpidos nas rochas (Canto X), signos
gravados no solo (Canto XII), ouvira vozes cantar louvores (Canto XIII): material
para a ação dos sentidos, chamados de linguagens sensíveis. Agora respinga
diretamente no imaginado, que recebe mensagens sem suportes, sem língua, sem
nenhuma mediação: imagens puras que se projetam na quadra da memória. Italo Calvino
nas suas Seis propostas para o próximo milênio, comentando sobre
este verso dantesco o denominou “cinema mental”. Ao anteceder o peregrino na
viagem, ao anteceder Dante na escrita do poema, e ao anteceder o leitor tomado
pela mão dos dois, a experiência tangível se submete à experiência interior, a
razão dos sentidos se reduz a favor da intuição. O discurso fragmentário dos
acontecimentos se dilui na fluidez do pensamento.
A imagem é palavra. Imago
deriva do radical indo-europeu mi, que significa medir. Palavra
vem de parábola, no sentido evangélico do exemplo; e o substantivo
latino parabola remete ao verbo grego paráballō, confrontar.
A ideia de relação, de nexo inteligível entre elementos, está por trás, ou
dentro, de dois termos concorrentes. É a célula-mãe, a origem a partir da qual
se distanciam para significar. Dante sabe que o princípio da linguagem — e do
mundo, e da vida — se encontra numa ferida, num corte feroz, que cicatriza e
sangra toda vez que a cultura a recorda e a representa: na forma do mito ou do
rito, do canto ou do poema. O mito da idade de ouro celebrado pelos poetas é o
sonho do Éden cristão no Parnaso: é o que explica Matelda a Dante, a mulher que
habita o lugar onde a linhagem humana era inocente. Os dois poetas clássicos
que acompanham Dante, Virgílio e Estácio, se riem do próprio engano. Mas Dante,
que qualifica Cristo como “sumo Jove”, talvez sugira que o engano consista em
separar os galhos de seu tronco e este da terra que o alimenta. Sabe, ainda,
que por trás da comparação, de toda relação, há um gesto, um ato que designa,
que tateia, uma construção primordial da experiência.
Voltemos ao vento que anuncia
Lúcifer. Um sentido se antecipa ao exercício do outro. O mesmo acontece com a
imagem e a palavra quando se auxiliam para ligar o que a prática não alcança.
Plínio o Velho, no primeiro século, relata que “os primeiros cultivaram a
pintura de contornos […] sem usar nenhuma cor, já contornam o interior da sombra
e costumam escrever ao lado das figuras o designativo do serviria para pintar”.
A aprendizagem de um povo se reflete na de seus integrantes: no presente, quando
a criança aprende o alfabeto, o desenho decifra a palavra que ainda não sabe
ler. O mesmo acontece com Dom Quixote e Sancho, que constroem um intercâmbio de
suas especificidades, tal como reconhece o cavaleiro: — Sabes o que me está
parecendo, Sancho? […] É que não estás mais assisado do que eu”³. Contágio
ou empatia, os signos transmigram de um indivíduo para outro, de um alfabeto
para sua tradução. Como lemos Dante, hoje? É válida — ou lógica, ou naturalmente
— perceber no bafio quente do ônibus a iminência do diabo?
