O Decálogo. A grande série de televisão escondida nos anos oitenta
Por Julio Tovar
O Decálogo é a única obra-prima
que posso citar durante toda a minha vida.
— Stanley Kubrick, citado em
MARZIERSKA, E.; GODDARD, M. Polish Cinema in a Transnational Context.
Nova York: Rochester Press, 2014, p.67.
Pôster oficial de O Decálogo. |
Uma criança que prevê o seu
destino num cão tomado pelo frio, uma violinista grávida que arranca uma planta
arrancando uma vida que se recusa a morrer, cartões de Natal como uma
recordação arborescente da festa que não se é lembrada... Imagens enigmáticas,
de um cineclube, impossíveis de assistir na hora do rush em qualquer
estação europeia e que atingiu milhões de telespectadores na televisão
polonesa. Dez capítulos construídos através do silêncio, do ritmo lento e que
poderiam ser o pesadelo de qualquer programador de televisão hoje. Estranho
oxímoro, televisão artística e ensaística, que só poderia ter sido possível num
país fora do grande capitalismo ocidental. Falamos, é claro, dos últimos anos
da Polônia comunista e desse marco audiovisual que em princípio se esconde: O
Decálogo.
Esse país na década de 1980 parece
ter sido um lugar florescente para o cinema: sua intelligentsia cultural humilhada após o toque
marcial de 82, engendrou algumas das melhores criações cinematográficas
europeias da época. O celeiro que foi sua escola de cinema em Łódź, dos anos 50
aos 60, resultou num terreno fértil para formar toda uma primeira geração de
cineastas, incluindo Roman Polański, Andrzej Wajda e Krzysztof Zanussi. Todos
eles tiveram uma ideia pródiga da criação visual cinematográfica, usando
profusamente grandes ângulos, e foram recebidos de braços abertos pela
indústria norte-americana.
Agora, dez anos depois, outra
geração se consolidaria sob uma sorte de limitações econômicas e com censuras
de todos os tipos: são Andrzej Żuławski, Agnieszka Holland e, acima de tudo,
Krzysztof Kieślowski. De todas essas criações, exceto o terror mórbido de
Żuławski em Possessão ou o thriller político Interrogação
da Holland, poucas tinham tanta profundidade moral e um fino olfato psicológico
como os dez filmes de Kieślowski chamados O Decálogo. Um marco na
televisão, filmado em 35 mm, e cuja ambição visual serviu para consolidar a
carreira de cineastas como Sławomir Idziak. Mas, sobretudo, filmes densos,
veiculados no horário nobre da Telewizja Polska e que alcançaram mais de dez
milhões de telespectadores. O próprio Kieślowski lembrou que o sucesso destes
filmes impenetráveis se deveu aos telespectadores poloneses: “A razão pela
qual a televisão hoje é assim não é tanto porque os telespectadores sejam
limitados, mas porque os programadores são”.
Um sucesso total para uma série
episódica que, parafraseando o filósofo Slavoj Žižek, elevou a ficção
televisiva “à categoria de causa ética”.
Um regime moribundo
No dia 13 de dezembro de 1981,
após a queda do primeiro-ministro Edward Gierek, as novas autoridades
pró-soviéticas declararam a lei marcial. O sonho efêmero de construir um “país
socialista e democrático” da ala mais aberta do regime foi despertado pela
realidade de uma Polônia economicamente “insolvente” e dentro da força
constrangedora do Pacto de Varsóvia.
Neste ano da lei marcial, o
diretor Krzysztof Kieślowski tem quarenta anos: é um sobrevivente do duro
período do pós-guerra polonês, teve uma infância nômade nos territórios
recém-adquiridos da Alemanha (seu pai, um engenheiro de profissão, adoeceu com
tuberculose e passou a vida de clínica em clínica). Não foi um aluno aplicado
e, depois de várias tentativas de evitar o recrutamento — entre elas, uma curta
temporada no corpo de bombeiros — conseguiu entrar na terceira turma da
lendária escola de cinema de Łódź.
