O amor e o mundo: tensões entre a permanência e o efêmero em Emily L., de Marguerite Duras
Por André Cupone Gatti
Marguerite Duras (1914 - 1996), seja em seus filmes, seja em
seus livros de ficção, tematizou o amor como uma dolorosa resistência ao mundo.
Escrevendo quase sempre a partir do universo sentimental feminino, a autora
soube construir uma obra ficcional fortemente influenciada por sua biografia e
pelas ideias do nouveau roman; soube, porém, acima de tudo, valendo-se de voz
particular, imergir no limbo dos relacionamentos amorosos e representá-lo em
relação à sua contraparte caótica, o mundo, a História. Inquieta quanto à busca
das possibilidades representativas, formalizou tanto no cinema quanto na
literatura os signos da passagem, da memória e da melancolia. Certa vez me
disseram que o cinema de Duras é muito literário, e a sua literatura é muito
cinematográfica. Apesar de ser uma visão superficial e generalista, há nisso
alguma verdade: o formalismo extremo dos seus filmes carrega como contrapeso a
fluidez das narrações em off ou das contínuas conversações; por sua vez, o
fluxo de consciência dos seus textos está impregnado de recursos imagéticos,
muitas vezes mesmo de artifícios cinematográficos.
O romance breve Emily L. (1987) representa um retorno de
Marguerite Duras à prosa ficcional, após longos anos dedicados ao teatro e ao
cinema. Narrado por uma escritora que, vivenciando o declínio do seu
relacionamento, vai passar as férias em Quillebeuf, na Normandia, com seu
marido, essa narrativa, do começo ao fim, com poucas e breves exceções, se
desenrolará em um bar às margens do Sena. A narradora e seu marido, imersos em
crise conjugal, observam, em um canto do bar, um outro casal, uma inglesa
discreta e um marinheiro inglês, aparentemente também envolvidos em algum
impasse amoroso. Esse é o núcleo do romance e dele surgirá uma narrativa
especular onde a voz que narra, entrelaçando invenção, dores de amor e medo,
aproximará os casais, permutando as dores desse na existência daquele e
vice-versa. Duras acomoda o fluxo de consciência em uma estrutura que sugere
descontinuidade, propiciando assim uma tensão formal que muito absorve das
questões centrais do livro: a copiosidade comum ao fluxo de consciência é
obstada por parágrafos muitas vezes curtos e não consecutivos; o amor, também
copioso nas suas promessas, é obstado pela arbitrariedade e finitude de tudo o
que é mundano.
Logo em seu início o romance de Duras nos apresenta signos
da passagem. Uma balsa vermelha fará a sua travessia apática de uma a outra
margem do Sena inúmeras vezes, levando e trazendo gente, enquanto os
personagens permanecem no bar. Depois o próprio Sena será observado em sua
eterna correnteza, bem como será observada a saída de alguns fregueses e a
chegada de outros, ou a queda lenta da luz do dia. Lemos, em certo trecho,
quando o casal protagonista faz uma breve viagem até o porto: “A cada curva
deixa-se a floresta escura e atravessam-se zonas de explosão solar.” (DURAS,
2018, p. 21) A impermanência poderá sempre ser lida no contracampo da crise
amorosa, ela habita todo o romance, discreta, evidenciando o sofrimento
inerente ao amor, ou melhor, à ilusão de que ele é permanente.
Não gratuitamente a narradora é uma escritora. Duras
aproxima o amar do escrever, dois ofícios que lidam com a vontade de fazer
durar as coisas, de sobrepujar a realidade com uma outra realidade, mais
completa e mais perfeita. A narradora, consciente de que são gêmeos o amor e a
escrita, e de que, desta forma, talvez seja possível substituir um pelo outro,
diz ao marido: “Quando escrevo, não amo mais você.” (p. 19).
Amar e escrever, no entanto, inspiram, mesmo que em silêncio, o medo pelo fim
do amor e pelo fim da escrita, e é o medo, co-protagonista do romance, o
caminho mais curto à dor vertiginosa. A efemeridade do mundo é o demônio
incansável e a fonte primeira dos livros e dos amores.
O casal inglês, capturado pelos olhos e pela imaginação
literária da narradora, encontra ainda uma outra via de amar ou de aumentar a
validade do amor que é a travessia pelos mares, a permanência num lugar que é
sempre o mesmo e é sempre outro, numa tentativa de despistar a inconstância do
mundo infiltrando-se na sua dança. Os portos necessários, o universo além do
barco, no entanto, trazem de volta os abismos de uma relação que já não
funciona. Sobrevém a insuficiência do real. “Nos sonhos temos essas
dificuldades de que você fala…perdemos tudo...a todo instante...Nunca temos
tudo que é preciso…” (p. 82) Mesmo nos sonhos não se pode ter tudo,
aliás, é especialmente nos sonhos que nos assaltam o medo e a falta.
Toda dor presente em Emily L. vem do choque entre o anseio
pela permanência e a voragem do agora. Não há cura para isso. O amor e seus
pares lidam com o paradoxo de eternizar o efêmero. Por isso, talvez, a
narradora conclui: “Amar é ver” (p. 99). Ver não somente no sentido de
perceber, fixar, tornar presente e permanente, mas, para além disso, de
conceder ao que se vê uma parte de si próprio, das próprias perdas e ganhos,
uma parte que inevitavelmente também será perdida tão logo a imagem se
dissolva. Observar o outro casal, portanto, é uma maneira de insistir no amor,
de ganhá-lo de novo para perdê-lo uma outra vez. É na esfera das coisas
visíveis que a narradora encontra o justo modo de atravessar o amor dolente e a
escrita. Percebemos, assim, o forte apelo da imagem e do seu caráter
efêmero-duradouro na obra de Duras. É preciso ver, é preciso mostrar, mais que
explicar, mais que corrigir. Ser testemunha acidental, câmera que tudo capta.
“[...] jogar a escrita para fora, maltratá-la quase, sim, maltratá-la, não
retirar nada de sua massa inútil, nada, deixá-la inteira com o resto, não
moderar nada, nem rapidez nem lentidão, deixar tudo no estado da aparição.”
(p. 109)
Bibliografia
DURAS, Marguerite. Emily L. Tradução de: Vera Adami. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2018.
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