A pergunta coloca uma questão essência
da Comédia. A associação vento-ônibus-Lúcifer é um lugar literário que
inclui a experiência do mundo material, da rotina cotidiana, assim como a
experiência privada do leitor. São termos que compartilham âmbitos diferentes. O
ônibus existe na realidade: também o vento, mas aqui pertence a dimensão literária
de um poema, tal como Lúcifer. Há um vento que sopra do ônibus e um vento que
sopra das asas do demônio. A mesma palavra denota coisas diferentes: uma física
(integrada ao mundo comum), outro particular (imaginária). A palavra se aplica
a duas intenções, a dois vazios, como o texto em seu conjunto: para nós, homens
do século XXI, a viagem de Dante Alighieri é literatura, é ficção, é metáfora,
um espelho da vida, mas quantos enunciados poderíamos incluir num catálogo de
normas, acadêmicas ou não, cultas ou triviais, sempre focados em nos
localizarmos na região ilimitada, porém definida, da imaginação. A fantasia em
Dante é de outra parte, o lugar onde chovem as imagens divinas é a quadra da
realidade: por isso as imagens que chovem substituem os relevos sobre a pedra,
os desenhos na rocha, as vozes, as evidências da percepção. Chegam quando o
peregrino refinou o intelecto e não necessita de muletas sensoriais. Quando o peregrino
vê os desenhos gravados no chão, na primeira cornija do Purgatório, o narrador
os qualifica de figurato — afigurados (Canto XII, v.23). É a
única ocorrência da palavra no poema, atribuída aos desenhos gravados por mão
divina. Ainda assim, quando o peregrino assiste no Éden uma visão apocalíptica,
essa sequência de quadros é glosa por Beatriz como uma narrazion buia —
discurso estranho (Canto XXXIII, v.46, no original)²: única ocorrência da
palavra narrazion no poema, e, como figurato, se refere à revelação
divina. Se considerarmos o sentido subjetivo, estilístico, formal, que o leitor
contemporâneo relaciona com estes termos, voamos a distância que nos separa do
cosmo de Dante: para ele, são garantia da eloquência divina, que é objetiva, linear,
perpétua e sobretudo real, verdadeira, necessária.
A figurato e a narrazion
são irrefutáveis; a ordem fenomenológica, por sua vez, é um rascunho, um
ensaio, é preciso retificá-lo até que se amolde à expressão de um imperioso relato…
Não, nós não estamos de acordo: Deus é um assunto de fé, o diabo é uma imagem
literária, o Inferno é um espaço imaginário onde atuam personagens fictícias. É
literatura, A divina comédia. Dante sabe que o poema é obra de seu engenho,
que obedece a arte, a categorias determinadas, estéticas e históricas: e vê
tudo isso como uma ferramenta descartável na busca de um simulacro que
significa objetivamente, que subsiste. O poema é uma pequena ponte levadiça,
obrigatória e provisória, um veículo, não é o destino. Nós vemos nesse destino uma
condução para chegar ao centro, ao poema. Isto é, a Comédia continua
sendo algo próximo à essência do homem, ao pensamento, às paixões que enobrecem
e degradam, e que nos fazem. Por quê? As histórias não mudam, muda sua interpretação
e no que acredita cada leitor de cada época. O complexo de Édipo não é a
entrada de Freud ao mundo grego, é um conselho do mundo grego à teoria de Freud.
Hamlet é um assassino que atualmente seria submetido a um julgamento penal,
incluindo a investigação psiquiátrica solicitada em sua defesa. Os heróis homéricos
seriam condenados por genocídio… Claro, nenhum leitor alegaria tais reservas.
Do contrário, o julgamento de Hamlet ou de Aquiles forneceria um papel ao
domínio legal que nos respalda, uma benéfica inspeção às normas de tolerância e
da democracia dos códigos vigentes. Assim, a viagem de um peregrino no ano de
1300, entre mortos que falam ou cruzando os céus em voo livre, onde o realismo
da representação se calcula e mede até o minúsculo remate da exatidão, abre
caminho entre a ficção e o necessário, é nossa viagem, já que o significado,
despojado de sua circunstância, que podemos traduzir, se torna irredutível,
primário, o arquétipo que burla toda forma e toda fé, modelos e linguagens, e
descansa onde a leitura cede sua atenção ao ser.
