Efêmeras notas para a efeméride de Fagundes Varela
Por Fábio Roberto Ferreira
Barreto
Fagundes Varela. Arquivo: Biblioteca Nacional / Reprodução. |
Dissensos entre especialistas
Em edição especial do “Suplemento
Literário” da Folha da Manhã, por ocasião das comemorações do centenário
de nascimento de Fagundes Varela, Mucio Leão acertadamente escreveu sobre o
poeta: “Ele é adorado por alguns; é negado e detestado por outros” (Folha
da Manhã, 24.08.1941, p. 25).
O literato Murilo Mendes — naquela
mesma publicação — é elogioso: “Considero Fagundes Varela um dos maiores do Brasil,
dos mais autênticos” (Folha da Manhã, 24.08.1941, p. 32). Reconhecido
especialista em literatura, o professor Antonio Carlos Secchin — no início do
Século XXI —, prefaciando antologia que ele mesmo organizou, se junta ao coro:
“Não haveria exagero em perceber na sua poesia a mais complexa construção
literária de nosso Romantismo” (SECCHIN, 2005, p. 7).
José Veríssimo, por sua vez, não
demonstra apreço por Varela, em seu compêndio da literatura nacional, publicado
no início do Século XX: “No tom propriamente lírico dos seus poemas, nada se
depara de novo, nem no fundo nem na forma” (VERÍSSIMO, 1915, p.150). Semelhante
sentimento exprime o respeitadíssimo professor e crítico literário Alfredo
Bosi, no seu História concisa da Literatura Brasileira. Para ele, Fagundes
Varela é, tão somente, “o maior entre os menores” (BOSI, 1994, p. 118).
Singela pretensão
Atrevo-me a entrar na contenda da
plêiade a respeito de Fagundes Varela. Comungo da ideia de direito à literatura
de Antonio Candido. Embasado nos ensinamentos deste mestre, inclusive, sobre
ler e me expressar sobre o que li, lhes redijo que parte considerável da obra
valeriana “me impressiona [...] por um arranjo especial de palavras” (CANDIDO, 2011,
p. 180): ora suas criações artísticas se constituem como grandiosas para
leitura, ora como, ao menos, agradáveis para fruição leitora.
Efetivamente, julgo que Fagundes
Varela foi poeta e como tal viveu. Esse modus vivendi garantiu que
Fagundes gozasse dos prazeres mundanos e lograsse êxito em muitas de suas
escritas literárias, mas, também por causa do seu estilo de vida, fez com que
perambulasse em busca de preenchimento espiritual — e isso lhe imputou a
sofreguidão de algumas de suas composições poéticas.
Seu gênio artístico permitiu-lhe o
engenho de composições estilísticas abundantes — desde as de “inspiração fácil
e generosa” (CANDIDO, 2000, p. 231) às de “maturidade e força lírica” (CANDIDO,
2000, p. 234). Outrossim, possibilitou-lhe a variação temática; se Antonio
Candido lista “quatro ou cinco aspectos — patriótico, religioso, amoroso,
bucólico” (CANDIDO, 2000, p. 231) —, Antonio Carlos Secchin reconhece-lhe “oito
faces” (SECCHIN,2005, p. 21).
Os desmedidos de sua personalidade
levaram-no aos extremos, especialmente, de pileques urbanos a meditações
campesinas. Viver o que escreveu ou, vice-versa, escrever o que viveu,
parece-me, foi o que o alçou aos patamares mais elevados da literatura (como em
“Cântico do Calvário”) ou o fadou a suas escritas menos apreciáveis do ponto de
vista estético (como Anchieta ou evangelho nas selvas).
Lirismo
Afeiçoado ao labor poético, é de autoria
fagundiana algumas das composições líricas mais primorosas da língua
portuguesa. “Cântico do Calvário” (em Cantos e fantasias), em que versa
a respeito da morte de seu filho, seguramente, é das elegias mais emotivas que
li em minha vida — tão bonita que opinião semelhante, aliás, expressam tantos
os mais e os menos afeiçoados críticos do poeta; decerto, um dos raros
consensos entre os teóricos acerca de Varela.
