Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida
Por Pedro Fernandes
O único romance de Manuel Antônio
de Almeida foi publicado originalmente, como grande parte dos títulos de seu
tempo, em folhetins. Os folhetos saíram entre 1852 e 1853 na seção dominical “A
Pacotilha” do jornal Correio Mercantil. O material revisado por
Machado de Assis serviu para dar forma aos dois tomos da primeira edição em
livro assinada por Um Brasileiro. No ensaio que abre a reunião de textos
dispersos do escritor, Bernardo de Mendonça comenta que se não restaram
informações sobre a recepção do público para as produções seriadas, sabe-se que
o livro ficou encalhado e o fracasso de vendas deve ter levado desânimo ao
autor para novas aventuras pela ficção. O mesmo jornal que publicou Memórias
de um sargento de milícias chegou a anunciar um segundo romance de Almeida
em 4 de julho de 1852; mas, Mistérios do Rio nunca veio à luz, tampouco restou
qualquer outra informação além dessa a respeito.
A existência das Memórias
é, assim, um tanto tortuosa; aparecidas nos dois anos imediatos à edição em
folhetim, precisarão esperar uma década para sair do anonimato. O amigo Quintino
Bocaiúva foi quem se apressou em realizar uma tiragem em fins de 1862, mas,
curiosamente, um editor de Pelotas, no Rio Grande do Sul, publicava por conta
própria a primeira edição póstuma do livro. Ainda assinado por Um Brasileiro,
a publicação gaúcha acrescentava um atrativo a mais: designada como “edição
clandestina”. É assim que o livro começa seu périplo de sucesso. Bernardo
Mendonça sustenta que, a partir de então, o romance chegou a ganhar mais de
três dezenas de diferentes editoras brasileiras. Acompanha esses momentos uma
variedade de acasos da crítica que ora se mostrava simpática ora condenava o
trabalho do escritor carioca.
E aqui chegou. Entre esquecimentos
e lembranças, a obra goza de maior prestígio que muitas outras da nossa literatura:
se coloca como precursora das narrativas que lidam com a zona periférica do
urbano brasileiro e integra os primeiros títulos fundamentais para a formação
do romance no Brasil. Os outros dois foram Joaquim Manuel de Macedo com sua
prosa amorosa burguesa e satírico-política e José de Alencar com incursões
pelos principais lugares criativos do romanesco em seu tempo, do indianismo ao
urbanismo, passando regionalismo, mas sem nunca atentar para o lugar ocupado
isoladamente pelo autor das Memórias de um sargento de milícias.
A melhor leitura desse romance,
que chegou a receber atenção de José Veríssimo, o grande crítico do século
XIX no Brasil, ou de Mário de Andrade, quem admitiu de alguma maneira a
presença da obra na feitura de seu herói sem nenhum caráter, é, certamente, a
proposta por Antonio Candido num ensaio que o descreve como o romance fundador
da malandragem e do malandro, tipo que em muito diz sobre a nossa identidade. A
leitura do crítico aponta ainda como o trânsito entre ordem e desordem patente
nas situações apresentadas na narrativa denotam uma dialética sobre nossa
formação enquanto nação. Isto é, Manuel Antônio de Almeida terá sido um mestre
no processo de revelação, pela literatura, de uma estrutura social centrada nos
tráficos entre classes. Ou como, por aqui, se forjam estratégias no interior
dos sistemas legais para oferecer determinadas garantias aos grupos de domínio
ou como os grupos periféricos aí se infiltram e replicam os mesmos usos para a
manutenção de uma normalidade das coisas.
Antes de ir ao enredo do romance,
vale sublinhar o olhar de cronista engendrado pelo romancista que nos revela
uma porção viva de um passado do Brasil. São registros que não passaram para a
história oficial e sem a perspicácia do literato corriam o risco de total
apagamento. É de uma riqueza tamanha, ainda que o olhar desse narrador não
esteja interessado na descrição parcimoniosa, porque não guarda vocação alguma
para a antropologia; tudo aí se apresenta para revelar como a gente comum vivia
os momentos só aparentemente solenes. São circunstâncias que nos revelam
um império cambeta interessado na contínua perpetuação dos folguedos, estes que
continuamente adquirem uma dimensão carnavalizada dado o afluxo entre o sagrado
e o profano, o solene e o informal. Reiteradas vezes, entramos em contato com
essa atmosfera de alegria e apaziguamento da nossa miséria com os entrudos, as
celebrações religiosas, as vivências daqueles que circundam o Paço Imperial.
Perpassam isso, as zaragatas, os convívios, a fluidez das relações familiares, a
formação da boemia, a fofoca de vizinhos, a aparência e tudo o mais que forma
um modos vivendi das pessoas comuns no Brasil de então, que, em grande
parte, ainda se confunde com as situações do interior do país em pleno século
XXI.
Nesse mesmo ínterim, Memórias
de um sargento de milícias constrói uma visão cômica, mas com fortes tintas
de uma ironia ferina sobre um país fadado ao fracasso que cambaleia no riso, uma
vez que nada parece se sustentar num modelo sério e ao mesmo tempo toda a gente
está interessada mais no gozo e na desordem. Obviamente, que esses traços servem
a um olhar em desencanto, mas não nos sepulta de um todo: restaria deles a
crença que terá alimentado os discursos daqueles que nos pensaram e viram no
Brasil o país capaz de se diferenciar dos demais por sua heterogeneidade e convivência
multicultural. Se isso foi algum dia uma verdade e pode significar, em momentos
variados, uma alternativa de prosperidade, não é ainda assim, uma verdade
absoluta. Isto é, essa dialética que nos define é a um só tempo nossa alternativa
de nação e mas tem sido, em muito, nossa condenação.
