Romantismo e Alemanha: uma questão de necessidade
Por Marcelo Moraes Caetano
A identidade cultural — ou ao
menos a sua busca — tem sido elemento incontestável na formação de indivíduos e
de coletividades desde, no mínimo, o início do Paleolítico Superior, com a “Revolução
agrária”, e o início da Idade dos Metais, com a “Revolução da escrita”. Há quem
conteste, sempre sem êxito, ao menos até hoje, a tese.
Os marcos da Germânia (ou
Hermania, “terra dos irmãos”, em latim), que fundaram a mais ostensiva dinastia
europeia, a dos Habsburgo; que praticamente inventaram a infalibilidade da
tática da guerrilha, com Aníbal; que atestaram a quimérica convivência entre o
Sacro Império Romano-Germânico e a Reforma Protestante de Lutero e Calvino; que
observaram, mudos, por séculos, verdadeiras hidras de Lerna como o Império
Austro-Húngaro, a Tchecoslováquia, a Iugoslávia, Weimar, Boêmia, entre outras
peripécias; esses marcos necessitavam, após a “Revolução intelectual” dos
séculos XVI, XVII e XVIII, enfim, de um rosto.
Afirmar-se muitas vezes requer
negar-se anteriormente. E não apenas negar-se: negar o outro também é sine
qua non para a difícil equação de inventar-se dos escombros e escolhos que
se têm. E que não se têm.
Dois elementos, assim, podem ser
apontados, mais de imediato, na fertilidade de terreno que a futura Alemanha
demonstraria para arar a sebe do Romantismo. O primeiro deles diz respeito ao
que se queria: uma face cultural, um “eu-nação” contrário ao
“você-estrangeiro”; trata-se da face afirmativa ou associativa da formação
antropológica de que falei. O segundo elemento diz respeito ao que não se
queria: nem o Iluminismo de Isaac Newton, Hume, D´Alembert ou Voltaire, nem a
monarquia nos moldes britânicos, guilhotinada em parte do mundo pelo roldão
napoleônico; estamos diante da face negativa ou dissociativa da questão.
O desaire que representava
demonstrar-se passional ou, até mesmo, fraco encontrou fogo cruzado na
eloquência precisa (suíça) de Rousseau, mas foram Schiller e Goethe que
obtiveram o melhor resultado na intrincada equação entre dizer “sim” a uma face
e “não” à outra do mesmo torvelinho, como um verdadeiro Deus Janus ou Janeiro,
com uma face para o passado e outra para o futuro. Equilibrado justamente sobre
o frágil dínamo da instabilidade (que Hegel virá a somatizar aos pósteros).
Como eu já disse, mudos e
observadores, os alemães saíram do casulo provavelmente apenas com Kant, cuja
crítica da (e à) razão pura impulsionou a potestade teutônica a
pensamentos insuspeitos, grosso modo, cognominados de Irracionalismo, como
o do já aludido Hegel, além de Schopenhauer, Nietzsche, Freud, Husserl, Hanna
Arendt, Melanie Klein.
A tradição de povo bárbaro,
desafeito ao pensamento, comprova-se até mesmo em dois dos grandes
revolucionários do pensamento e da pragmática nascidos em terreno
germânico: Lutero e Gutemberg. Ao passo que as línguas modernas
haviam sido criadas alhures por verdadeiros estetas — Cervantes, Camões, Dante,
Petrarca, Bocaccio, Shakespeare, Molière —, a língua alemã foi igualmente
forjada, mas por um ex-monge, atual-herege, que se restringiu a traduzir uma
obra arcaica e medieval: a Bíblia.
Lutero, sabe-se, foi o precursor
da língua alemã moderna, mas o fez por uma tradução, e de uma obra medieval,
nos dois sentidos do adjetivo, enquanto seus pares promoviam a ruptura de
pensamentos vigentes. Lutero criou a base da expressão alemã reiterando o
caráter arcaico e bárbaro de seu povo. Gutemberg, por sua vez, e sem maiores
divagações, revolucionou o mundo com uma invenção técnica cuja função foi
expandir ao povo o conhecimento dos píncaros celestiais que Lutero, voltando a
ele, tão bem (e também) fizera ao traduzir os abstrusos grego e latim à
vernaculidade rude e inculta de seu povo.