“Névoas” e “Arquétipo” (em Noturnas),
“Estâncias” e “A Lucília” (em Vozes da América), “Juvenília” e
“Protestos” (em Cantos e fantasias), “A flor do maracujá” (em Cantos meridionais),
“A volta” (em Cantos do ermo e da cidade) são alguns dos outros poemas —
em livros diferentes — nos quais o lirismo de Fagundes se revela. A lista se
prolongaria aqui, tendo inclusive, a inserção de versos em cujo centro temático
estão outras questões, mas, ainda assim, há passagens repletas de lirismo (sua
marca maior).
Ainda que advogue que o auge valeriano
tenha de dado em 1865, em Cantos e fantasias (CANDIDO, 2000, p. 234), Antonio
Candido reconhece que “sua força reside
principalmente no lirismo ao mesmo tempo descritivo e confidencial” (CANDIDO, 2002,
p. 72); aliás, até mesmo Veríssimo — a despeito de suas opiniões severas acerca
do poeta — ressalta que “o que há de bom, às vezes mesmo de excelente, em
Varela, é o seu lirismo sentimental, as suas manifestações de dor de pai ou de
amante, os seus lamentos de poeta infeliz” (VERÍSSIMO, 1915, p. 150).
Narrativas poéticas
Um estratagema frequente na obra valeriana
é a utilização de narrativas em seus poemas para dar vazão ao lirismo de sua
pena. Dois dos textos poéticos que, na construção de enredos, mais me
sensibilizam como leitor são “Gualter, o pescador” (em Vozes da América),
em uma história com desfecho trágico, e “Mimosa — Poema da roça” (em Cantos meridionais),
numa fabulação com ares juvenis.
“Gualter, o pescador” remete ao
cotidiano de uma família caiçara envolta às questões de sobrevivência.
Contrariando a esposa Esther, que tivera “presságios”, Gualter diz que o “mar
está calmo”, explicando ser necessário ir atrás do alimento (“amanhã, responde,
/ O que havemos de comer?”), e vai à pescaria. Após a partida do homem, um
temporal cai na região, desesperando sua companheira, que, com a filha, vai à
beira da praia. Ironia trágica, Gualter sobrevive às intempéries do mar, e
Esther é encontrada sem vida por ele nas areias próximas a que o pescador havia
chegado depois da tempestade.
A beleza estética da composição valeriana
se expande por todo o poema (há um desfecho, ainda, cuja descoberta deixo aos
leitores deste texto meu no próprio “Gualter, o pescador”). A descrição
belíssima do oceano abraçando o sol no horizonte, no final do texto, não apenas
corrobora o que já foi apontado acerca do aspecto lírico de Fagundes, como
também serve para ressaltar a importância do Romantismo, como um todo — de qual
o poeta foi um dos expoentes: “puxou a literatura para temas e paisagens
locais, usando linguagem mais natural, aproximada dos usos linguísticos”
(CANDIDO, 2011, p. 94). A apreciação estética desse texto não exige nem
conhecimento de cultura clássica para estabelecer relações, tampouco domínio
rebuscado dos usos do idioma; ao mesmo tempo, se constitui como um texto literário
de bastante qualidade.
A imaginação fértil e a
engenhosidade no manejo dos versos estão presentes em outra narração poética
fagundiana. No enredo em versos, mais de uma vez o enunciador textual gera e
quebra expectativas do leitor para, no final, escrever que “tudo não passou de
devaneio”. Diferentemente dos ares trágicos de “Gualter, o pescador”, há aqui
um tom irônico e, simultaneamente, zombeteiro, anunciado desde a primeira
estrofe do Canto Primeiro: “poupai estas quadrinhas”! Antônio Candido,
inclusive, lembra que “o idílio campestre, em poemas narrativos de toque
malicioso e alegre: ‘Mimosa’” (CANDIDO, 2000, p. 238).
