Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline

 
Por Pedro Fernandes

Louis-Ferdinand Céline. Foto: François Pages.


 
Os romances que melhor dizem de nós são os escritos sem quaisquer toques melodramáticos porque apenas assim não se contaminam com os limites impostos pela força do egocentrismo que nos regula mesmo quando acreditamos libertos dela. Machado de Assis, por exemplo, fez uso — para recuperar uma expressão sua muito adequada — da pena da galhofa. Esse tom, o escritor brasileiro encontra a partir de uma posição nenhum um pouco irmanada aos de seu tempo; ele propositalmente os trapaceia, qual o homem do subsolo, de Dostoiévski, não porque os renegue, mas porque motivado por visão desencantada desse mundo em que apenas na aparência se manifesta razoavelmente ideal prefere reconhecê-los à contrapelo.
 
No caso de Viagem ao fim da noite, o desconcerto interior encontra forte correspondente com o exterior e traga qualquer possibilidade de uma mínima noção de idealismo. Isso significa dizer que, ao contrário do recorrente na literatura em geral, neste romance de Louis-Ferdinand Céline não acompanhamos nenhuma transformação do ponto de vista — positiva ou negativa — no protagonista, apesar de seu longo e variado périplo por meia parte do mundo. Fora, isto é, numa ordem física, esse efeito se assume apenas em parte: não temos notícias direta sobre um envelhecimento de Ferdinand Bardamu e numa circunstância quando essa possibilidade acena (num diálogo muito próximo ao desfecho da narrativa entre esta personagem e o padre Prostite) logo a distinção de tempo se encontra escamoteada:
 
“Tínhamos ele e eu passado já de muito a barreira dos trinta. Eles se afastavam no passado os nossos trinta anos para litorais firmes que deixaram poucas saudades. Não valia nem mais a pena nos virarmos para identificá-los, esses litorais. Não tínhamos perdido muita coisa envelhecendo. ‘Tem que ser mesmo bastante velhaco’, concluía eu, ‘para ter saudades de tal ano mais do que de outros!... É com energia que podemos, nós, padre, envelhecer, e ainda por cima corajosamente! O ontem era tão engraçado assim? E o outro ano de antes?... O que é que o senhor achava daquele ano?... Ter saudades de quê?... Pergunto ao senhor! Da juventude?... Não tivemos, nós, juventude!...”
 
Notamos que se escamoteia o que poderia ser uma revelação da idade do protagonista porque a continuidade do ponto de vista original reduz tudo a uma massa amorfa, incapaz de fazer o observador identificar fronteiras — se é que existem, verdadeiramente — entre tempos no correr da vida. Mas, qual é essa posição assumida por Bardamu — é a da galhofa, a do desencanto ou a do desespero? Podemos descartar a última. E embora prevaleça claramente a segunda, como é possível notar no excerto lido há pouco, são as duas restantes que se misturam na composição do tom assumido ao longo da narração.
 
Toda a narrativa, aliás, pode ser descrita como um argumento favorável a uma tese que se desenvolve à medida que a personagem principal se desloca num mundo cindido e degenerado: a descrença no outro, ainda que este seja, simultaneamente, inferno e salvação e esta em relação àquele não seja uma eternidade e sim acaso encontrado em quem menos imaginamos encontrar. “É dos homens e só deles que se deve ter medo, sempre” — dirá o narrador numa das suas muitas irrupções aforísticas.
 
Tudo no mundo está à serviço do indivíduo ainda mais quando este mundo está submetido à negação da coletividade porque cada qual se encontra preso à luta de escapar da morte. “É preciso abolir a vida do lado de fora, transformá-la também em aço, em algo de útil. A gente não gostava muito dela tal como era, é por isso. Portanto temos que transformá-la num objeto, algo sólido, é a Regra.” Quer dizer, mesmo que prevaleça uma descrença radical na civilização, Viagem ao fim da noite testemunha que toda existência deve encontrar (só encontra) sentido quando transformamos o mundo em nosso favor. Para Ferdinand, a vida se justifica enquanto fuga; não é que deixar de mergulhar em definitivo no mundo desenvolva no indivíduo uma moral que o faça melhor ou acima dos outros, mas sendo o mundo degeneração, penetrar na existência pode constituir também sua desordem.
 