O poeta elabora a paisagem eterna,
Inferno e Paraíso, o espaço temporal do Purgatório, a partir de uma geografia
da consciência. A topografia do além é a versão tangível da hierarquia dos
pecados e das virtudes. Dante não inventa, recolhe uma doutrina estabelecida
por Deus, pela Igreja, pela filosofia de Tomás e seus predecessores. Ou inventa
no sentido tradicional da palavra: encontra, acha. Dante encontra uma forma de
organizar a moral e com base nessas gradações, que elevam ou rebaixam, traça o
cenário do poema. São os sete pecados, do menos grave, a luxúria, ao mais
grave, a soberba, o que dispõe a construção dos círculos do inferno e as cornijas
do Purgatório; são as sete virtudes as que regem os céus planetários. Uma arquitetura
simbólica determina a fábrica do cosmos, inclusive a geografia terrestre: no zênite,
no que chamamos polo Norte, está Jerusalém. Um erro no mapa? Não, porque o mapa
se define a partir do sentido que precisa expressar: no centro da terra está preso
Lúcifer, princípio espiritual e temporal do mal; no que chamamos polo Sul está
o Purgatório, uma montanha cujo ponto mais alto (o extremo da Terra) alberga o
Éden, lugar de princípio, de origem da história. Daí a humanidade foi
desterrada… Jerusalém é o epicentro da redenção, da nova aliança com Deus. A
linha da história, que a história escatológica do homem, se desenvolve em torno
de um eixo: no centro está Lúcifer, no sul a criação e o pecado, no norte a salvação.
O tempo, que se torna espaço, é um teorema demonstrado. O universo corpóreo, no
que habitamos, atuamos e morremos, sustem a mesma claridade, guarda essas distâncias,
se ajusta a uma sentença superior; tem a humildade e talento de significar o
que deve, de se converter em testamento pontual do inefável. Dante nos guia
através do inefável: um mundo interior, como o inferno, situado nas entranhas
da Terra; ou como o Purgatório, espaço inalcançável que se encontra ao lado
contrário da terra que pisamos; ou como o Paraíso, mundo externo à
circunferência que abarcamos. Mas a pedra angular que radica a compreensão do
outro e sua fronteira conosco continua sendo a experiência. Desde os primeiros
tercetos do “Inferno”, acompanha o peregrino uma personagem silenciosa,
discreta, servicial, que nunca pretende atenção: um pronome.
E como aquele que ofegando vara
o mar bravio e, da praia atingida,
volta-se à onda perigosa, e a
encara,
minha mente, nem bem de lá fugida,
voltou-se a remirar o horrendo
passo
que pessoa alguma já deixou com
vida.
A imagem do náufrago que chega à costa e olha para trás, para o perigo do
qual escapou com segurança, se fixa no pronome aquele. É por meio de tal
empatia, do laço suscitado com um ser indefinido e geral, um ninguém que é
todos nós, como Dante, o poeta, nos transmite a angústia do Dante peregrino. O leitor,
qualquer leitor, poderia imaginar o náufrago nessa contingência, pelejando
contra a água, o medo, o cansaço, o desespero: sofre com ele, comunga, se
integra e portanto converte a paixão do peregrino, inédita, tremenda, alheia ao
sentido comum, numa batalha conhecida, uma palpitação familiar, um feito
humano. É esta primeira aparição do ser oculto que evocado como o homem que, ou
quem, ou aquele, socorre o poeta quando entre o leitor e o peregrino a
distância se abre e a sombra do ignoto nubla o entendimento. O pronome é a luz
da experiência que volta a estender a mão ao leitor, o intermediário que traduz
o assombro do mistério, a memória do presente. Esse pronome opera como uma
madeleine proustiana, que molhada no aroma do tempo doa vida a um passado encoberto,
torna carne o símbolo e sangue seu sentido. Quando Ulisses chega à costa do “louco
voo” até ao mundo inabitado, até ao oceano de onde vislumbrará a montanha obscura
do Purgatório, induz sua tripulação, a persuade, a cativa por meio de um
“breve discurso solene”:
a esta vigília dos nossos sentidos,
tão breve, que nos é remanescente,
não queirais recusar esta
experiência
seguindo o Sol, de um mundo vão de
gente.