Questões raciais. Os vieses de
Fagundes na abordagem do negro
As questões raciais também ocupam,
de modo menos intenso — nem por isso menos importante — a pena de Fagundes
Varela. “Foi também (o poeta) quem deu categoria ao tratamento poético do negro
em ‘Mauro, o escravo’” (CANDIDO, 2002, p. 73), precedendo Castro Alves¹, figura
proeminente do Romantismo nesse tema.
Além de “Mauro, o escravo” (em Vozes
da América), o tema está explicitamente tratado em “A escrava” (em Avulsas)
e em “O escravo” (em Cantos meridionais). Apesar de valorizar a figura
do negro, em cada um deles se distingue a ótica do enunciador poético. A
presença do branco nos poemas alterna-se entre: I) o discurso contra a desumanização
que o sistema escravocrata representa; II) o apoio a rebeliões e fugas; III)
por fim, o elemento causa-consequência da violência entre senhores e
escravizados.
Em “O escravo”, trata-se uma
figura não ativa do negro — passiva mesmo ante os infortúnios —, demandando do
branco um olhar de comiseração após sua morte. No poema “A escrava”, há o
protagonismo da história, estando a mulher negra em fuga, observada e acudida
por um branco — que se não ajudou a escapar do malfeitor, não a atrapalhou em
seus planos. Em “Mauro, o escravo” — o mais conhecido de todos —, há uma
transformação, passando a personagem protagonista da condição de escravizado
que se sujeita a Lotário, seu senhor, à da que se rebela ante as injustiças dos
fazendeiros (filho, primeiro, e pai, depois), toma as rédeas de seu destino e
vinga a morte da irmã.
Os reveses nas questões negras
em Fagundes Varela
Se é inconteste, todavia, que
Fagundes Varela inaugura as discussões acerca da escravidão e, por conseguinte,
sobre o fim do regime escravocrata, julgo pertinente tecer alguns senões.
Um deles, nesse sentido, se refere
ao volume. De uma obra abundante em temas, atinentes em sua maioria a questões
de seu tempo, em quantidade Varela se dedicou, por exemplo, muito menos a discussões
etnicorraciais do que a tópicos de ordem patriótica (que, salvo, talvez, pelo
interesse histórico de um poema como “A William Christie”, em O Estandarte Auriverde²,
são versos demasiadamente ufanistas que não valem a leitura). Espírito de
época, havia uma preocupação maior com afirmar a independência do Brasil em
relação império britânico do que com as questões humanitárias (ambas
existentes, no período, mas com proporções distintas no país e, por
conseguinte, na obra valeriana).
Um segundo porém concerne à
qualidade. No aspecto formal, lembra Franklin Távora que “‘Mauro, o escravo’,
poemeto com que se abre o livro Vozes da América, é evidentemente vazado
nos moldes de ‘Y Juca Pirama’” (VARELLA³, 1892, p. 14). Mas —
para não ser injusto — o mesmo crítico reconhece que “dessa imitação
dos poetas que naquele tempo gozavam de mais fama nos círculos literários
Varella passou a uma originalidade mais caracterizada” (VARELLA, 1892, p. 15).
Fica, enfim, um apontamento de ordem formal, que rende variada discussão.
Prosseguindo, há um aspecto a
tanger o tratamento temático. É fato que, ao lado de Castro Alves, Varela é um dos
grandes nomes da última fase do Romantismo; que, tanto um quanto outro, “no
temário [...] traz contribuições válidas, que lhe caracterizam a fisionomia,
como o rompante da poesia política e humanitária” (CANDIDO, 2000, p. 223). Mas,
a despeito da primazia, a perspectiva pela qual o tema é tratado é limitada a
uma visão do literato branco do Século XIX: “o Mauro de Varela tem poucas
raízes brasileiras, e como foi traçado a golpes de melodrama, acabou dizendo
mais da visão romântica do herói rebelde do que das angústias do negro nas
condições concretas em que este penava” (BOSI, 1994, p. 119).