Dos anos 1960 até meados dos anos
1970, foi um documentarista de estilo naturalista cujo trabalho era “confirmar”
os benefícios do regime comunista e sua “sagrada comunhão” entre trabalhadores
e líderes. São peças técnicas, enfadonhas, mas de excelente acabamento e com
ênfase na vida pessoal da parte mais baixa da sociedade polonesa. Esse era o
objetivo de seu mentor Kazimierz Karabasz em Łódź: ser um observador, um
bisbilhoteiro, que só intervém através das lentes. Essa ênfase na vida sombria
do pequeno proletariado é rastreada em seus primeiros e bem cuidados filmes: A
cicatriz, A calma ou Amador de 1976 a 1979. Aos poucos seus
retratos começam a adquirir elementos de dissociação nos quais esse estilo
emerge. entre o realista e o fantástico que seria característico do diretor
polonês. De acordo com ele:
“Fomos provavelmente a primeira
geração do pós-guerra a descrever o mundo tal como era. E aquele mundo era um
lugar desolado... Nós mostramos apenas pequenos mundos e isso era o que os
títulos dos documentários sugeriam: A escola, A fábrica, O
hospital ou O escritório. (...) Vivíamos com ideais como liberdade,
igualdade e justiça. No entanto, na realidade, nada disso existia. O comunismo
usava a palavra liberdade, mas não éramos livres, pois não podíamos expressar
nossa opinião em público.”
O método de criticar as
autoridades não poderia ser diferente da abstração, que começa a se estruturar
nos filmes por meio do acaso. O acaso, o preciso momento em que uma vida muda,
começa a dominar seus dramas. Kieślowski lembrou à jornalista Maria Marszalek:
“Tenho uma intuição persistente,
mesmo agora, em que imagino um operário de uma fábrica de automóveis que acaba
de brigar com a esposa e, por isso, vai trabalhar sem ter dormido bem. Cumpre,
assim, sua obrigação sem ter descansado o suficiente e monta mal as peças do
carro. Daqui a alguns anos, quando um de nós atravessar a estrada correndo no
sinal vermelho, aquele carro não conseguirá frear...”
Essa mudança do cinema social para
os indivíduos, da visão coletiva para as pequenas misérias de cada homem
(lembremos o fim de Amador), foi também uma consequência direta de como
a censura comunista conspirou contra muitas de suas peças nos anos setenta. Seu
documentário Workers’71 foi editado contra sua vontade como uma “linha
crítica” contra o partido, enquanto suas ficções mais livres dos anos 80, como Uma
curta jornada de trabalho, A calma ou o excepcional Acaso,
seriam censuradas diretamente pelas autoridades.
Um cineasta financiado pelo
sistema, mas contra ele só poderia prosperar por meio do uso de metáforas. Assim,
numa conversa casual com seu roteirista Krzysztof Piesiewicz decidiu que os dez
mandamentos poderiam ser um grande tema de filme. Lembra Piesiewicz:
“A ideia foi parcialmente
inspirada em um retábulo gótico no Museu Nacional de Varsóvia. Ela mostrava os
dez mandamentos em dez cenas diferentes. No retábulo as cenas estão situadas
simetricamente. Alguém pode detectar uma simetria semelhante em nossa série...”
Dez filmes para a televisão
polonesa, produzidos pelo Tor Film Studio do diretor Krzysztof Zanussi, que
tiveram como origem apresentar jovens cineastas poloneses. No final, e Kieślowski
sentindo-se emocionalmente próximo dos roteiros que havia escrito, ele os
dirigiu, permitindo apenas que cada diretor de fotografia fosse diferente. O
objeto? Um raio-X da alma e da sociedade polonesa nos últimos deprimentes anos
soviéticos: “o comunismo era uma porcaria e nos ensinava a ser uma porcaria”,
disse Kieślowski ao crítico de cinema Tadeusz Sobolewski.
Essa realidade indescritível
Em quase todas as histórias deste Decálogo
um transeunte olha acusadoramente para seus personagens caindo nas teias fatais
do destino. Este, que tem sido chamado de “Deus” ou “o Anjo” por vários
críticos, é uma peça religiosa que liga muitas das histórias e que aproxima
Kieślowski a diretores do transcendente como Ingmar Bergman ou Carl Theodor
Dreyer. O próprio diretor polonês fez vários seminários sobre Silêncio
ou Cenas de um casamento de Bergman, nos quais reconhecia sua dívida
para com ele:
“Posso me reconhecer com o que Bergman
disse sobre a vida, sobre o que ele disse sobre o amor. Eu me reconheço mais ou
menos com sua atitude para com o mundo e para com os homens e as mulheres e o
que fazemos no nosso dia a dia… esquecendo do que é mais importante.”