Considerai a vossa procedência:
não fostes feitos pra viver quais
brutos,
mas pra buscar virtude e
sapiência.
Em italiano, esperïenza
(experiência) rima com semenza (procedência) e canoscenza
(sapiência). Nós, nossa semente, e sua constituição biológica e moral,
oscilamos entre a dúvida e a experiência. John Freccero, atento leitor do verso
dantesco, interpreta que a terza rima implica um caminho em espiral,
que imita ou reproduz, e ao mesmo tempo traça, o proceder do peregrino no submundo.
A nova rima se apresenta no segundo verso de cada terceto, a novidade está no
centro, entre uma rima que se volta para frente e outra que se volta para trás;
é o atuar do peregrino que descende pelos círculos concêntricos do Inferno à
mão esquerda — a orientação do mal, segundo a tradição greco-cristã. A espiral,
como a terza rima, produz um movimento oscilatório de ida e volta:
sempre procedemos, mas encadeados a um ritmo que nos traz a ressonância de nós,
entre um passo e o horizonte, sem nos determos, mas tomando consciência da passagem
e do seu sentido. Nada é signo inútil, vão: tudo é gesto do conhecimento que nos
leva a refletirmos com ele.
Este movimento oscilatório é um
tema medular na Comédia. Os pecados estão classificados de acordo com a
ordem estabelecida por Tomás de Aquino: conversio e adversio. A
conversão é a adesão a um bem carnal, efêmero, “almas percorrendo” (Canto
XVIII, v.95), como explicaria Virgílio; a aversão é a recusa do bem espiritual,
a fuga dos desígnios; aproximação e distanciamento que delineiam um diagrama do
vício e da virtude, uma cartografia da alma nunca estável, nunca firme, em
processo de constante mudança em torno de certo desejo — ou de si —, de um
centro incompreensível que marca os capítulos de nossa peripécia e os cantos do
poema. Na comédia secular que é Em busca do tempo perdido, Marcel Proust
chamará esta dialética “as intermitências do coração”. Às portas de Dite,
limite do baixo Inferno, Virgílio e Dante se separam: os demônios não permitem
a passagem dos dois visitantes, o mestre deixa o discípulo para negociar com os
guardiões. Dante, sozinho, fica refém da angústia.
Assim vai ele e aqui, só, me
deserta
o doce pai, e eu fico hesitando:
lutam-me o sim e o não na mente
incerta.
Na cabeça de Dante lutam sim
e não; em italiano tencionam. O verbo remete aos jogos medievais,
às pelejas de armas, e também às competências poéticas, ao exercício de um
virtuosismo retórico praticado pelo próprio poeta. As portas de Dite se abrirão
ou não; avançaremos ou não; Virgílio voltará ou não… fé e falta de esperança,
um olhar para frente e um passo para trás. É o temor do peregrino no Inferno,
taquigrafia do medo e da incerteza. Desde o primeiro canto, esse curso se
alterna: os 45 tercetos que compõem se articulam em sequências definidas por
fases de avanço e recuo. O fim do quarto terceto se dá com o verso “che la
verace via abbandonai” — “que a verdadeira via abandonei”; o penúltimo
verso do segundo bloco de quatro tercetos (que apresenta a imagem do náufrago)
marca outro movimento de conversio: “si volge a l’acqua perigliosa e guata”
— “volta-se à onda perigosa, e a encara”; mais uma sequência de quatro tercetos
finda com o verso: “ch’i’ fui per retornar piú volte vòlto” — “que mais vezes
voltei-me para a volta”; outra sequência de seis tercetos finda com o verso: “ch’io
perdei la speranza de l’altezza” — “que perdi a esperança da assomada”; os dois
tercetos seguintes findam com os versos: “che’n tutti suoi pensier piange e s’attrista”
/ “mi ripigneva là dove ’l sol tace” — “que em todo seu pensar só se contrista”
/ eu regredia pra lá onde o Sol cala”. O encontro com Virgílio interrompe o
vaivém e detém a ação num lugar circunscrito, antes do verso final “Moveu-se
então, e eu o acompanhei”. Como se vê, o primeiro canto, introdução ao poema
que narra o despertar de Dante nessa dimensão inusitada está selado por uma sucessão
regular de momentos dinâmicos, associados à esperança de deixar a selva, de
voltar à luz, avanços e regressões que fustigam o herói, que o prendem ao horror
e ao desengano. Para tornar à luz, às estrelas, teremos que esperar até o
último verso do “Inferno”.
