Cinco obras fundamentais ao leitor de Gustave Flaubert

Gustave Flaubert. Ilustração: David Hocney (1937, detalhe).



Quando se fala o nome de Gustave Flaubert (1821-1880), logo o leitor recorda por associação um título: Madame Bovary. Isso não é gratuito. O romance projetou o nome do escritor francês para aquela ordem que designamos como de domínio do clássico. Sim, ao contrário do que possa parecer, nos dias de vocabulário gasto, porque utilizado de qualquer maneira, uma obra merece essa designação quando consegue sempre se recuperar de maneira livre pela memória popular e, mais que isso, ser relevante muitos anos depois de sua publicação. Apresentado em 1856, parece oportuno sublinhar o valor do tempo nesse caso e para uma obra capaz de suscitar questões ainda fundamentais aos leitores.
 
Se Madame Bovary pode ser um bom exemplo na retomada sobre o sentido fundamental do termo clássico, Flaubert se filia, por sua vez, a um lugar no cânone — para citar outro termo que os partidários dos revisionismos insistem por fina força dizer que não guarda mais serventia atualmente. Para Arnold Hauser, foi este o escritor capaz de colocar o mundo do sonho romântico, que designaríamos facilmente como idealismo, frente à realidade da vida cotidiana para revelar a anormalidade e falsidade daquele em relação a este.

Com este romance, Flaubert revolucionou para sempre os rumos do romance. Mario Vargas Llosa, autor do excelente A orgia perpétua, ensaio que examina cuidadosamente a obra principal do escritor francês, compreende este como o livro que solidificou as bases da modernidade na literatura. A razão para tanto: oferecer as bases para o monólogo interior, técnica que ganhará fôlego em escritores como James Joyce. “A grande contribuição técnica de Flaubert” — diz o escritor peruano — “consiste em aproximar o narrador onisciente do personagem que as fronteiras entre ambos se evaporam, em criar uma ambivalência na qual o leitor não sabe se aquilo que o narrador diz provém do relator invisível ou do próprio personagem que está monologando mentalmente.”
 
O destino de Emma Bovary foi especulado por variado ponto de vista. Pioneiro, Flaubert conseguiu colocar em evidência o protagonismo da suicida, o que, se alastrará como uma febre criativa em outras importantes obras da literatura europeia. Na Rússia, para lembrar dois exemplos dos mais famosos pós-Bovary, estão a tragédia A tormenta, de Aleksandr Ostrovski, em que a religiosa Katerina se joga no rio Volga e Anna Kariênina, de Liev Tolstói, em que a protagonista se joga contra um trem.
 
Bom, mas nem só de Madame Bovary se fez a literatura a Gustave Flaubert. Esta é sua obra-prima, mas não a única. É quase raro também encontrar um escritor que se distinga por outras criações; apesar de não ser uma verdade irrefutável, a grande obra se encontra sempre no motivo de interesse principal de todo criador e, por vezes, o empenho finda por revelar outros importantes objetos pelo caminho. Por isso, registramos nessa lista além do seu famoso romance outras quatros obras fundamentais para conhecer o universo literário do escritor francês.
 
Salammbô (1862). O romance foi escrito logo depois do seu principal livro. A tradução mais recente editada no Brasil é a de Ivone Benedetti. Esta é uma aventura épica ambientada no século III a. C. no norte da África e esse radicalismo foi uma reação do próprio escritor sobre o quadro do realismo burguês que se abriu com Madame Bovary. Feita do exotismo e de certo culto pela Antiguidade, qualidades que se somam ao erotismo e à violência já conseguidos. A história da obsessão luxuriosa de um líder mercenário por uma jovem filha de um militar cartaginês em tempos da Primeira Guerra Púnica cobrou da dedicação zelosa de Flaubert um mergulho pelas regiões da antiga Cartago e por mais de duas centenas de obras e documentos em seu entorno. Sob a aparência de um jogo sádico e supérfluo, o romance funciona como uma experiência criativa de profunda modernidade ao mesmo tempo em que oferece uma crítica profética da vã sociedade do Segundo Império Francês.
 
A educação sentimental (1869). Este é um livro colocado por Franz Kafka entre os seus preferidos; certamente pelo ponto de tensão que nele se demonstra, movimento que irrompe na narrativa, alcança a própria estrutura romanesca ao colidir esta com a vida exterior. A crítica trata este romance como um surgimento de uma nova espécie de arte verbal até agora ainda sem catalogação precisa nas taxonomias literárias. Acompanhamos o jovem Frédéric Moreau envolto nos sonhos com a vida futura em Paris, do encontro com a Sra. Arnoux, as ambições por amor, riqueza e glória numa época de profundas transformações marcadas pelo contexto de turbulências polícias e sociais que resultarão na Revolução de 1848. Entre nós, a tradução mais recente é a de Rosa Freire d’Aguiar.
 
Três contos (1877). Este livro é uma amostra essencial, uma síntese, pode-se tomar, do projeto literário de Flaubert. Foi do próprio escritor a organização da antologia e nela incluiu três textos escritos entre 1875 e o ano de sua publicação. “Um coração simples” narra meio século de servidão de uma criada; em “Legenda de São Julião Hospitaleiro”, o contista se apropria da hagiografia situada na Idade Média a partir de uma variedade de objetos artísticos para contar a história do santo parricida minimizando parte de sua força religiosa e acentuando a importância do meio social. Encerra o livro “Herodíade”, que reinventa o episódio bíblico da execução de João Batista, expondo um jogo de poder no interior do império romano. O livro é uma das melhores amostras da destreza Flaubert no domínio de várias formas narrativas. O leitor brasileiro encontra estes textos na tradução recente de Samuel Titan Jr.
 
Bouvard e Pécuchet (1881). O romance de uma vida. E assim como sempre é a vida, inacabado. Flaubert coloca em cena dois personagens crédulos, os escreventes Bouvard e Pécuchet, que, caminhando na rua, na hora do almoço, sentam num mesmo banco de praça e acabam se tornando grandes amigos. O sonho desses dois homenzinhos, como o escritor a eles se referia, é conseguir largar o trabalho insano de copistas para se dedicarem aos estudos, aos altos conhecimentos, científicos ou não, do mundo. Um dia, um deles recebe uma bela herança, suficiente para passar o resto da vida sem trabalhar. Combinam, então, trocar a vida parisiense pela vida no campo, onde poderiam se dedicar aos estudos e às experiências, procurando pôr em prática, nesse laboratório da natureza, tudo que aprenderiam nas grandes obras de referência. Experimental até o limite do impossível, a história dos copistas eternos contém, na forma de uma comédia, os desenvolvimentos mais notáveis da narrativa do século XX: o trivial, o incomum e o corriqueiro. Jorge Luis Borges leu este trabalho como a ruptura oferecida pelo próprio escritor ao modelo realista forjado com Madame Bovary e como a antecipação da forma parabolar da ficção de Franz Kafka. No Brasil, o livro está traduzido por Marina Appenzeller.  

Comentários

c.eliseu disse…
Excelente texto. Cinco livros com profunda coerência interna, cujos temas abeiram o abismo crítico atual e que parecem escritos por distintos autores.

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual