Fim de uma viagem, de Heinrich Böll

Por Pedro Fernandes

Heinrich Böll. Foto: Alain Mingam



O nome é novo, a prática nem tanta. O debate ético, o de sempre, ainda que agora novamente o que antes era pura expressão ganhe o estatuto de produto, como tudo na geringonça do consumo. Em julho de 2021, um desenho original de Pablo Picasso foi queimado. O que poderia ser uma performance, irrepetível, interessada em chamar atenção para algum aspecto como a fragilidade da noção de valor ou a natureza implacável do tempo sobre o fim de tudo, se tornou recorrente e integra um sistema que envolve tecnologia, certo exibicionismo e, claro, muito dinheiro. De toda maneira, a palavra que sintetiza essa experiência é singularidade.
 
Tomemos o caso do rascunho “Fumeur V”, de Picasso. Alguém adquiriu a peça sabendo que seu direito de exclusividade será transferido para o mundo digital — para isso, o objeto precisa deixar de existir enquanto matéria física. Os non-fungible tokens (NFTs) permitem a validação do produto no novo formato; através de uma tecnologia de blockchain desenvolvida dentro do sistema de criptomoeda Ethereum, a peça é validada por um código de propriedade digital. O desenho do artista espanhol, por exemplo, depois de exposto numa galeria em Denver, Estados Unidos, foi transformado em dois tokens, um representando a obra antes de ser destruída e outro com suas cinzas, tornando-a, segundo a empresa responsável pelo negócio (é nada mais que isso), em algo imutável.
 
No romance de Heinrich Böll, Fim de uma viagem, situado em meados dos anos sessenta do século XX acontece algo parecido: pai e filho queimam propositadamente um jipe do exército. No tribunal, a defesa — na tentativa de redimi-los da pena mais grave, já que os dois marceneiros agem à luz do dia, não fogem e ainda assumem tranquilamente a autoria do ato —, afirma que a atitude se referia a uma performance artística então denominada por happening. Desinformado do que seja isso, o juiz interroga sua companheira no recesso entre o primeiro e segundo turno do julgamento; ao que ela responde: “esse happening é uma forma de arte totalmente nova, uma forma de expressão, alguma coisa é quebrada, se possível com o consentimento de quem a possui; caso seja necessário, sem esse consentimento.”
 
Fiquemos com algumas distinções: a invencionice do nosso século parece, assim, derivar da expressão designada em 1959 pelo artista Allan Kaprow, com uma diferença específica centrada no uso do objeto colocado no epicentro do acontecimento. Nos dois casos prevalece uma noção de transferência de valores entre campos extremamente díspares, além de prescindir do público, que vivencia por amplos sentidos o acontecido. Ou seja, a base dos NFTs parece ser o campo da performance, muito embora entre estes e o happening existam infinitos complicadores que fogem ao domínio da experiência artística, uma vez que as empresas alegam ao comprador autonomia intelectual sobre o objeto desintegrado. Quer dizer, se a princípio isso funciona bem com o ecossistema digital, a interferência entre este e outros campos é um problema, afinal como garantir a um simples comprador a autoria de uma peça de Picasso?
 
Ainda nessa região das interferências, a atitude dos Gruhl quando colocada pela perspectiva da defesa instaura um complexo embate entre os campos jurídicos e artístico, readmitindo a arte como um sistema limitado apenas por suas linhas, justificado nele próprio, reduzindo tudo que lhe for exterior e se assume pelo seu questionamento como censura. Não caberá revelar qual a atitude do juiz em Fim de uma viagem ainda que esteja oferecida logo à abertura da narrativa; este romance não se faz de nenhum tipo de suspense porque este episódio funciona expressamente como uma peça a partir da qual se analisa outra coisa que não a natureza do crime ou a extensão da punição aos culpados nem mesmo os valores éticos, morais ou estéticos de uma não-arte.


Avancemos então por outra linha em que a defesa dos revoltosos — chamemos assim ainda que a expressão seja limitada, visto que não se demonstra ao certo quais suas causas — é apenas a pequena ponta do que se organiza sorrateiramente em favor dos dois tradicionalmente muito bem enraizados na sua comunidade; isto é, figuras de boa índole, afeitas à ordem, ainda que o velho Gruhl tenha seus problemas com o sistema de coletoria de impostos, muito embora essa se situe como feita de armadilhas próprias das quais os pequenos contribuintes não conseguem escapar, e o jovem recaia em envolvimentos amorosos que os poucos contrários a ele querem colocar na conta do assédio a mulheres.
 
Ao se organizar em torno das personagens envolvidas no julgamento final dos Gruhl, a narrativa trata de, através de um narrador extremamente meticuloso, colocar a olhos vistos, enquanto perscruta a vida comum dos de Birglar, os menores indícios de todas elas. Em grande parte, esses elementos são coisas escusas em relação à ordem ou à moral, sabidas ou reveladas, mas pactuadas entre os envolvidos. Sua tessitura constitui como que um pacto de silêncio sempre capaz de favorecer uma manutenção rigorosa de uma compostura social.
 