Qual então o mundo de Ferdinand e do que foge? Se desde sempre desconfia de uma refrega coletiva, é um impulso que o arrasta para testemunhar na própria pele; impulso que mais adiante se confirma como certa condena a qual todos os viventes estão submetidos e contra a qual nada impedirá do contrário — o que a princípio pode soar como fatalismo ou ausência de ética e esperança, é puramente uma lei universal sobre a qual não sobram escolhas. Enviado para a guerra, todas as suspeitas originais da personagem se confirmam: o ideal é uma coisa abstrata em nome do qual homens se jogam contra homens fazendo-se cegos à pequena distância pela incapacidade do autorreconhecimento pelos seus semelhantes.
 
A guerra é a primeira das coisas absurdas que fazem o protagonista confrontar diretamente a noção de civilização e de humanidade, mas há ainda outras dimensões enfrentadas por Ferdinand: os meses em abrigos tão logo consegue escapar da guerra; o mesmo tempo na empresa colonial nos confins da África; a fuga para os Estados Unidos e os dias de convívio como empregado da Ford em Detroit; outra vez o retorno a Paris e sua atuação como médico no subúrbio de Rancy até alcançar o papel de diretor de um manicômio.
 
No seu tempo, a guerra em oposição ao progresso se coloca como o lado capaz de estabelecer outro destino ao mundo. Mas, é a partir da estadia na América — na vivência no interior da máquina do capital, este mastodonte capaz de deglutir as pessoas em coisas e tudo impiedosamente —, que percebemos como a grande descoberta de Bardamu se alinha com o vivido na guerra e na colônia: em toda parte, os homens estão uns contra os outros e nada esperam se não o aproveitamento, a usura e a exploração em nome sempre de uma ideia de felicidade coletiva. Talvez por isso, apenas quem atravessa na prática essas determinantes é capaz de conseguir alguma compaixão alheia, como é o caso da prostituta estadunidense que aposta no que Ferdinand propriamente é incapaz de apostar: sua redenção.
 
Ou esperança. Alguns dos homens e mulheres com as quais Ferdinand Bardamu convive estão afetados por uma força que os impulsionam para vida; essa força, nosso protagonista mapeia como interesse, dinheiro, propriedade, prazer, vício, paixão e elas tragam os indivíduos para a noite. Da guerra, descobre que a existência é um combate em si e sem finalidade. “A vida é isso, um fiapo de luz que termina na noite.” O que Ferdinand talvez saiba a mais que os outros é dado apenas por seu pessimismo. A vida é crédito da morte abatido em prestações nem sempre perceptíveis dos devedores.
 
Duas coisas são notáveis neste romance de Céline. A primeira é como uma narrativa que cobre todo um tempo de maturidade da personagem se modifica — por vezes assumindo isso na desigualdade do esquema formal e estilístico — e não perde sua unidade. E a segunda é como se utiliza dos grandes planos para mais adiante propor correlações com os esquemas individuais; o movimento contrário também é possível. Obviamente que esse segundo feito não se opera de maneira tão separada como essa leitura possa sugerir; por vezes, um plano geral é ocupado por um particular quase ao mesmo tempo, como observamos na longa solidão enfrentada por Ferdinand Bardamu nos Estados Unidos: tudo aí é a um só tempo condição dele, Ferdinand, mas da humanidade como um todo.




