Vivos na memória, de Leyla Perrone-Moisés
Por Pedro Fernandes
Muito se escreveu sobre o
assoreamento da nossa sociedade pelo feroz domínio das leis do consumo. Este é
um dos debates intermináveis com poucos ou quase nenhuns resultados: apenas
pressentimentos de variada forma, dos mais fatalistas aos mais positivistas, puxados por aqueles que facilmente se ajustam à correnteza das coisas, como se essas, também
num movimento irrevogável, acontecessem independente de nossa intervenção.
Entre um limite e outro, a saída parece se inscrever numa zona ainda neutra de
nossa inteligência; talvez porque educados no interior de uma cultura da
dicotomia, ou mesmo de uma certa leitura da dicotomia, pouco enxergamos a
difusa área que nos permitiria acompanhar o curso dessas transformações mas sem
nos deixar cegar pela sua ofuscante luminosidade.
Um dos problemas do nosso tempo —
é um problema exatamente porque deixou de ser um sintoma da contemporaneidade —
agravado pelos modelos sociais vigentes é uma dificuldade de construir
seguramente nossas referências. A vida fácil como é vendida pelos variados
setores da mídia tem conseguido se impor, curiosamente, fora do alcance das
gentes comuns. Qualquer visita
aos vários estamentos sociais revelará uma uniformidade dos interesses: ficar
rico para usufruir de uma vida vazia; e se isso for possível de se alcançar pela fama,
muito melhor. A excessiva postura de se mostrar nas redes sociais em condições falseadas
em comparativo com a vida comum é apenas um sintoma. Nessa sociedade,
as referências são, o modelo, o ator, o jogador de futebol e o influenciador digital, não necessariamente nessa ordem.
Sobre este último caso, um notável
jornal brasileiro, por exemplo, atribuiu a um youtuber — veja o disparate — o
título de intelectual do nosso tempo e enquanto essa referência havia afirmado (e não
sabemos se apenas para polemizar, como de costume, ou num golpe de marketing
ou as duas coisas), algum tempo antes que a obrigação de ler Álvares de Azevedo e Machado de Assis
era o principal causador do desinteresse dos jovens pela literatura. Com
referências dessa natureza, como acreditar em saídas para superar o empobrecimento de ideias
e para arrancar o domínio das mãos da imbecilidade fincadas com todas as garras
no centro do poder e emanando como exemplo de que a ignorância, a arrogância, a
mentira, a usura, a esperteza — e todo o restante de sintomas vis possíveis de
acrescentar à lista — são compensadores? Todo tempo, sabemos, foi de grandes
imbecis, mas como modelo, atravessamos uma circunstância inédita.
Mas, nos desertos vez e quando sopram
alguma brisa. E Vivos na memória, de Leyla Perrone-Moisés é um exemplo. Parece
a última lição de um mestre e por isso uma que devemos abrir bem os sentidos para sorvê-la: dar a conhecer quais
foram os convívios que o educaram e trouxeram ao ponto do lugar social de
referência. Nesse caso, falamos sobre uma educação cada vez mais rara a um
tempo de interesses práticos, como o de formar mão-de-obra para o
trabalho, peças para uma engrenagem de repetição e morte; trata-se de um modelo
que se distingue do agora adotado porque centrado na vivência do exemplo, da
aprendizagem feita da admiração, da dedicação e do esforço efetivos e
construída do convívio com outras referências, na curiosidade enriquecedora
capaz de cimentar novos caminhos. Há algo de substancial como percebemos na
variedade dos muitos episódios recordados pela professora.
Através dos biografemas, como designa
a autora, a procura reside, nesse caso específico, numa dupla tentativa: se
interrogar acerca das decisões que trouxeram-na até o presente e descobrir se o
vivido correspondeu ou não alguma expectativa estabelecida no passado. Interessada
pelas artes plásticas, Leyla Perrone-Moisés, inicia um percurso pela literatura como correspondente literária para o jornal e depois ganha os
rumos da vida acadêmica, onde se estabiliza um, por assim dizer, destino, ainda
que as primeiras expressões nunca tenham sido desfeitas ou abandonadas de um
todo.
