O segredo da perdurabilidade: a obra de Sara Gallardo
Por Ana Llurba
Na última década, a obra ficcional
e jornalística de Sara Gallardo (Argentina, 1931-1988) tem sido reeditada por editoras
latino-americanas independentes. Mas, qual é o segredo de sua perdurabilidade,
além de três décadas de sua morte e quatro de sua última obra publicada?
Tentamos responder revisitando sua obra, consultando seus editores, assim como escritores
contemporâneos que admiram seu trabalho.
Desde seu primeiro romance, Janeiro
(1958), Gallardo explorou o desconcerto das classes sociais ricas, as pequenas
hipocrisias, a perda da inocência, bem como uma reconfiguração da forma como o
campo era abordado como um espaço literário, tocando temas polêmicos de sua
época. Como, por exemplo, o estupro e as tentativas subsequentes do aborto de
Nefer, a protagonista neste romance. Lida modestamente com “uma história de
amor contrariado”; em Janeiro, a filha de um feirante de uma fazenda é
vítima de abuso sexual por parte de seu patrão e forçada a se casar com ele. O
escritor Alejandro Morellón situa este romance “num díptico com Yerma
(1934) de García Lorca, pelo que tem de um ambiente rural e estigmatizante, devido
a essa violência social e heteropatriarcal sobre as funções maternas de uma
mulher no espaço de uma aldeia.”
Depois deste livro, seguiram-se
mais dois romances, Pantalones azules (1963) e Los galgos (1968),
que ainda permanecem dentro do espectro realista. Segundo o escritor Federico
Falco, esse período inicial da obra de Gallardo foi influenciado por “certas
tendências comuns à sua época e com certa influência da literatura estadunidense
e de escritores italianos do pós-guerra como Cesare Pavese, Vasco Pratolini”.
Vale destacar que nos romances seguintes — Eisejuaz (1971), El país del
humo (1977) e La rosa en el viento (1979) —, a autora deu um passo
importante: a experimentação com o folclore, o maravilhoso, realismo mágico e até
misticismo em convergência com a tradição oral latino-americana, sem cair nos
clichês do costumbrismo.
A esta eclética obra junta-se a
sua obra de não-ficção, recentemente reunida em Macaneos (2016) e Los
Oficios (2018) graças ao trabalho da especialista na sua obra, Lucía de
Leone e, também, de Paula Pico Estrada, editora e filha mais velha de Gallardo.
Paralelamente à ficção, desde a década de 1950, a autora colaborou com
crônicas, artigos e colunas tanto para revistas de moda quanto para as revistas
Confirmado e Primera Plana, veículos de notícias conceituados da
época. Com a liberdade que caracterizou sua narrativa, Gallardo deu sua opinião
sobre a minissaia e se gabou de forma programática de sua “desatualização”:
“Abandone o hábito pernicioso de me pedir para escrever sobre temas da atualidade.
Não estou interessada no presente. Além disso, acho que este nem existe. E se
existe, é vulgar. Leia-me como sou e agradeça ao destino por essa sorte.”
Apesar dessa aparente frivolidade,
Gallardo não hesitou em viajar aos lugares mais distantes e desfavorecidos da
Argentina motivada por suas crônicas. Foi numa de suas viagens ao norte do país,
onde conheceu em primeira mão as comunidades indígenas que lhe dariam a
inspiração para o que é considerado seu romance mais ambicioso, Eisejuaz.
Protagonizado por um índio mataco que acredita receber sinais de Deus,
o trabalho intenso com a oralidade e o estilo indireto livre neste romance continua
a surpreender os leitores atualmente. Segundo a escritora Liliana Colanzi, “Eisejuaz
está mais atual do que nunca: não só sua linguagem está cheia de descobertas,
mas também fala do campo como lugar atravessado pelas forças do extrativismo
capitalista que encurrala e expulsa indígenas e animais de seus territórios.
Estamos vendo esse fenômeno agora com a destruição e queima da Amazônia no
Brasil e na Bolívia, e com os numerosos ecocídios na América Latina. O que Sara
Gallardo faz de forma formidável é tirar os indígenas de um lugar de pureza —
que é, aliás, fixá-los no passado e torná-los anacrônicos e irrelevantes — e
nos mostrar esse indígena aculturado em seu catolicismo bárbaro, que é capaz de
dar a Deus um rosto de animal. Nesse sentido, Gallardo é uma grandiosa transculturista”.
