A invenção de Drácula
Por José de la Colina
Cena de Drácula, filme de Tod Browning (1931). |
O vampiro humano sempre
ressuscitado, o dândi noturno chupa-sangue, o príncipe universal da
Transilvânia, o temível e agradável personagem que seria multiplicado por
Hollywood e outras cinematografias, ou seja, o Conde Drácula, apareceu pela
primeira vez no final do século XIX com o romance de um escritor nada ou quase
nada conhecido: Bram Stoker. Mas, se sabe que, durante séculos e com ou sem
nomes diferentes, o sinistro anti-herói vinha sendo auto-engendrado através das
superstições arcaicas, dos folclores orais antigos e das literaturas populares
e outras mais destacadas, como por exemplo: no Satiricon, de Petrônio; n’As
mil e uma noites (de Sherezade?); no Dicionário Filosófico, de
Voltaire; em Smarra, de Nodier; em A noiva de Corinto, de Goethe; no Manuscrito
encontrado em Zaragoza, de Potocki; Vampirismus, de E. T.
A. Hoffmann; O vampiro, atribuído a Byron, mas de um certo doutor
Polidori; Barney, o vampiro de B. Prest; “Berenice”, de Edgar
Allan Poe; Carmilla, de Sheridan Le Fanu; e outras obras e obras que
prolongariam ainda mais a lista e entediariam o leitor (se ele ainda estiver
por aqui).
Assim, dentro da narrativa de terror, o tema do vampiro já tinha tradição e até
títulos de nobreza, mas tocaria ao obscuro escritor irlandês Abraham “Bram”
Stoker (que nasceu em Dublin em novembro de 1847 e morreu em Londres a 20 de
abril de 1912, e que além de jornalista foi secretário e empregado
multifuncional do famoso ator inglês Henry Irving) para erigir um protótipo de
vampiro humano do qual derivariam quase todos os replicados pelo cinema, os
quais, de filme em filme mudo ou sonoro, e em preto-e-branco ou em cores,
tentaram sobreviver roubando o sangue de outros (de preferência bebido
diretamente nas palpitantes jugulares de mocinhas facilmente seduzidas por
exóticos e sombrios homens pouco recomendáveis).
O romance de Stoker, com o mero título de Drácula apareceu em 1897
para competir graciosamente nas livrarias de Londres com obras de autores já
famosos (Capitães corajosos, de Rudyard Kipling, O homem invisível, de H.
G. Wells, O agente secreto, de Joseph Conrad), e começou sua carreira como
um livro de culto entre os fãs da ficção de terror, um gênero que a literatura
inglesa já era generosa em estrelas: Ann Radcliffe (cujos romances Os
mistérios de Udolfo e O italiano provinham de O castelo de
Otranto, de Horace Walpole), “Monk” Lewis (O monge), Robert Maturin (Melmoth),
o estadunidense Poe (contos como “A queda da casa de Usher” e “Berenice”), o
escocês Robert Louis Stevenson (O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde) e
especialmente o irlandês Joseph Sheridan Le Fanu (Carmilla, relato de
vampirismo com uma nuance lésbica), além, é claro, dos proliferantes autores de
histórias de fantasmas.
Drácula aderiu ao formato narrativo do romance epistolar e diarístico à
maneira da tradição literária do século XVIII, mas gozava de vários pontos
inovadores no gênero de fantasia: um complexo tecido de histórias dos
principais personagens, uma certa densidade psicológica anterior a Freud, a
presença anedótica de elementos modernos como o telégrafo, ditafone e
taquigrafia e a astúcia de tornar o protagonista sombrio mais ameaçador apesar
de — ou graças a — estar narrativamente presente em muito menos páginas do que
os outros personagens e derivando de um herói de existência histórica
documentada: Vlad Draculea (1431-1476), apelidado de Vlad Tepes (que em romeno
significa empalador), um senhor feudal e guerreiro da Valáquia, herói da
guerra contra os invasores turcos, um sádico vóivoda que se
satisfazia cravando seus prisioneiros em estacadas e que passou de
sua lenda de viciosa crueldade para a categoria de grande homem nacional e
estrela folclórica da Romênia. Seu castelo, no que já foi chamado de
Transilvânia (que significa “Além da floresta”), é muito visitado por multidões
de turistas e fãs da literatura vampírica.
Também se diz que Stoker, ressentido com o tratamento humilhante infligido a
ele por seu empregador, o referido ator Irving (quem pode ter zombado dele por
ser irlandês e exigido que lhe servisse o chá das cinco nem dez segundos antes
ou depois e que o repreendeu durante longos e fechados monólogos
shakespearianos), introduziu no personagem fosforescente do Drácula alguns
traços e caminhos do possível pequeno ditador que ele tinha como modelo
imediato e complementar.
Por fim: Drácula é um Best-seller da literatura de mero
entretenimento desde 1897, mas talvez tenha ascendido a uma posição literária
mais elevada quando o exigente ensaísta e crítico Harold Bloom (confesso de não
sentir falta de nenhum filme draculiano, de qualquer qualidade) incluiu o
romance na lista privilegiada de seu livro O cânone ocidental, porque, diz
ele, Stoker inventou um novo mito: o grand ténébreux perdura em
nossos sonhos e pesadelos e nos apresenta o terrível dilema de ser Drácula, o
cruel vampiro, ou Van Helsing, o cruel exterminador de vampiros.
Ligações a esta post:
* Este texto é a tradução de “La invención de Drácula”, texto publicado aqui,
em Letras Libres.
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