Charles Singleton revelava uma
curiosa anomalia na lógica que rege a cena do náufrago na costa. Depois de
descrever a angústia e o alívio do náufrago para compartilhar conosco o
sentimento que experimentara, Dante retoma o fio do relato em primeira pessoa: “Após
pousar um pouco o corpo lasso, / me encaminhei, pela encosta deserta”.
Singleton pergunta: Por que o corpo está lasso? O que fez, até aqui, Dante? O
corpo está cansado pelo esforço de sair do mar, de chegar à costa. Mas esse mar
não é o mar, não é um mar, é um símile, uma figura retórica
empregada para transmitir uma sensação através de um simulacro, de uma memória possível.
O cansaço do corpo deixa a figura retórica, se desprende do pronome, da
personagem silenciosa que acompanha Dante e se encarna no peregrino. O náufrago,
que não existe, serve a Dante poeta para expressar a sensação de Dante peregrino;
e este se cansa, tanto que necessita descansar, contagiado pelo símile… A
metáfora derrama na realidade, os efeitos de uma figura retórica recaem,
pesados, sobre o peregrino e, por conseguinte, sobre o leitor. O corpo está
exausto por atravessar um mar que não era outra coisa que uma imagem, a
verdade salta fora da poesia. Singleton acrescenta que uma vez o corpo,
exausto, se encaminha para a encosta, “já não se pode voltar e ser reduzido a
uma metáfora”. Se recorremos aos tercetos que narram como aquele que se tornou Dante,
encontraremos em três versos as dobradiças a partir das quais se articula o
processo:
E como aquele que ofegando vara
o mar bravio e, da praia atingida,
volta-se à onda perigosa, e a
encara,
minha mente, nem bem de lá fugida,
voltou-se a remirar o horrendo
passo
que pessoa alguma já deixou com
vida.
Um pronome, um sujeito indistinto
e universal, associando-se com o ânimo individual do peregrino, volta a ver o
lugar que acaba de atravessar, que não deixou passar os que vivem, a nenhum ser
vivo — “che non lasciò già mai persona viva”. Neste pleonasmo, na aparente
gratuidade da expressão persona viva, está a chave, ou o centro, da operação
poética de Dante. Pode uma pessoa não estar viva? É necessária a especificação?
Falamos de alguém, de ninguém, que aqui, ao dar a passagem de um verso, volta a
um ser particular, único, vivo. Viva então é um atributo que atrai, a nível
lógico e formal, assim com a dimensão emocional, uma série de razões, saltos e
premonições que transcendem a palavra e a levam ao território da polissemia que
o próprio Dante advogava com chave e requisito para leitura do poema. E se,
autorizados por ele — e apegados ao seu texto, onde a versificação impõe ao
tradutor soluções perigosas — quiséssemos levar até ao extremo a dissecação
gramatical do terceto, “o horrendo passo / que pessoa alguma já deixou com vida”
(lo passo / che non lasciò già mai persona viva) pode ler-se como objeto e
sujeito. É objeto numa leitura linear, literal: o ânimo do peregrino se volta para
ver a passagem que… É sujeito se, contagiados pela conotação moral e psicológica
do episódio, lemos que nunca um ser vivo deixou de franquear essa passagem, condição
para sair da selva escura, para alcançar a orla, para chegar a ser de uma
pessoa morta a uma pessoa viva.