São dois pensadores que reforçam a
tese da rudeza; que assumem que ser alemão é ser popular, sem ser populista.
(Quando um tal de Führer confundiu ser popular com ser populista,
tivemos “bastardos inglórios”, os filhos espúrios do espírito Romântico
maiúsculo. É Arendt, mais uma vez, quem nos avisa, entre outros, dessa
associação triste em Origens do totalitarismo, com seu conceito de
“banalidade do mal”.)
Regressemos à linha do texto, mas
avancemos no tempo. Os Decretos de Carlsbad, do poderoso Metternich, em 1819,
que intervieram sobre o pensamento mudo, conquanto pujante, das universidades
da Confederação Germânica, talvez tenham desconcertado o concerto europeu pós-Congresso
de Viena (1815), em que a Europa e seus destroços e galardões foram
distribuídos a vencedores e perdedores dos paradoxos do franco-genovês Napoleão
Bonaparte. Obrigaram a mudez a falar.
O desdouro da derrocada do Sacro
Império Romano Germânico, que só caíra de vez em 1806 (em parte por causa
das guerras franco-prussianas e em parte mais imediata por causa das batalhas
posteriores à Revolução Francesa), e a proximidade ideológica com a Rússia
(que, aliás, se revalidou após a II Guerra Mundial, quando Berlim e a Alemanha
cravaram literalmente um muro ideológico alinhado parcialmente à mesma Rússia,
então URSS) foram estopim do imbróglio entre Rússia e o Império Otomano
(Turquia), que pode ser encarado como a antevisão da I Guerra Mundial. Isso
porque o Império Russo, a Grã-Bretanha e a França, de um lado, contra o Império
Alemão, o Império Austro-Húngaro, a Bulgária e o Império Otomano, do outro,
engendraram uma guerra tão maior que a II Guerra Mundial, que esta última pode
ser considerada apenas uma (dentre as inúmeras, apenas mais uma) consequência
daquela primeira.
Ser romântico era necessário no
fim do século XVIII e início do século XIX nos ducados, condados e principados
germânicos. Era preciso dizer “sim” e “não” simultaneamente. Era peremptório
adotar-se a afirmação e a negação concomitantes como as duas faces muito
posteriores do cerebrino suíço Ferdinand de Saussure, um dos criadores do
estruturalismo.
Negar o Reino Unido do mesmo modo
que o Ultrarromântico Mohandas Karamchand, conhecido como Mahatma Gandhi, o
fez. Negar a França como Jinnah...
Era preciso ser popular com a
lauta distribuição do conhecimento de Gutemberg.
O Romantismo é o desaguar de uma
antiquíssima refrega que os “nórdicos” (uso o termo em acepção evidentemente
anacrônica) sempre ostentaram, desde os “primitivos flamengos”, passando por
Bosch, Vermeer, Rubens, Van der Weyden, Dührer, Van Eyck, Grotius... Lutero
etc., etc. Trata-se da afirmação definitiva de toda uma História de negação e
silêncio. Trata-se de um grito pujante — que o surdo e romântico Beethoven
soube manufaturar como ninguém — de “sim” à tragicômica realidade da vida
utópica e heroica.
Trata-se de uma aposta que ficara
congelada, em crisálida, por séculos, mas que desabrochou para mudar a face do
mundo com Marx, Rosa Luxemburgo... mas também Hitler, Goebels. O “imperativo
categórico” de Kant (voltamos a ele...), que coeria uma pletora de motivos
determinando que um indivíduo devesse agir como uma comunidade inteira (e,
pior: versa-vice), acabou, ironicamente por dedução cartesiana, concluindo que
as urbes de todo o mundo deveriam agir como o potencial orbe alemão. Hitler
imantou-se a isso.
A Alemanha, em poucas décadas,
ombreou com filosofias antiquíssimas, como a egípcia, a grega, a hebraica, e
outras ainda mais antigas, como a hindu, a chinesa.
O Romantismo nasceu na Alemanha
porque seu silêncio de milênios não era um silêncio passivo, mas o silêncio do
aprendiz reverente que só na hora adequada se propõe à análise da
Verossimilhança.
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