Antonio, de Beatriz Bracher
Por Pedro Fernandes
Beatriz Bracher. Foto: Piudip. |
Sabedores de que toda família guarda
um esqueleto no armário, de quantas maneiras é possível compor uma saga
familiar? O romance tem oferecido diferentes e interessantes respostas desde
sempre. Na literatura brasileira podemos listar, de um rol nunca concluído, A
falência de Júlia Lopes de Almeida, Crônica da casa assassinada de
Lúcio Cardoso, A menina morta de Cornélio Penna e Antonio de
Beatriz Bracher que com Leite derramado de Chico Buarque formam alguns
dos melhores exemplos das publicações recentes — este último se publicou dois
anos depois de 2007, data da primeira edição do livro da escritora paulista.
Podemos ler Antonio como um
romance produto da feliz combinação de alguns recursos narrativos e temáticas
dos seus antecessores e com os de um romance certamente vislumbrado pela crítica
desde o anúncio de sua chegada: Enquanto agonizo, de William Faulkner. Aqui,
enquanto esperam a morte de Adie Bundren, a família cuida dos preparativos para
esse instante final enquanto revisitam circunstâncias e dramas que explicitam uma
a uma as múltiplas marcas individuais e do ajuntamento familiar. O mote para o
romance de Beatriz Bracher é praticamente o mesmo: também encontramos uma mãe no
leito de morte e um grupo de personagens no qual se inclui a própria moribunda
executa um movimento de rememoração que, nesse caso, toma sempre como ponto as
origens: da família, de suas disfunções, dos seus segredos, de sua ruína.
O elemento motivador, portanto,
não é essa mulher num leito de morte, nem é este o desencadeador da narrativa.
Também não é especificamente uma tentativa de esclarecimento individual dos
narradores, nem uma maneira de reconstruir o que poderia resultar num memorial
dos Kremz. É sim um cruzamento de coincidências (puras ou motivadas, disso não
é possível constituir certeza) entre um episódio do passado que, por vias
tortas, só se concretiza uma geração depois e é marca excepcional não apenas para
a família mas de pessoas a ela ligadas por algum traço de aproximação, seja de
amizade, seja de interesse e enovelamento amoroso, tal como reparamos em grande
parte das situações.
Assim, Antonio se organiza a
partir do cruzamento de duas instâncias temporais: a primeira de quando um
jovem estudante de Direito se enamora de uma estagiária e constitui família,
ordem imediatamente desfeita depois da morte do primeiro filho; a segunda de
quando um jovem com mesmo nome desse filho morto e sobrenome dessa família
original se pergunta sobre a própria mãe àqueles que possivelmente
conheceram-na no tempo anterior. É Benjamim quem ocupa o posto de elo entre os
dois tempos; ponto de intersecção, acesso a origem, o filho de Teodoro escuta o
que contam Raul, um amigo íntimo do pai, Isabel, sua avó no leito de morte, e
Haroldo, amigo de Xavier, seu avô. Entre os enlaces dessas personagens,
encontram-se muitos segredos que da entrada à saída do romance à medida que se
confirmam ou se tornam ambiguidades constituem o grande mosaico do que
começamos por chamar como saga familiar. É notável que esta, portanto, não
constitua o incipt do romance, nem mesmo seu resultado, mas, pela
própria natureza de inapreensibilidade do real pela linguagem, ou esta sempre
realizada enquanto desvio do real, finda por ser o quadro posto, porque, como
Benjamim, saímos mais sabedores da família de Isabel que de uma resposta ao que
procura.
Duas coisas chamam atenção em Antonio.
A primeira — e aqui está um distanciamento singular, mais um, se olharmos para Enquanto
agonizo — é a ordem textual que se firma, mesmo sendo este romance
construído a três vozes. E a segunda é, como dizíamos no outro parágrafo, que o
romance se afirma, embora talvez os envolvidos nem atentem (ou sim, seja
proposital), como uma tergiversação do que seria seu ponto essencial: à
possibilidade de um retrato sobre Elenir, outro elo entre as duas
temporalidades da narrativa, resta quase nada ou o que seu filho já sabia antes.
No lugar dela, notamos, prevalece pela nitidez, ainda que sua força ou qualquer
coisa como um sopro subterrâneo continue, dois homens, Xavier e Teodoro. Também
não acessamos as implicações da descoberta, como encarnação de um fantasma do
passado, da criança morta que revirou a vida de Xavier e da primeira família
pelo avesso e cujas marcas atingem as bases da segunda família, se notarmos que
o papel deslocado assumido por Teodoro é em parte produto desse amor dispendido
por um filho ausente e onipresente para o pai.
