Ensaio autobiográfico, de Jorge Luis Borges
Por Jaime Siles
Há muitos Borges com o nome de
Borges e há, especialmente em sua vida e em sua obra, dois: a série de personas
poéticos a partir das quais escreveu todos os seus livros, e outro Borges, com
quem o anterior coincide apenas nas limitações do espaço e do tempo, nas
propriedades de sua linguagem e no acaso de sua fisicalidade. O Ensaio
autobiográfico oferece um relato exato da proporcional perplexidade de
ambos: de suas sobreposições e influências, de seus ensinamentos e
intercâmbios.
Os dois Borges podem ser seguidos
aqui na palavra escrita, que é o fio condutor deste Borges verbal, e nas
imagens sucessivas com que o tempo dá forma a outro Borges icônico, no qual se
reflete outro Borges não mais imaginário do que aquele condenado a viver no
paraíso de uma biblioteca cujas estantes estão repletas de livros com páginas
em branco e de espelhos nos quais se ouvem os passos de um tigre que caça no
meio da noite o que um cego tenta decifrar.
Este livro fala sobre esses dois
Borges, e, embora diga muito, nada diz sobre quem o escreveu. Concebido como Autobiographical
Notes (Notas autobiográficas) e publicado em setembro de 1970 na prestigiada
revista The New Yorker, foi escrito em inglês em colaboração com Norman
Thomas di Giovanni como parte de uma das seis palestras que seu autor proferiu
na Universidade de Oklahoma e incluído no mesmo ano na antologia The Aleph
and Other Stories (O Aleph e outros contos), com apenas uma variação: a de
seu título, convertido em An Autobiographical Essay (Ensaio
autobiográfico), que é o que serviu de suporte para as versões em espanhol que
o próprio Borges nunca autorizou.
Em 1971, La Gaceta do Fondo
de Cultura Económica havia adiantado, em tradução de José Emilio Pacheco e com
o título Borges: Memórias, uma seleção parcial deste escrito que, reaparece
na sua versão integral e anônima a 17 de setembro de 1974 no jornal argentino A
opinião. Por ocasião do centenário do escritor, também na sua língua de
origem, foram editadas duas versões: em Buenos Aires, Autobiografía
(1899-1970), de Marcial Souto e Norman Thomas di Giovanni e em Barcelona, Un
ensayo autobiográfico, com coordenação de Cristóbal Pera, com prefácio e tradução
de Aníbal González e posfácio de María Kodama.
Aceitas como uma autobiografia de
Borges pela crítica e tomadas por seus estudiosos, essas páginas carregam um duplo
e positivo efeito de sentido: a de nos oferecer um Borges por ele próprio e a
de nos aproximar de outro Borges em diálogo com as diferentes sucessões do que
ele chama de eu.
O primeiro capítulo — “Família e
infância” — explica sua vida “íntima” em um universo tão breve quanto fechado e
circular, no qual sua avó Fanny Haslam lhe conta histórias da vida na
fronteira. O que, junto com o passado militar de sua família, o faz ansiar por
um destino épico que não terá e que buscará nos “volumes vermelhos com letras impressas
em ouro” do Dom Quixote na edição Garnier e das Silhuetas militares
de Eduardo Gutiérrez. Isso e a biblioteca do pai (“Se tivesse de indicar o
evento principal de minha vida, diria que é a biblioteca de meu pai”) fizeram
com que os livros mediassem e se interpusessem entre as coisas e a sua
experiência da vida exterior, sobretudo, de natureza verbal; entretanto, o
jardim zoológico ou o espaço da Villa Esther ocupam em suas referências um
nível não inferior ao da biblioteca com a qual sempre se quis ser identificado.
O segundo capítulo — “Europa” —
refere-se à sua experiência suíça, sua aprendizagem do francês, alemão e latim,
sua descoberta de Schopenhauer e suas primeiras leituras de Meyrink, Whitman e
Tácito; a sua estadia em Maiorca e o inverno passado em Sevilha, onde publica no
número de 31 de dezembro de 1919 da revista Grecia o seu primeiro poema
e faz amizade com o grupo de jovens que “se autodenominavam ultraístas” e que “se
propuseram renovar a literatura, ramo da arte do qual não entendiam
absolutamente nada”. Ele detalha seu encontro com Rafael Cansinos-Asséns e
descreve sua “perversidade” (“escrever livros que elogiavam com generosidade
escritores de segunda e terceira categorias”) e, sobre o talento de Ramón Gómez
de la Serna, não deixa de esboçar um sorriso ao mesmo tempo reticente e
irônico.
O terceiro capítulo — “Buenos
Aires” — se apresenta a certidão de óbito do ultraísmo, a descoberta de um novo
estilo literário, a descoberta ou invenção de Macedonio Fernández, a história
de duas revistas, Prisma e Proa, e o encontro com Silvina e Victoria
Ocampo, Carlos Mastronardi, Eduardo Mallea, Alfonso Reyes e Alejandro Xul Solar.
O quarto — “Maturidade” — é talvez
o mais interessante. Nele explica a sua técnica do conto, a criação de Francisco
Bustos, os anos sombrios vividos na seção Miguel Cané da Biblioteca Municipal,
as suas leituras e os acidentes e alucinações que o levariam a perpetrar o seu “Pierre
Menard, autor de Dom Quixote” e a descobrir as leis que regem Ficções e O
Aleph, seus “dois livros principais”. A cegueira havia modificado seu
estilo e o peronismo iria alterar sua realidade. Interessado na aliteração, ele
começou a estudar o inglês arcaico não pela “vaidade de dominar”, mas pelo
prazer de estudar. E acima de tudo, fornece dados, informações e pistas;
explica a gênese de O fazedor e elabora um catálogo de seus modelos:
Poe, Chesterton, Stevenson.
“Anos de plenitude”, o último
capítulo, cobre desde sua nomeação como diretor da Biblioteca Nacional da
Argentina até Elogio da sombra e O informe de Brodie: o balanço e
as perspectivas de um homem alheio ao sucesso e ao fracasso, que busca “a paz,
o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que pareça demasiado ambicioso, a
sensação de amar e ser amado”.
Este Ensaio autobiográfico
não diz muito do que não sabíamos, mas o diz muito melhor: é um “Borges e eu”,
que não deixa de ser um Borges e nós, contado por aquele que foi Borges, visto
em sua sucessão e em seu discurso à luz de suas próprias imagens.
* Este texto é a tradução livre de
“Un ensayo autobiográfico: Jorge Luis Borges” publicado aqui em El Cultural.
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