Seguindo os padrões críticos do
roteirista Paul Schrader e do filósofo Gilles Deleuze, Decálogo bem
poderia entrar com alguns episódios desse conjunto de obras onde “a desunião
potencial ou real” entre o protagonista e o ambiente leva a uma “experiência
transcendental”. Deleuze julgava Umberto D. de Vittorio de Sica como a
primeira viga desse edifício metafísico, mas antes — como analisou Schrader —
foi o cinema de Dreyer e Robert Bresson o primeiro a consolidar este tipo de
criações. Embora seja difícil enquadrar o Decálogo por completo neste
tipo de filmes tão minimalistas devido à natureza barroca dos episódios
filmados por Idziak, o afã religioso está presente nos capítulos mais
dramáticos.
Para o filósofo Slavoj Žižek, a
maioria deles se faz passar por fábulas morais onde o mandamento citado é
“transgredido” e isso acaba por colocar em questão a “própria realidade” onde
vive o protagonista. A gênese de toda esta série, segundo Žižek, seria,
portanto, o sentido trágico do homem diante de um destino implacável de uma “realidade
sem sentido”. O filósofo ainda resume em uma frase fatalista e claramente
católica: “Que queres de mim?”
No final, ele especula que foi a “crise
moral” do antigo documentarista que foi Kieślowski o que o levou ao cinema:
“[...] o primeiro gesto de
Kieślowski foi enfrentar a falsa representação no cinema polonês (a ausência de
uma imagem adequada da realidade social) recorrendo ao documentário; logo se
deu conta de que quando abandona,os a falsa representação e nos aproximamos diretamente
da realidade, perdemos a própria realidade, então ele abandonou o documentário
e se voltou para a ficção [...]”
São filmes existencialistas, é
claro, mas conseguiram um grande público em um país onde a frequência à Igreja
alcançou excepcionais 90% nos anos oitenta. Embora a ideia de transgressão da “lei
divina” seja a essência dos capítulos do Decálogo, como o primeiro ou o
segundo, nos demais a religião é mais difusa e às vezes inexistente. Assim,
seguindo o crítico de Chicago Roger Ebert, nem todas as histórias seguem uma “correlação”
clara entre os mandamentos e narrativa. A maioria, avalia Ebert, nos mostra “pessoas
reais enredadas em problemas reais”.
Os problemas crescem
No oitavo capítulo de O
Decálogo Zofia, a professora universitária de ética (viva pela atriz Maria
Kościałkowska) incentiva os alunos a usar exemplos domésticos como dilemas
morais. Um deles se desdobra: a ajuda ou não uma garota judia no meio da
invasão nazista. Agora, é a menção da professora à trama do aborto do segundo
episódio que nos dá a pista do que Kieślowski pretende. Ou seja, cada capítulo
atua como uma profunda interrogação ética, muitas vezes insolúvel, que às vezes
tem conotações metafísicas (o primeiro e o segundo episódios) e em outras é
mais um estudo psicanalítico das frustrações de um casal (o sexto e o sétimo
capítulos). Existem também histórias inclassificáveis, como a décima; comédia policalesca
sobre radicalismos, pré-conceitos e grupos punk.
Com exceção dos recursos
discursivos do primeiro filme, os valores católicos estão bastante implícitos
nas ações e suas consequências. Criando um cinema de “ansiedade moral”, termo
utilizado por Kickasola, o cinema de Kieślowski é um novelo que se desfia em torno
do acaso e das escolhas casuais de seus personagens no passado. Se existiu,
então, um modelo inicial para esses filmes televisivos foi, sem dúvida, Acaso
(1981), em que pegar um trem na hora certa envolve três vidas diferentes.
Proibido, como vimos, pelo regime comunista por mostrar a oposição política de
Solidarność, o que os censores não sabiam é como as três possibilidades do
protagonista terminam em um destino fatal; uma espécie de fórmula moral que
predestina a ambivalência do Decálogo.
O acaso, seu duvidoso equilíbrio
na narrativa pessoal de cada história, costuma ter pequenas metáforas que
criariam o que foi chamado de estilo “kieslowskiano”. O referido Kickasola
lembra que esses pequenos planos de detalhe oferecem uma sinestesia onde
existem qualidades sensoriais que criam uma dupla relação entre espectador e
personagens: o público se reflete em características perceptivas como o toque
das superfícies, a trilha sonora das diferentes ações ou a olhares vazios sobre
importantes decisões morais. Esta sinestesia seria fundamental nas obras de
Kieślowski dos anos noventa, como A dupla vida de Véronique ou sobretudo
A liberdade é azul, em que quase sempre domina o simbolismo da cor.