Beatriz Bracher consegue a unidade
narrativa de Antonio pela composição de figuras aproximadas no mesmo estrato
social-escolar: Raul é um publicitário, gaba-se da capacidade de forjar histórias
outras a partir de uma história original; Isabel é professora titular de literatura
na Universidade de São Paulo; e Haroldo é advogado — tal como o primeiro
narrador está acostumado a engendrar pontos de vista, orgulha-se de uma memória
impecável capaz de alinhar tudo a um plano objetivo e inteligível. Isto é, a
condição de cada um desses narradores favorece a partilha de um mesmo nível
linguístico; suas idiossincrasias se exploram por outros vieses, como o ponto
de vista adotado para a narração ou mesmo suas posições ante determinados
assuntos em comum: assim, o comportamento excêntrico de Xavier reavivado em
Teodoro, por exemplo, ora é visto como produto do gênio ou do incapaz de ser compreendido
pela sociedade comum, ora como o de um homem afeito a um raro ideal de
humanização capaz de buscar uma transformação social pela arte, ora ainda como
um louco, o homem desencaminhado de uma vida reta pelos destemperos de uma
paixão adolescente ou os arroubos de certa fêmea fatal. A primeira impressão,
denota alguém dotado de algum conhecimento sobre os meandros da atividade
criativa, tal como o próprio se reafirma, isto é, Raul; a segunda, parte de quem
aposta na liberdade como o valor legítimo e se compreende como parte fundamental
no processo de transformação coletiva pelo homem, e é Isabel; enquanto o
terceiro se expressa por objetividade radical do mundo e assume uma posição
conservadora, marcada ainda pelas determinantes de seu tempo passado e este é
Haroldo.
Esses três narradores não estão
fechados cada um em suas próprias redomas. Eles oferecem interpretações dos
acontecimentos e respostas que se encontram por complementação ou por choque,
desafiando, muitas vezes, quem diz a verdade. Embora não tenhamos acesso à voz de
Benjamim, subtendemos muitas vezes que é dele o papel de questionar, incitar e favorecer
os confrontos sobre o que conta cada uma das suas testemunhas. Quer dizer, aqui
reside o ponto essencial de Antonio: alguém em busca de uma
verdade e que se descobre na árdua tarefa de precisar construir por sua própria
conta isso que busca, porque, ao dizer do outro (ou tentar dizer do outro) seus
interlocutores são em grande parte — como somos — autocentrados; isto é,
falamos do outro dizendo de nós. É por isso que, essa interlocução reencena
qualquer coisa da forma primitiva do oráculo: não é o caso de cada um oferecer
uma charada a respeito do destino de quem o consulta, mas a história que um
conta, obriga o próprio Benjamim fazer sua verdade, ainda que a figura das suas
buscas quase desapareça soterrada no mito maior de Teodoro, por quem, mesmo quem
o reprova, guarda qualquer coisa de admiração.
Ora, Teodoro encarna uma parte essencial
do seu tempo. É o homem que, tolhido por uma país que se entrega à barbárie,
que impõe a violência da tortura, da morte e do silenciamento como regras,
decide abdicar de qualquer atitude das que motivaram seus pais no interesse de
construir uma nação. A partir dos anos de ditadura, decide ir viver pelo
interior profundo do Brasil num périplo que ora recobra o de um Guimarães Rosa
antes da feitura do Grande sertão, e se integra com todas as forças ao
rural, o ponto de inflexão do Brasil. Quando regressa à vida urbana é um homem
profundamente marcado pelo embrutecimento das forças originais que agora
impedem-no, em definitivo, qualquer restabelecimento com o menino em
perspectiva do passado. O grande choque entre esses dois universos — o rude e o
educado, o racional e o natural, o bárbaro e o civilizado — agudizam sua forma
de descentrado, arrastando-o para a paranoia. Todas as personagens desse romance
de Beatriz Bracher guardam uma força muito própria, mas, talvez nenhuma delas
seja mais do nosso país que Teodoro.