Descendente dos fundadores da
Argentina
Uma anedota contada pela escritora
e jornalista Mariana Enríquez ilumina com eficácia o legado familiar de onde
veio Sara Gallardo: numa daquelas típicas aventuras da adolescência, uma de
suas irmãs fugiu da fazenda da família e quando a polícia a encontrou e
interrogou, a jovem disse que seu sobrenome era “Gallardo”, que morava na “Fazenda
Gallardo” e frequentou uma escola, também chamada “Gallardo”. Uma tripla
coincidência fez com que a polícia pensasse que a jovem mentia e exagerava a
ascendência de sua família, mas não. Como sua irmã, Sara compartilhava dessa
linhagem familiar. Ela era descendente direta dos “fundadores” da Argentina.
Nascida Sara Gallardo Drago Mitre em
Buenos Aires em 1931, é trisneta do estadista e duas vezes presidente
Bartolomé Mitre, bisneta do escritor Miguel Cané, neta do cientista e ministro
Ángel Gallardo e filha do historiador Guillermo Gallardo. Estimulada desde cedo
pela biblioteca da família e com esse legado oligárquico sob as costas, ela não
se permitiu ser rotulada por sua ancestralidade e escolheu o caminho mais
difícil. Por isso, a sua obra aproxima-se, na sua ambição literária, da obra de
Silvina Ocampo e Elvira Orphée, nomes também pouco reconhecidos na sua época, como apontam o escritor e grande conhecedor da
sua obra, Leopoldo Brizuela.
Talvez isso a diferencie de autores como Marta Lynch, Beatriz Guido e Silvina
Bullrich, as best-sellers contemporâneas que não resistiram ao passar do tempo.
Deve-se notar que, ao contrário delas, que escreviam sobre as experiências das
mulheres urbanas de classe média, Gallardo se concentrou em reescrever os
romances rurais argentinos.
Por isso, Gallardo só foi
reconhecido em circuitos literários mais seletos. Como lembra uma das cartas do
escritor Manuel Mujica Laínez, em que a felicita pela inovação alcançada com Eisejuaz.
Como El país del humo (1977), o romance se inspira na influência de seu
segundo marido, Héctor Murena. Poeta e ensaísta marcado pelo misticismo e pelo
pensamento latino-americanista, foi ele quem a induziu a escrever “além de sua
classe”. Murena morreu em 1975, de ataque cardíaco, após uma profunda tendência
à depressão e ao alcoolismo. Esta perda afetou Gallardo, que começou uma vida
errante e foi empurrada a morar primeiro na cidade de Sierra Chica, em Córdoba
(Argentina), numa casa que pertencia a Manuel Mujica Laínez. E depois em várias
cidades europeias como Genebra, Barcelona e Roma. Ela morreu inesperadamente,
de um ataque de asma em 1988. Seu último e inacabado projeto era escrever a
biografia da intelectual judia e freira carmelita Edith Stein, assassinada em
Auschwitz.
O legado
O interesse renovado pela obra de
Sara Gallardo, após desaparecer do cânone durante as décadas de 1980 e 1990,
ressurgiu em meados dos anos 2000, nas mãos de editores independentes e
escritores de gerações posteriores. Seus editores espanhóis, Nicolás e
Guillermo, destacam seus interesses na obra da escritora: “o exercício marginal
que leva adiante e que ainda não havia acontecido na literatura argentina do
século XX. Dos personagens — Nefer, a filha de um feirante que engravida depois
de um estupro e não pode abortar, Eisejuaz, o indígena de quem a civilização
tirou sua cultura, língua e finalmente seu mundo —, à oralidade de sua prosa, na
qual o espanhol se mistura com as línguas originais”.
Seu trabalho, breve mas preciso,
remete a um amplo espectro eclético de escritores que vão de Antonio di
Benedetto, Guimarães Rosa, Felisberto Hernández, Juan Rulfo e Edgar Lee
Masters. E no presente continua, segundo os seus editores e escritores
contemporâneos, a projetar-se nas vozes de escritores de renome como Selva
Almada e Samantha Schweblin ou as mais recentes Marina Closs, Mariana Travacio
ou a mexicana Fernanda Melchor. Talvez o segredo da sua perdurabilidade esteja
na sua voz própria, estranha e original, na sua grande liberdade estilística e
temática, na coragem com que se desviou dos caminhos fáceis e das agendas
culturais.
* Este texto é a tradução livre de
“El secreto de la perdurabilidad: la obra de Sara Gallardo, publicado aqui em Babelia.
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