No final desse itinerário, é
possível que a autora alcance apenas o segundo desses interesses, e este já
está dado — uma vida intelectual muito rica; o outro é sempre resposta condicionada
à possibilidade de que as escolhas assumidas tivessem sido não as que
vigoraram. Ainda assim, sabemos que nunca a alcançaríamos em definitivo: por
mais que experimentemos, só se vive uma vez. Essa é uma possibilidade de
leitura sobre Vivos na memória; se escolhemos o ponto de vista da
autora.
Pelo nosso ponto de vista,
trata-se de um livro que nos oferece muitas descobertas. Uma delas cumprida
pelos mesmos passos da autora: acompanharmos sua formação. Os retratos oferecidos
por Leyla Perrone-Moisés permitem descobrir algumas raízes do seu pensamento
crítico; por mais que isso esteja expresso na sua vasta obra, afinal na
academia primeiro somos cobrados pelas nossas escolhas teóricas e
metodológicas, descobrimos como se formaram e se organizaram tais escolhas, os começos, seus
desenvolvimentos feitos de alguma timidez, muita incerteza e incentivos até
alcançar o instante que encontramos no restante da sua obra.
Nesse percurso estão Décio de
Almeida Prado, Antonio Candido, Lévi-Strauss, Tzvetan Todorov, Benedito Nunes,
Roland Barthes, Jacinto Prado Coelho, Luciana Stegagno-Pichio, Jacques Derrida,
Eduardo Lourenço, Julia Kristeva, entre outros. Cada um desses pensadores
participa no arbítrio das escolhas críticas e no desenvolvimento de suas leituras
para a compreensão dos objetos literários. Sabemos, por exemplo, como se forma
seu interesse pela obra de um dos mais importantes poetas da literatura de
língua portuguesa — poeta sobre o qual Leyla Perrone-Moisés dedica um indispensável estudo, Fernando Pessoa. Aquém do eu, além do outro; ou
como se estabelece sua aproximação a Roland Barthes, autor que se hoje
conhecemos no Brasil é por sua inteira dedicação à tradução para o português.
Mas, essas importantes figuras são
apresentadas em dupla lente: por uma deslumbrada e curiosa leitora muito ciosa
de um lugar aprendiz diante desses mestres e sem o interesse de reforçar certa
imagem de distanciamento que talvez se oferecesse para a memorialista aquando
de suas vivências. Esse movimento é interessante porque não destitui o mestre
de sua aura, mas não o monumentaliza, visto que, mesmo quando o ponto de
partilha é a convivência intelectual, o que prevalece é o convívio em comum. Ou,
como diz, os acontecimentos de bastidores — quase como se acompanhássemos a
personagem de um Bildungsroman.
Essa delicada postura assumida
pela autora despe do eventual narcisismo ou mesmo da temível arrogância sempre capaz de se mostrar em exposições como estas, um mal, diga-se, recorrente
entre muitos intelectuais; mas a simplicidade, sem simplismos, favorece a manutenção
de uma característica conhecida nossa pela escrita crítica de Leyla
Perrone-Moisés: uma generosidade muito franca, outro princípio fundamental e escasso
no tempo de relações movidas pelo interesse. Por causa disso, este livro muito nos
revela da sua autora, uma vez que, vendo o outro, não deixamos de entrevê-la.