Um episódio dos vários que poderíamos enumerar se passa entre as testemunhas nos bastidores de quando esperam, pelos errantes e desconhecidos interesses do juiz, sua vez de depor. São em circunstâncias como estas que o narrador melhor progride sobre as faltas de todos acobertadas por todos. Levanta-se desse grupo a acusação indireta do primeiro-tenente ao padre quando se dirige ao tesoureiro honorário dizendo que queria conversar sobre a situação financeira da paróquia depois de saber que as verbas arrecadadas para pagar um sino foram desviadas para “financiar a mudança de uma certa Fiene Schurz, que mudara para a cidade grande vizinha havia seis anos, ali se casara com aquele Schurz, o qual a abandonara após o nascimento do quarto filho”; a acusação é encavalada com uma fofoca de foro íntimo — sem marido e com quatro filhos, a beneficiada teria recorrido a trabalhar como garçonete num bar e o empregador “a induzira a ‘fazer um pouquinho de strip-tease’ no local”. De ouvido aberto à conversa, o padre acrescenta que, além de strip-tease, a mulher talvez se dedicasse futuramente ao serviço de call-girl. Uma vez desarmado o militar, o padre irrompe com uma lição:
 
“disse que via o quão importante era para o primeiro-tenente conhecer o vocabulário vulgar; de resto, acrescentou, ele ficara sabendo que a Schurz, cujo futuro moral tanto o afligia, exercia essa condenável ocupação na cidade grande vizinha, num local ‘apinhado de homens do Exército e deputados dos partidos democrata-cristão e cristão-social’, que tinham o descaramento de ‘bancar, em outras partes, os guardiães da moral’.”  
 
Se ninguém é capaz de sustentar alva sua moral, ninguém (e nenhum segmento) escapa ao tratamento por vezes derrisório da narrativa, principalmente, quando uma a uma, as ordens — imprensa, igreja, política, militar e jurídica — mostram-se articuladas pela preservação da liberdade dos revoltosos. Os dois principais jornais de Birglar pactuam invisibilizar o julgamento que propositalmente é marcado para ocorrer na mesma data quando, na cidade vizinha, se desenvolve o júri popular por um crime hediondo; o envolvimento do aparato jurídico na outra comarca, deixa a ação nas mãos do Sr. Stollfuss, tido como um juiz pouco midiático, entre moderado e benevolente, de alguma maneira ligado aos infratores pelas posições políticas e em dias de se aposentar.
 
A princípio alguém poderia afirmar que essa é uma típica situação jurídica das muitas em que a imparcialidade é questionada como apenas mais um elemento do jogo teatral aí desempenhado. E essa leitura não estará invalidada de um todo, mesmo se um tanto simplista. Heinrich Böll exercita-se com esse romance com o que se situa no substrato do tema do forasteiro. Na ausência deste, os criminosos não se refugiam no outro e dizem quem são. A unidade coletiva, por sua vez, incapaz de admitir o confessado como verdade, porque isso significa admitir seu próprio fracasso enquanto comunidade, articula-se em nome da garantia de salvação dos condenados.
 
Chamamos os Gruhl de revoltosos e embora a atitude de abancar fogo num carro do exército minimamente planejada como revelam as investigações — e eles admitem sem quaisquer objeções — se mostre muito mais como força de certo ímpeto primitivo, o acontecimento adquire uma variedade de sentidos: reafirma que a sombra da barbárie não reside algures e sim no interior do melhor dos homens; se uma sociedade é um sistema cujas articulações se sustentam pelo homem, logo na ordem está na desordem; e, se levarmos em conta o contexto da obra, logo descobriremos, como Böll assiste com certo receio os primeiros movimentos de restabelecimento das forças armadas depois de tudo que a Alemanha passou sob o jugo de Hitler.
 
Não é gratuita, portanto, como a instituição militar é tratada em Fim de uma viagem. Apesar de designado para cumprir uma missão de comando, o Gruhl filho havia poucos dias deixado de fazer parte do exército, o que faz do crime cometido uma situação exógena à corporação, incapaz de condená-lo pela sua corte marcial. De toda maneira, como a situação é nova mesmo para a repartição, não tardará que esta atue nos bastidores com todas as reservas para que o caso não alcance um desfecho da condena no civil e nem as proporções públicas esperadas de quaisquer excrecências. Ou seja, mesmo depois do aparato de exceção que se estabeleceu antes na Segunda Guerra, estamos outra vez diante de uma ordem que não sabe ao certo como lidar com excepcional e só encontra saída pela desordem e em nome dos interesses particulares. Chama atenção como para o Heinrich Böll, nesse caso, se implicam o individual e o coletivo.
 
No âmbito do julgamento pelo menos mais duas outras coisas são questionadas acerca das forças militares: qual a serventia desse aparato para além da mordomia e da vida fácil para os seus integrantes, sustentadas estas por um Estado inclemente na arrecadação de impostos sobre pequenos trabalhadores como Gruhl pai; depois, como sob o manto da lei, tais estruturas encobrem variadas corrupções. Destas, pelo menos duas favorecem ao crime cometido pelos julgados: a displicência sobre a situação de Gruhl filho em relação à corporação e a atitude recorrente entre os do exército de queimar quilômetros em carros pouco rodados para garantir a total utilização dos recursos favorecidos pelos estado para a manutenção.
 
Enquanto a queima do jipe do exército pode funcionar, como quer a defesa dos Gruhl, como expressão artística, livre e capaz de suscitar questionamentos que transitam entre a eticidade e os limites da lei e da conjuntura social — dimensões entrevistas apenas depois do acontecimento, tal como sugere o happening —, o romance de Heinrich Böll assume de alguma maneira uma funcionalidade parecida, se pensarmos que toda uma estrutura dramática arquiconhecida é ao mesmo tempo questionada e colocada a serviço de objetar outras questões que escapam ao próprio objeto e só perceptíveis enquanto forma total.
 
Do alto, Fim de uma viagem é uma leitura sobre uma Alemanha ainda situada no nevoeiro de um tempo cujas marcas nunca serão gastas; mas fora dos seus limites nacionais, como é o lugar de toda obra artística, este romance também tematiza como os laços da tribo se tecem de forma que os nele implicados sequer desconfiam das artimanhas que se assumem como práticas quase sempre amorais, desordeiras e, por isso mesmo, mais radicais que a queima de um jipe do exército. Ou de uma obra de arte.

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