Isso talvez lhe valeu o apelido de
“inventado” por um crítico que não conseguia acessar seus primeiros trabalhos.
Todos esses pequenos momentos são reforçados emocionalmente com as peças
atmosféricas e sinfônicas excepcionais do compositor Zbigniew Preisner.
Colaborador de Kieślowski desde o desesperado Sem fim, em 1985, é o
toque final lírico de uma série que em grande parte é rodada com aquele estilo
seco próprio de um ex-documentarista.
Nesse sentido justo, o diretor
polonês não pretende fazer pedagogia, mas questionar o público sobre como
“esses mandamentos existem há mais de seis mil anos ou mais. Ninguém se opôs a
eles e, ao mesmo tempo, todos os dias, durante milênios, nós os quebramos”,
segundo uma confissão à jornalista Bożena Janicka. As violações dessas leis,
como citou Žižek, não são resolvidas na série com respostas fáceis: todo dilema
moral de qualquer episódio é difícil de resolver. O pai ateu estava certo em
confiar nos computadores como a resposta definitiva para o degelo? A redenção
do onanista com sua musa é moral no episódio do voyeur? Foi justo o aborto de
uma vida tal como é levantado no segundo e mais conservador capítulo da série?
Tudo o que resta depois de ver essas histórias, em suma, é uma visão triste e
desesperada da condição humana e que Žižek julgou estar ligada a um fatalismo
existencialista.
Um sucesso improvisado
A série foi reconhecida na crítica
local, mas onde resultou um marco foi no exterior, que havia mostrado esquivo
com o trabalho do diretor. Isso foi ajudado pela decisão da produtora polonesa
de lançar Não amarás e Não matarás, os capítulos mais dramáticos
e visualmente ambiciosos, em cinemas internacionais para obter custos de
produção lucrativos. Os valores cinematográficos deste cinema televisionado segundo
o realizador polonês, a forma de produção comunista na Polónia “não fazia
distinção” entre o teatro e o pequeno ecrã, fizeram com que estes episódios
editados em filme pudessem se passar por longas-metragens artísticos.
O crítico Jonathan Rosenbaum
julgou a série como a “maior obra” do realizador polonês, enquanto o já
referido Ebert lembrou que os “valores” que se questionam nesta série de filmes
são “universais” para qualquer telespectador. Não matarás foi o filme
número um da lista dos Cahiers du Cinéma em 1988, além de ganhar o
prêmio do júri nesse mesmo ano em Cannes. Não amarás estreou na Espanha
no outono de 1989, com os novos ventos vindos de leste, e a estrela do diretor
foi festejada pelo crítico do El País Ángel Fernández Santos que julgou
seu trabalho como “uma arma do conhecimento” capaz de “lançar luz ou sombra”
sobre a condição humana.
Este sucesso permitiu-lhe produzir
internacionalmente com dinheiro francês a onírica e excepcional A dupla vida
de Véronique — sua consagração definitiva como um autor típico na Europa
dos anos noventa. Sua carreira posterior, a trilogia das três cores do ano 93
ao 94, seria truncada por sua morte súbita devido a um infarto do miocárdio aos
54 anos. Ironicamente, o próprio Kieślowski não teria escapado, sua morte foi
semelhante à do protagonista de Sem fim ou de Véronique no filme
que o transformou em um mito cinematográfico. Mas, para sua desgraça e de seu
crescente público, não havia outro “marionete” para substituí-lo. Na verdade,
vários filmes foram feitos com roteiros inéditos de Kieślowski, embora sem seu
domínio visual e economia narrativa.
Este cineasta opaco, capaz de
construir um mundo alternativo com esboços da realidade, se foi levando seu
universo particular. A morte deixou muitos telespectadores apaixonados órfãos
de seu cinema. Esses, embora poucos, sempre estiveram no frágil coração de
Kieślowski:
“Estou interessado em pessoas que
precisam de algo mais. Acho que no mundo (na Europa ou na Polônia) ainda há muitas
pessoas para quem um simples desenho animado não basta. Não se recusam a ver
isso, mas precisam de outra coisa e, na verdade, se eu pego na câmera de vez em
quando, é para elas.”
* Este texto é a tradução de “El decálogo: la gran serie
de televisión oculta en los ochenta” publicado aqui em Jot Down.
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