Todos somos o monstro de Frankenstein
Por Silvia Panadero
Frankenstein, de James Whale em 1931. |
Enquanto Lenu filosofa sobre o
Espírito Santo, o ponto principal do curso de teologia que está fazendo, Lila
se arruma para ir ao cinema com o marido e alguns amigos. As duas têm a mesma
idade, dezesseis anos, mas Lenu pôde continuar estudando, enquanto Lila precisou
cuidar de sua vida e de seu futuro muito jovem. Às especulações levantadas por
sua amiga responde com uma visão particular do mundo: “Há uma miséria ao redor
que nos torna todos ruins. A cada segundo pode acontecer alguma coisa que lhe
fará sofrer de uma maneira que nunca haverá lágrimas suficientes. E você faz o
quê? Um curso de teologia em que se esforça para entender o que é o Espírito
Santo? Deixa pra lá, foi o Diabo que inventou o mundo, não o Pai, o Filho e o
Espírito Santo.”¹
Dessa forma, Elena Ferrante
captura a raiva, o ódio, o ressentimento e a maldade de Lila em certo ponto de A
amiga genial, o primeiro romance da tetralogia napolitana, que narra a
amizade dessas duas mulheres de um bairro pobre e marginal de Nápoles.
E embora tenham crescido no mesmo
lugar, Lila e Lenu não tiveram as mesmas oportunidades. O essencial: uma pôde
continuar estudando e a outra não. Isso e sua habilidade especial de
interpretar o mundo e a realidade fazem Lila chegar à conclusão de que as
circunstâncias, ou a miséria, neste caso, nos transformam em pessoas más.
“Mas assim ocorre com frequência:
o constante atrito de mentes de pouca luz enfraquece até mesmo as melhores
resoluções dos mais generosos”², reafirma Herman Melville pela boca de um de
seus personagens, em Bartleby, o escrivão.
Essas duas reflexões levam
inevitavelmente a um livro que tem sido considerado por muitos o precursor de
uma das maiores e mais consumidas formas ficcionais: a ficção científica. Em
1816 uma mulher criou um monstro com o qual pretendia congelar o sangue e que transcendeu
os séculos até chegar a nós — Frankenstein.
Deformidade da história
Em Frankenstein ou no moderno
Prometeu, Mary Shelley propõe um dilema intimamente ligado à religião e à
moral. Victor Frankenstein é um jovem obcecado pelas ciências naturais que se
acredita capaz de fazer a vida brotar da matéria morta. Para fazer isso, ele
rouba partes de cadáveres e configura um ser, de aparência semelhante ao
humano, ao qual dá vida. No entanto, quando ele consegue acordar a criatura, tudo
o horroriza, o que ele fez aos cadáveres o horroriza, e ele o abandona à
própria sorte. É aqui que o monstro começa a padecer.
Talvez seja bancar de ser purista
dizer que o cinema distorceu a verdadeira história contada no romance, mas foi
o que aconteceu. Um dos primeiros longas-metragens baseados nesta obra foi Frankenstein,
dirigido por James Whale em 1931. No fundo, a história pouco ou nada tem a ver
com o texto original, a começar porque o Frankenstein nem mesmo guarda o nome
que é dado no romance e terminando porque em uma das primeiras cenas o tema
principal do trabalho de Shelley é desfeito. O monstro deste médico recebe o
cérebro de um criminoso e isso justifica suas ações malignas durante o resto da
narrativa fílmica, uma trama semelhante à de O jovem Frankenstein,
dirigida por Mel Brooks em 1974. Por outro lado, no romance, o que faz esta
entidade maléfica são os contínuos maus tratos que recebe dos humanos.
Mary Shelley criou uma figura
grotesca por fora, mas boa, ingênua e terna por dentro. Ela construiu uma
verdadeira jornada para o personagem que nem mesmo tem a decência de ter um
nome e que acabou sendo o que era exteriormente, um verdadeiro demônio.
Essa jornada para o horror do
monstro começa quando ele percebe que seu criador, Victor Frankenstein, o
abandonou porque ele não pode suportar sua aparência externa. Vagará sozinho,
aprenderá apenas a falar, ler e se sustentar e tentará, sempre em vão,
aproximar-se dos humanos para pedir algum apoio e carinho. O tratamento que receberá
deles irá transmutá-lo em mal. Aquela miséria de que fala Lila, o atrito entre
mentes de pouca luz que Melville fala, molda seu caráter, a experiência o
transforma e embora ele se ofereça para voltar a fazer o bem, isso também é
negado em todos os casos.
De Pergunte ao pó a Cidade dos sonhos
Muitas são as obras que tratam de
temas semelhantes aos de Frankenstein, principalmente em relação a
mutação de uma pessoa boa e inocente depois de ser ferida ou que é forçada a
fugir pelas circunstâncias impostas.
Em Pergunte ao pó, de John
Fante, Arturo Bandini está em seu quarto na pensão onde mora em Los Angeles.
Nada parece ir bem para ele ultimamente, nem mesmo escrever, e é por isso que está
na cidade buscando ganhar a vida com sua literatura. Faz semanas que só se
alimenta de laranjas e ele, que vem da miséria e de uma família profundamente
religiosa, acaba roubando para poder variar sua alimentação. Claro, depois
disso ele se sente culpado e enojado, mas as circunstâncias inevitavelmente o
levaram a agir dessa forma.
Walter White segue um caminho mais
radical ao passar de professor de química gordinho para o rei da metanfetamina
de Albuquerque em Breaking Bad. Dele é a jornada do anti-herói, do
cidadão comum cansado, oprimido pelo peso de uma vida rotineira e infeliz, a
quem o câncer é a desculpa perfeita para mandar tudo para o inferno.
