O que fica entre o cair do sol e o ganhar da noite
Por Tiago D. Oliveira
Sobre os poemas, a sensação é mais do que palavras, o tempo atravessa-nos de forma inequívoca, encontra poros
que acessam alojamentos para cada verso do livro As mobílias da tarde, de
Francisco Perna Filho, publicado pela editora Penalux. Um objeto que organiza
acabamentos para cada vão vazio de uma casa. E esta, ao passo que espreita é também
ressignificada pelo barro da poesia a figurar cuidados e respostas que tocam
paulatinamente.
Dividido em quatro partes, “A
infância”, “Gênesis”, “Ao logo desses anos” e “De olhos bem abertos”, em 84
páginas Francisco consegue criar um espaço onde o tempo retoma o que o fez
marcar e entregar poesia em suspensos rasantes do passado. A literatura
apresenta suas armas em direção do que não se coloca nunca sob a ilusão de uma
imagem passiva, o tempo não para, mas na poética do livro conseguimos tocar no
passado novamente; a poesia invade a hora imediata e suspende a memória bem
diante dos nossos olhos, a cada soma de versos.
O sentido de tudo ganha um fio melancólico e este costura a carne da poesia em vestes de ruínas. A constatação de que o
passado tocado agora já não é o ser inaugural que foi agenciado pela sensação
de mundo é latente. A realização se afinca nas imagens que a maturidade compõe
sobre a duração de cada poema, sobre o quedar das águas quando didáticas
figuram caminhos, como podemos observar no poema de abertura do livro; este apresenta já de início uma alegoria funcional para o que podemos entender sobre
a arte de viver e constatar:
Orvalho nas folhas de
erva-cidreira,
fumaça subindo da chaminé,
rangido de carros de bois
e a menina com o rosto refletido
na água da cisterna:
ondeante, tremeluzente,
e um céu muitíssimo azul
perde-se ao toque do balde na
água.
(p. 17)
O que é apresentado para a criança
na infância configura a leitura desses poemas como faz muito bem a imagem do
velho de olhos profundos e amarelos (p. 24) apontados para a
inexperiência vivida um tom real do que o tempo fará com cada um de nós quando
simplesmente passar.
A cidade figura como personagem
intermitente de uma poética que nasce pelo olhar e pelo sentir, esse estar no
mundo capaz de criar ou destruir. E aos poucos cada cidade se faz igual
seja Roma, Belfast, Tóquio, Lisboa, Marrakesh, Berlim (p. 53). Todas
elas geografias, espaços de uma mnemónica que desenha aos poucos a casa em nós.
Somos a casa, a casa somos nós – todas elas, / na parede, / na memória, /
na desordem da sala de estar. (p. 53)
As mobílias da tarde é um livro de constatações e versos
que desnudam a vaidade do poema. Detém em seus ares uma calma dada aos que
seguem e assim, como o sol de cada manhã, reafirmam – pois bem sabes que a
vida, / enrodilhada de homens esperançosos, / caminha a passos tardios e
velozes,/ inconcussamente para adiante dos teus pés. (p. 71). E assim cada
parte da casa vai ganhando seu lugar de fim de tarde a receber o que fica entre
o cair do sol e o ganhar da noite.
Comentários