No céu da Lua, ao começar a ascensão
pelo Paraíso, Beatriz interroga Dante sobre a natureza das muitas luas, a fim
de comprovar seu engenho e competência. O primeiro exame de Dante voando pelos
céus, e a primeira de uma copiosa série de explicações minuciosas que ouviremos
no “Paraíso”. As manchas lunares, explica Dante, se devem a uma maior ou menor
densidade da matéria, segundo a opinião de Averróis. Errado, contesta Beatriz.
E começa sua justificativa… A explicação é complexa, sutil, segundo os cânones e
modelos da filosofia desse tempo. Consciente da dificuldade, Beatriz adverte a
Dante:
Mas dessa instância poderá livrar-te
a experiência, que é a fonte
manante
as correntes de toda vossa arte.
A experiência é a fonte de nossas
disciplinas, de nossa inteligência e pode ser direta ou reflexo, instância
contingente ou ato imediato:
Dois espelhos porás de ti diante,
a igual distância, e um terceiro
contido
entre os dois, mas que os outros
mais distante.
A eles voltado, atrás de ti
incendido
haja um lume que todos três acenda
e volte a ti por todos devolvido.
Embora no tamanho não se estenda
tanto a mais longe imagem,
entrementes
ocorrerá que igualmente resplenda.
A quantidade da luz refletida no
espelho varia, a qualidade não. O argumento de Beatriz ilustra a repartição da
virtude divina através das esferas, segundo um princípio distributivo intrínseco
à Sua vontade… Mas nós, modestos leitores de um livro, como Dante o é do céu,
vemos na imagem refletida nos espelhos diferentes momentos e graus de nossa consciência
do mundo, de seus fenômenos e de suas manchas ou suas luas. Não muda a coisa,
varia seu reflexo, e a experiência nos dá a medida de nossa distância ou proximidade,
de nosso erro ou acerto, na vida e na literatura. Podemos associar Dante com o ônibus
ou com um nenúfar. Num passeio ao lado de Guermantes, em Combray, no primeiro volume
de Em busca do tempo perdido, o narrador, ainda criança, se detém a
contemplar as plantas aquáticas que obstruem a correnteza do rio. Um nenúfar, constantemente
arrastado pela força da água, se afastava, se expandia, até que seu pedúnculo
colocava um limite à fuga e voltava ao ponto de partida: o jovem Marcel via-o
em todos os seus passeios, renovando aquele ritual, como os neurastênicos que
durante anos oferecem invariavelmente o espetáculo de seus costumes singulares:
“Tal era aquele nenúfar, também
semelhante a um desses infelizes cuja singular tortura, que se repete
indefinidamente por toda a eternidade, provocava a curiosidade de Dante e cujas
particularidades e causas ele desejaria ouvir mais longamente da boca do
próprio supliciado, se Virgílio, afastando-se a largos passos, não o obrigasse
a alcançá-lo depressa, como eu a meus pais.”4
Num passeio pelo campo, na rotina
do tráfego urbano, reconhecemos o mapa de uma fantasia encarnada que não deixa
de interpelar nossos sentidos. Manifesta-se em tudo, exceto, talvez, em sua
intenção.
Notas da tradução
* Tradução livre de excerto do
conjunto de ensaios Dante, de Marco Perilli (Pré-Textos; Fundación Amado
Alonso, 2019).
1 Todas as citações de A divina
comédia são da tradução de Italo Eugenio Mauro (Editora 34, 1998).
2 Sempre quando as particularidades
do poema original são necessárias para a explicação do ensaísta, mantivemos a
presença do texto em italiano, mas a tradução mostrada é também a de Italo
Eugenio Mauro (Editora 34, 1998).
3 Dom Quixote. Livro 1. Da tradução de Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pereira e Sá Coelho, disponível online em Domínio Público.
4 No caminho de Swann
(primeiro volume de Em busca do tempo perdido). A tradução é de Mario
Quintana (Biblioteca Azul, 2006).
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