E, por último, há uma contradição
na obra valeriana. No poema “A diversão” (em Cantos do ermo e da cidade),
o eu poético está enfastiado e se embebedando. Em duas passagens dessa
composição poética, o enunciador contradiz, negativamente, o que os poemas
anteriores — “Mauro, o escravo”, “A escrava” e “O escravo” — expressavam,
positivamente, sobre as questões atinentes ao negro. O verso introdutório de “A diversão”,
expressa uma ordem ao “escravo”, mandando-o encher uma taça de álcool. Alguns
versos depois, ofende rudemente o escravizado, chamando-o de “estulto”
(estúpido); isto é, distancia-se da preocupação com a condição humana dos
negros, tratando-o como coisa. Essa contraditória produção poética não é
abordada pelos teóricos e críticos citados neste breve ensaio, nem parece
existir em outros de grande expressão. A meu ver, uma lacuna a ser preenchida
pelos estudos literários.
O Romantismo representou a
“passagem da oralidade de salão e academia, típica do Arcadismo, para a
oralidade de teatro, comício, reunião política, coisas novas no Brasil,
culminadas pelo movimento abolicionista” (CANDIDO, 2002, p. 95). Varela fez
parte desse movimento como poeta — e homem — de seu tempo, assumindo bandeiras e
defendendo estéticas do contexto ao qual pertenceu; com alguns méritos, diga-se
de passagem. Mas — apesar de avançar alguns estágios em relação a seus
contemporâneos, estética e eticamente — estacionou em algumas das limitações de
então, como as do racismo estrutural da época (e, por que não, atual?).
Palavrinha derradeira
Fagundes Varela foi intenso em sua
vida e, por conseguinte, em sua obra. Pode
ser lido sob diferentes aspectos.
Há ainda muito que discutir sobre seu lirismo, especialmente no que tange ao
veio narrativo de sua poética. São possíveis abordagens sobre a parca — mas nem
por isso desinteressante — produção acerca das questões raciais. Não se trata
de fazer justiça a quem já tem uma representatividade nas letras nacionais, tampouco
de deixá-lo nas prateleiras do esquecimento: nem um extremo nem outro. Deixemos
os dissensos de lado, para que, nos debruçando sobre as composições poéticas
valerianas — de acordo as diferentes lupas que utilizarmos —, possamos enxergar
a obra deixada pelo poeta sob prismas distintos.
Notas
1 Para Antonio Candido, dividem
ambos as “novas direções da poesia” do Romantismo: “Nos dois grandes poetas do
momento — Varela e Castro Alves — a força da personalidade e a intuição
artística não só assimilam como fecundam e superam, com defeitos e tudo, o
legado das gerações anteriores” (CANDIDO, 2011, p. 221).
2 Na antologia de 1892, o título é
“Pendão Auriverde”. Independente do título, na antologia do Século XIX, ou como
veio a ser mais conhecida é, na verdade, “política rimada, por sinal muito má” (CANDIDO,
2000, p. 233).
3 Fagundes VARELA é com apenas
um /l/, mas no título do livro citado o autor o grafa com dois
(“Varella”). Tal grafia está presente em algumas homenagens póstumas, como em
unidade educacional da rede municipal de São Paulo: “EMEF Fagundes Varella”.
Referências
BOSI, Alfredo. História concisa
da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CANDIDO, Antonio. Formação da
literatura brasileira. São Paulo: Humanitas/FFLCH, 2000, vol. 2.
CANDIDO, Antonio. O Romantismo
no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre o Azul, 2002.
CANDIDO, Antonio. “O direito à
literatura”. In: Vários escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre o
Azul, 2011, p. 171-193.
FOLHA DA MANHÃ. “Suplemento
literário”. São Paulo: 24 de ago. de 1941. Disponível aqui.
Acesso em: 14 de ago. de 2021.
SECCHIN, Antonio Carlos. Melhores
poemas: Fagundes Varela. São Paulo: Global, 2005.
VERÍSSIMO, José. História da
literatura brasileira. Fundação Biblioteca Nacional: 1915. Disponíve aqui.
Acesso em: 12 de ago. de 2021.
VARELA, Fagundes. Obras
completas de L. N. Fagundes Varella. Rio de Janeiro: Garnier, 1892, vols. 1, 2 e 3.
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