A metamorfose de Betty em Diane em
Cidade dos sonhos também fala sobre isso. Betty vem à cidade em busca de
uma carreira de atriz e a acompanhamos boa parte do filme em sua jornada e em
sua história de amor com Rita. De repente, a trama muda e Betty não é mais ela,
mas seu nome é Diane, enquanto Rita é Camilla. Por ciúme, por rancor, por
raiva, por insatisfação por não poder ter Camilla ou a brilhante carreira de
atriz que planejou em Hollywood, Betty / Diane acaba contratando um assassino
de aluguel. A doçura e a inocência de Betty acabam sendo a impulsividade e a
maldade de Diane após um caminho pedregoso, árduo e infrutífero que David Lynch
omite ao espectador por meio de uma elipse. Betty / Diane é uma espécie de
doutor Jekyll e Mr. Hyde, só que aqui não há poção que a torne má, mas é a vida
que a empurra a agir sem escrúpulos.
Todos esses personagens estão
privados de algo, amor, carinho, compreensão, realização pessoal e
profissional, e fizeram a mesma viagem unilateral: da bondade à maldade. Todos
esses personagens são o monstro de Frankenstein.
Meu Deus, por que me abandonastes?
Por que me abandonastes? É a
pergunta que o monstro criado por Shelley se faz em sua descida ao inferno. O
momento culminante do livro surge quando o criador encontra sua criatura e esta
lhe conta sobre sua vida até então, implorando misericórdia.
“Quanto a mim, em vez de um novo
Adão, sou o anjo decaído que você priva do direito à alegria, sem que me caiba
culpa. De todas as benesses de que tenho conhecimento, eu sou sempre irrevogavelmente
excluído. No entanto, eu era bom e compreensivo. Foi a desgraça que me
converteu em demônio. Devolva-me a felicidade e voltarei a ser virtuoso.” Ele suplica
a Victor.
Este cientista, que passou a
representar todos os cientistas loucos em muitos discursos, não era louco de
verdade, simplesmente não considerava ao alcance de suas ações, estava cego
pelo ego, pelos méritos, pelo sucesso de chegar a uma descoberta que nunca havia
imaginado. Mais do que uma história de vida e morte, Frankenstein é uma
obra que fala sobre a relação do homem com Deus. Desta forma, Victor
Frankenstein seria Deus e o monstro da humanidade.
O Salmo 21 da Bíblia começa
dizendo: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? E permaneceis longe de
minhas súplicas e de meus gemidos? / Meu Deus, clamo de dia e não me respondeis;
imploro de noite e não me atendeis.” E mais adiante “Eu, porém, sou um verme,
não sou homem, o opróbrio de todos e a abjeção da plebe./ Todos os que me veem
zombam de mim”
Assim, uma das interpretações pode
ser que Deus nos abandonou. Como Victor faz com seu ser abominável, nosso
criador também nos deu as costas, deixando-nos amarrados ao livre arbítrio, dando
voltas como uma galinha cega e se perguntando ao acaso quando, onde, como e,
acima de tudo, por quê.
Nesse ponto, uma pergunta pode ser
feita: somos naturalmente maus ou as circunstâncias nos tornam maus? O eterno
confronto entre Hobbes e Rousseau está servido. O caso de Frankenstein
está mais alinhado com Rousseau. Para Mary Shelley, são os outros e as
circunstâncias que nos rodeiam que nos fazem olhar para a parte mais escura de
nós mesmos.
O monstro de Frankenstein sobrevivia
quando comete seus crimes. Diante dos maus-tratos, insultos, ameaças e
grosserias do ser humano, ele não encontrou outra forma para se fortalecer e
superar a dor que isso lhe causava, conduzido por um forte sentimento de
vingança, humilhação e solidão. Da mesma forma que Lila é irônica e implacável
com Lenu para não se sentir inferior por não estudar tal como amiga, o monstro
deste romance gótico supera suas circunstâncias fazendo o mal. Em outra
possível interpretação do livro, parece que a reação da criatura é um
julgamento poético contra Victor Frankenstein, que se julgou Deus e obteve o
que merecia daquilo que mais lhe custou esforço para conseguir. Talvez seja um
alerta da inglesa sobre as consequências que podem existir para uma pessoa
quando deseja suplantar o curso natural das coisas, se acredita invencível e
tem orgulho excessivo.
Isso justifica o assassinato? No
contexto do trabalho de Shelley, sim, em uma sociedade civilizada claramente
não. Mas o que viemos a dizer é que a vida e seus golpes nos moldam e mudam não
só a percepção da nossa realidade, mas também o nosso caráter e em última
análise, nossa personalidade. O mau tratamento de um chefe é como uma gota d’água
numa rocha (plof, plof, plof), as circunstâncias desfavoráveis nos consomem
de vez em quando, a miséria está presente onde quer que você olhe, como Lila
apontou, e pouco a pouco, sem nos darmos conta, já não somos o que éramos.
Agora nosso personagem está mais arredio, mais cínico, mais irônico. Em maior
ou menor grau, somos todos o monstro de Frankenstein. Como dizia Arturo
Bandini: “Ah, vida! Oh, tu, agridoce tragédia, oh, tu, deslumbrante rameira que
me levas à destruição!”³
Notas da tradução
1 A tradução utilizada é a de
Maurício Santana Dias (São Paulo: Biblioteca Azul, 2015).
2 A tradução utilizada é a de
Cássia Zanon (São Paulo: Rocco, 1986).
3 A tradução utilizada é a de
Roberto Muggiati (São Paulo: José Olympio, 2003).
* Este texto é a tradução de “Todos
somos el monstruo de Frankenstein” publicado aqui, em Jot Down.
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