E a condição que o faz desbravador,
qual um bandeirante, e herói, pela maneira como se integra aos dramas sociais e
deles participa com o interesse de resolvê-los por sua própria mão, só se
estabelece porque Isabel, a mãe, se pauta por um princípio de liberdade do
homem, a quem compete a resposta pelas escolhas sobre o seu destino — mesmo que
descubra mais adiante que o seu papel como mãe de um desgarrado jamais se
apazigua, porque é sempre para ela, por razões de ambos os lados, o outro que
se ignora na liberdade irrestrita; é dela a sentença que rediz o valor do
trabalho enquanto libertação do homem — “o trabalho só liberta os pais dos
filhos, o bolso dos pais, o que reconheço é já uma grande coisa, mas o trabalho
em si mesmo não liberta ninguém, em geral aprisiona.” A postura de Isabel,
aliás, se em algum momento é questionada por Haroldo, noutro alcança uma
compreensão que inibe dela a culpa pelo destino extraviado de Teodoro — assim,
é de alguma maneira a determinante das circunstâncias, mas não estas, formadas
pelas próprias forças individuais.
Assim como é possível estabelecer
as várias linhas que dão forma aos narradores e sobre Teodoro, como apenas
tocamos nas suas superfícies, podemos construir uma imagem mais ou menos
acabada de cada uma das personagens da família Kremz — é dos restos de uma
família tradicional que falamos. Como então, este romance se assume como uma
tergiversação? A observação responde claramente o motivo. O que seria uma
narrativa acerca de Elenir ou de Antonio — e mesmo de Benjamim — se torna uma
narrativa possível dos Kremz; as demais personagens são os integrantes dessa
família, principalmente, os irmãos de Teodoro: Flora, Henrique, Leonor, seus
avós Emanuel e Sílvia, e mesmo o Benjamim morto e o redivivo entrevistos na narração.
Elenir e Antonio continuam, dessa maneira, na grande incógnita, uma
fantasmagórica porque não está mais viva, e outra como abertura, a criatura por
vir enquanto morre Isabel. Os ausentes ainda que se mostrem são feitos de
silêncio, medo e desejo.
Nada em nenhum romance é fortuito.
Em Antonio notamos, pela reiteração da narração, uma presença da
narrativa bíblica e do papel simbólico que esta desempenha para o imaginário criativo,
tal como é possível mapear, apenas a título de exemplo nestas notas, com
Benjamim. De origem hebraica, esse nome significa, o filho da mão direita. Na
Bíblia, é da sua descendência que nasce o primeiro rei de Israel. É também o
filho da felicidade; pelo sentido contrário, Raquel, a mãe bíblica de Benjamim,
o nomeia filho da dor. No romance todos esses sentidos comparecem: é de
Benjamim que a avó indiretamente espera o restabelecimento de alguma ordem na linhagem
familiar, talvez pelo desfazimento do estigma da loucura, nascido com Xavier e
perpetuado em Teodoro; nas duas aparições da personagem (o filho de Xavier e o
filho de Teodoro) são os filhos da felicidade absoluta entre seus
preceptores; entretanto, cada deles traz com sua chegada ao mundo algo de
trágico: a loucura do pai e a morte da mãe, respectivamente.
A expectativa de Isabel, por sua
vez, encontra respaldo na figura-título do romance: Antonio é o valioso,
o de valor inestimável. A questão é, será mesmo que com ele se produziria
a salvação dos Kremz da loucura? A resposta para a pergunta cai no território
do possível porque nada sabemos sobre a quarta geração da família, ainda que encontremos
alguma de sua presença no final do romance: o filho de Henrique, Fábio, se mostra
desgostoso da avó e acompanha o cortejo fúnebre com todo desinteresse patente
desde o modo de se vestir. Disso é possível justificar alguma resposta pela dinâmica
de degeneração da linhagem familiar. De toda maneira, o bom romance é mesmo
este que não se obriga a oferecer respostas para tudo. O melhor é justamente o
que nos provoca ainda mais interrogações que as geradas à sua entrada. Beatriz
Bracher lida muito bem com isso que podemos designar como zona de
indecibilidade (tão essencial à literatura) e é por isso que Antonio sempre
continuará oferecendo perguntas sem respostas. Eis também uma qualidade
essencial à saga familiar. É possível dizer sobre o esqueleto no armário —
saber, por que foi guardado, especular maneiras de torná-lo visível —, mas
nunca alcançaremos a resposta suficiente para cada uma dessas questões porque
fatalmente seremos empurrados para outras interrogações, talvez infinitas, e
estas permanecem sempre à disposição dos próximos escritores.
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