 
É possível mapear pelo menos quatro grandes partes de Viagem ao fim da noite. Na primeira encontramos o protagonista, embora cindido por sua individualidade e desencanto, integrado de alguma maneira à sua ordem. Aqui a narrativa assume um tom mais claro; o homem se apresenta no epicentro desse torvelinho que parece envolver a todos para um horizonte de boa perspectiva, ainda que os planos da história acenem pelo seu contrário; o romance é então marcado pela recordação e certa frequência dos diálogos.
 
Dessa condição, Bardamu se afasta para uma solidão profunda que em alguns casos só será rompida por uma tentativa mínima sua e instantes aleatórios, como o seu encontro com Robinson — figura enigma que o segue ou é seguido em toda parte —, Lola e Molly. Neste que é o segundo estrato do romance, o tom é o da observação, com grandes planos descritivos ou exclusivamente centrado na interioridade e a narrativa se esgarça ao seu limite, o ritmo da ação é substituído pelo da especulação, num claro estreitamento com o plano frequentado pelo protagonista: o da aventura interior, a mobilização necessária para, outra vez, escapar das artimanhas de um mundo outra vez em contínua obscuridade e retração.
 
O terceiro estrato se organiza como se uma síntese dos dois anteriores e encaminha para o drama epigonal do romance; o narrador amplia o seu interesse pelo plano do cotidiano individual. Quer dizer, embora integralmente centrado no eu, os dois outros extratos do romance se organizam em torno de planos maiores: a guerra, a colônia, a grande cidade. Nestes dois últimos se desenvolve por contar os acontecimentos da vida do protagonista como médico, entre eles, os do reencontro quase definitivo com Robinson e o convívio com a família Henrouille, desde quando é chamado para forjar um atestado para internar numa casa de caridade a matriarca e tudo porque filho e nora (ela a mentora, desconfiamos) vencidos o grande projeto da vida, quitar o imóvel onde vivem, estão totalmente carcomidos com o vício do capital: a avareza e o usufruto.
 
Este episódio com os Henrouille — que em parte trai o protagonista da sua contínua fuga, visto que sempre retornará ao epicentro familiar — concentra a verificação no plano individual do que o narrador terá reparado nos planos anteriores, como se agora pudesse constatar em definitivo sobre a impossibilidade de uma ordem coletiva. Esta se deve em parte porque certa virtude, como a experimentada apenas com Molly, é cada vez mais rara num mundo corrompido pelas estruturas da técnica e do capital. Até mesmo a inquietação que coloca o protagonista à prova do mundo também foi corroída por esse percevejo — para recuperar uma imagem sempre recorrente neste romance, diríamos de maneira simplista e quase reducionista, o homem é o percevejo sobre a terra.
 
Exemplo disso é Robinson — peça-chave no último estrato do romance. Quando Bardamu o encontra, é um homem que, a sua maneira, se indispõe lutar na guerra e quer, por isso, a deserção; uma vez tragado pelas ambições capitais dessa família avarenta da periferia de Rancy, a inquietação de não mergulhar na experiência do mundo, algo que parece exercer ao limite quando nos Estados Unidos, por exemplo, se recusa a aprender inglês, é instrumentalizada; mesmo depois de conquistar certa perenidade na vida quando poderia outra vez e em definitivo ir para o inferno, se percebe infeliz porque gostaria de usufruir dos ganhos obtidos pela velha Henrouille com o negócio da cripta. Ora, essa ordem individual é a mesma encontrada na coletiva.
 
Louis-Ferdinand Céline oferece com este romance uma leitura acerca do processo de degradação das qualidades que apontam para uma distinção entre homens e coisas. Apesar de reconhecer isso como um mal do qual é impossível fugir — notemos o envolvimento do seu protagonista com os negócios escusos da família Henrouille — sua fuga é também uma busca: a de uma fraternidade possível, capaz de outra vez fazê-lo se sentir parte no mundo. Isto é, busca aquilo do qual foge, mas foge porque as qualidades fundamentais do que busca foram desfiguradas, estão confundidas com o grande escuro da noite.

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