A imagem na distância
Por Tiago D. Oliveira
Pensar O porto, de Leda Cartum, passou a
ser uma experiência que observa o trânsito da memória, muito além de toda
simbologia apenas, mas um exercício de percepção do tempo e como as raízes e o
ar se configuram em seu pleno exercício. O lugar que se distancia, nós que nos
distanciamos, essa imagem vista de fora, o outro, dentro ou fora também de tais
formatações. Pensar a poesia como um alçapão a gerir os versos é também aqui um
olhar sobre a forma como eles são grafados no papel. A estética assumida no
livro, tão bem editado pela Iluminuras, traz também essa possibilidade de
trânsito entre as formas, poesia, prosa, cabe tudo nessa alegoria que também
podemos chamar de vida.
Logo no início o leitor recebe o chamado,
Venha ver: é que parece que tem um movimento nas coisas ao nosso redor. (p.9),
que vai se configurando em constatações sobre as subjetividades que a poesia
vem a revelar, mas que ressignificam a leitura de cada um ao passo que crescem
identificações ou novas dúvidas a reforçar uma busca progressiva no passar das
páginas:
É preciso porque te chamei para
ver mas não sei/ o
que mostrar: não sei se você também reconhece/
que mostrar: não sei se você também reconhece/
essa busca
latente que compreende todas as coisas/
e que empreendo sozinho. (p.9)
Quando um livro consegue verter o dia em
seus primeiros versos, quando transforma o som da rua em acordes, paulatinamente
na leitura de cada poema, quando a magia acontece assim, é chance. E já
assumimos o léxico dos poemas em pensamentos, como se fizéssemos parte, a
partir daquele lugar, do mundo recriado pela poesia. E assim me vejo também em
uma busca acionada por esse gatilho, O que procuro me procura (p.11). Sigo já
sobre águas a observar a distância do Porto que deixei e do que já carrego, Não
sei o que procuro e o que/ procuro me sabe, não sei o que procuro e procuro/ -
mas o que procuro me acha (p.11).
A busca é a própria memória que é
recomposta na proporção em que a embarcação se vai. Entre tempos, a imagem do
que se queria vai se modificando e sussurrando traços novos a cada onda, a cada
miragem do porto de que se partiu. E já não nos entendemos dentro de tal busca
e o que fica é a linguagem, O que procuro me encontra e não encontro o que
procuro (p.11). As palavras passam a registrar o que vem a ser um novo porto e
também a figurar o movimento do mundo, da vida, o próprio trânsito silencioso
de tudo.
Diante da imagem construída, a poeta
consegue sugerir uma gestão do que fica depois da partida, seja ela qual for. O
tempo que se foi e o que vem, a geografia que foi deixada e a que se aproxima,
a memória criada e a vindoura, o porto é a culminância perceptiva de uma
trajetória, o findar e revigorar do ciclo, pois ainda diante da leitura, mesmo
depois de constatações, percebo que a busca não se dá ao engendramento de um
fim, cresce contínua e calma como galhos de uma amendoeira depois da poda,
existe como existir, O que procuro me para, me pega, mesmo me aperta/ e
continuo a procurar (p.11).
O livro carrega a natureza do que segue
sem se apegar, sem se fechar ao padrão. A forma experimenta as leituras
possíveis que se desenrolam sobre ela. O fluxo não responde a um caminho
linear, desce, sobe, respira, desassossega e cria sobre a própria escrita, um
livre olhar que organiza também a estética de todo o seu projeto. Leda consegue
experimentar sem se perder em exageros ou faltas que implicariam, talvez, em
uma conexão entre as páginas. A semântica vai se realizado como a ideia que
temos de um objeto ao nos distanciarmos dele, fica a imagem, o desfocar dessa
imagem e a imaginação, que poderia ser simplesmente todos caminhos que levam
até a memória:
Sonhei que era azul. Não pude bem
distinguir a
forma. Não pude bem distinguir o tom. Era um azul
íntimo naqueles
instantes de sonho. Acordei e olhei
por muitos longos segundos o despertador:
naqueles instantes de sonho a sensação tinha
passado. Passou também muito tempo
(dez anos
inteiros): e quando o relógio marcou oito horas, eu
já não me
lembrava de nada. (p.18)
O tempo é memória que a poesia realiza,
sublinha a vida. Mesmo sem a nitidez do desenho, fica a sensação de que existe
(existiu) alguma direção. E assim, a experiência da escrita se transforma em um
local de entendimento dos dias. A maturação, mnemónica, o esticar do indivíduo
entre tempos e saídas. O Porto é um empírico dos pés mesmo quando o leitor não
sai do lugar.
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