Além dos convívios com os pensadores
que constituíram a formação intelectual, Vivos na memória se aproxima de uma plêiade de escritores. São nomes sobre os quais a autora dedicou
alguns dos seus mais reconhecidos textos. Mesmo os situados fora do seu tempo
são presenças constantes. É visível, por exemplo, seu convívio com Fernando
Pessoa a partir das aproximações de Almada Negreiros ou Casais Monteiro, autores com relações diretas com o poeta modernista. Ou com Eduardo Lourenço, com quem divide a paixão pelo poeta modernista. Dos nomes da literatura
portuguesa seus contemporâneos, destaca-se José Saramago, alcançado por duas situações muito ao
gosto da ficção do escritor português: o acaso de descobrir O ano da morte
de Ricardo Reis (via Pessoa, outra vez) quando o romance foi publicado em
1985 e o acaso de encontrar seu autor e Pilar del Río, a recém-companheira, poucos anos
depois num almoço no clube dos professores no campus da Universidade de São
Paulo.
Mas, no campo da literatura, os
destaques se firmam em torno dos autores do nouveau roman, um interesse
que se forma quando começa a escrever para o Suplemento Literário de O Estado
de S. Paulo; Leyla Perrone-Moisés ocupará, a convite de Décio de Almeida
Prado, a vaga de Brito Broca. Michel Butor, Claude Simon, Maurice Nadeau,
Gilles Lapouge, Albertine Sarrazin, Robert Pinget, são alguns dos nomes
evocados na sua galeria. A seção de literatura francesa no jornal foi a peça que faltava para que a
autora, já interessada por essa efervescência criativa na França, buscasse explorar
ainda mais o que foi seu primeiro interesse como pesquisadora e quando essa
tendência literária era ainda uma nebulosa no seu lugar de origem.
Ao tratar dessas descobertas, o
livro oferece os meandros da formação leitora. Reafirma que sua parte mais
importante se inscreve não num modelo, técnica ou método específicos como se
quer impor depois da supervalorização da estética da recepção e das crises na leitura literária, mas numa força
quase invisível feita pelo exemplo, alimentada pela curiosidade, essa força individual, impulsionadora
e indispensável para quaisquer descobertas, incluídas sobretudo a desse mundo
ilimitado que é a literatura.
É visível que o cânone construído
por Leyla Perrone-Moisés é feito de obras que se situam num limiar da linguagem,
quando a criação se desprende da pura noção representativa para a da
criatividade ou ainda aqueles criadores que questionaram radicalmente os
protocolos estabelecidos no interior da arte literária. Com os franceses do nouveau roman,
figuram Osman Lins, Julio Cortázar, Haroldo de Campos, Paulo Leminski, Waly Salomão,
entre outros. Para ela, o primeiro citado nessa lista é um modelo raro na nossa
literatura, expressamente integrado ao lugar do escritor ao se fazer apartado de quaisquer
modismos, algo importante e fundamental aos leitores de agora ceticamente encantados com as modinhas; e por isso, na sua visão, Osman Lins com Guimarães Rosa e Clarice Lispector formam
os três pilares da literatura brasileira do século XX. Se a princípio, as escolhas literárias são feitas de algum
acaso, depois, notamos, passam a se organizar em torno de uma compreensão muito própria, constituída daquele estrato teórico sobre o qual falamos indiretamente antes — o de leitora da desconstrução
pós-estruturalista.
O grande álbum que se abre aqui
não dispõe de suas fotografias imóveis. Há muitos caminhos que se formam para uma aventura só
nossa. É, portanto, um álbum vivo, movente. Leyla Perrone-Moisés chama-o por Vivos
na memória (compreendendo que é a sua possibilidade de rememorar que faz
essas figuras outra vez respirar conosco, ainda que suas existências estejam
manifestas pela obra que cada uma produziu). Assim, se prevalece uma noção de
monumento, esta também é rasurada pela ideia segundo a qual o monumento é movente
e vivo porque pode sempre se expressar — pela autora e pelos leitores dessas
recordações. Poderíamos ler então este livro como memória viva. Sua
lição é bem conhecida de todos: não existimos
sem referências. O crucial é: o que pode constituir uma referência? Certamente não é o que o se oferece de maneira fácil, livre e gratuita na mídia,
plenamente integrada ao raso, ao efêmero, à preguiça de pensar, sem substância,
mortos em vida.
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