Leonardo Pataca. Desenho de Belmonte. Série intitulada Personagens célebres da literatura, Revista Vamos Ler!, jul. 1942. |
Indiretamente, é o que se confirma
nas aventuras ao acaso de Leonardo, a personagem que é só uma sombra na extensa
primeira parte do romance. O leitor lembrará que esse herói nascido de uma
pisadela e um beliscão de reinós imigrantes (os termos são de Mário de Andrade capturados em parte do próprio livro de Maneco, como o chama) só receberá um nome
muito mais tarde, quando o narrador, sempre falastrão e animado, parece se dá
conta da fuga de ritmo das reais memórias que tem para contar. O menino,
que carrega o mesmo nome do pai, forma uma nova raça, a dos Leonardos, cuja
identidade é marcada pela errância e pela impossibilidade de se estabelecer nos
limites sociais da ordem; os dois, pai e filho, se complementam: por este
sabemos algo da infância e juventude daquele; e daquele sabemos algo do futuro deste,
uma vez que a narrativa se interrompe justamente quando as situações conseguem
ser mais ou menos apaziguadas para o Leonardo-filho.
O herói do romance, padece da sina
dos Leonardos, qual observa a madrinha do menino fruto do acaso: o da criatura
que não dará certo. Não à toa, ela e o padrinho, um barbeiro que teve uma vida
tão atabalhoada quanto o afilhado, tomam essas dores pela corruptela do destino
e acompanham o desenvolvimento do menino largado pelos pais, tornado pequeno
demônio, até cair, de vez, no universo da malandragem. A vida arranjada pelo
acúmulo de heranças, a realização amorosa com a sonsa Luizinha, e um cargo de
não-afazeres no quartel do Major Vidigal (figura histórica que baldeia os casos discorridos neste romance e é quem, como mesma força, oferece saída dos impasses) graças aos apadrinhamentos e conchavos
de seus protetores formam o retrato mais autêntico de nossa própria formação. A
raça dos Leonardos é, explicitamente, a raça dos brasileiros.
E, se isso ainda for insuficiente,
vale citar a personagem que merece a compreensão de dorsal do romance: o Major
Vidigal. Todas as circunstâncias que se revelam enquanto uma ruptura da ordem,
e logo demonstram a imagem mais autêntica da gente simples, são marcadas pela interdição.
E o nome do polícia aparece em todas elas. Essa personagem, no entanto,
diferente da linearidade psicológica de Leonardo, parece ser a única que
angaria alguma transformação: sua condição de homem-terror padece de uma
pequena modificação que nos leva a ter por ele uma atenção de homem-benfeitor;
dizemos isso ao recordar que o desfecho favorável a Leonardo se mostra como uma
alternativa de apadrinhamento costurado pela disposição da lei a bel-prazer de
Vidigal.
Aqui, parece se sustentar a ideia
segundo a qual, todas as nossas tratativas para a ordem sempre escorregam para
o autoritarismo e a opressão. Estas, por sua vez, se assim se manifestam não são
produtos verdadeiramente opostos da desordem, mas de uma repressão dos próprios
instintos. Assim, pode-se novamente correr os olhos à famosa situação da intercessão
das três Marias pela liberdade de Leonardo, preso mesmo depois de ser admitido
entre os granadeiros de Vidigal: este, o major, recebe as senhoras em trajes de
estar em casa, situação que se torna ainda mais vexatória quando depois de
notar o papel de bufão regressa à recepção vestido em parte com a farda e em
parte como já estava: de ceroulas e tamancos. Antonio Candido sublinha essa
situação como coroação da dialética ordem-desordem que equilibra a narrativa
dessas Memórias. A consequência desse encontro, isto é, a resolução,
enfim, dos primeiros fardos de Leonardo, reafirma o que acima dissemos como repressão
dos instintos. Vidigal nota que, incapaz de vencer a Leonardo e, para não
perder seu lugar na ordem, decide por reconhecer no malandro parte importante
na sua corporação.
Mas, podemos ampliar ainda essa
leitura ao compreender que o major oferece a projeção de um novo círculo de
poder que se abre com Leonardo. Basta percebermos que sua função se inteira na
transformação dos suciantes ou inimigos da ordem em peças acobertadas pela própria
lei. Não será preciso ir muito longe para percebermos que desde então em
círculo tomou novos contornos até à total inversão da própria natureza
semântica do termo milícia, que agora serve para designar não um grupo
de militares, mas um grupo de estado paralelo ao próprio Estado; aquele que, de
algum tempo começa a corroer os próprios limites deste, como se visualiza
claramente nos governos vigentes no Rio de Janeiro, território de onde uma raiz
integra os demais sistemas do nacional.
Que se registre: séculos depois
das Memórias de Leonardo, a milícia subiu ao poder e tem representação
em todas as instâncias de mando no país. E tudo porque, assim como é impossível
se estabelecer a tão esperada Ordem também é impossível um cooptar a desordem. Saídas?
Nenhuma. Nossa condição para o cordial, nossa parcimônia, são a um só tempo
nossa salvação e nossa condenação. Resta aprender conviver com ela como se
estivéssemos continuamente condenados ao círculo de turbulências de Leonardo
com uma ou outra Maria a nos intervir.
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