Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral
Por Pedro Fernandes
São muitas a convenções
estabelecidas para designar o papel, as tarefas e as funções da literatura.
Muitas insustentáveis, outras impertinentes, todas questionáveis. O romance de
Afonso Reis Cabral se situa em algumas dessas encruzilhadas. Para agora, é
possível citar pelo menos duas delas: desobrigada da verdade factual, a literatura,
por sua natureza imaginativa pode corrigir determinadas lacunas da história;
estabelecida em relação com os múltiplos constituintes do seu contexto, a obra
literária possibilita denunciar aquelas circunstâncias que afastam o homem de
seu ideal civilizatório — também um projeto, diga-se, jamais terminável.
Quando Pão de Açúcar foi
publicado, mais de uma década sobre o episódio desencadeador
da narrativa e do romance havia se passado: um bárbaro crime levado a cabo por um grupo de
adolescentes no Porto. O rosário de violências que estabeleceu um terrível
calvário para a morte prematura de uma mulher trans brasileira, a impunidade
dos criminosos e o amplo debate sobre as limitações do corpo de leis feito para
legislar mais em causa de um grupo que de um todo (como, aliás, é recorrente no sistema jurídico) alçaram esse acontecimento para o simbólico, marca acerca da intolerância, do ódio gratuito contra o
pré-concebido como diferente, o expurgado da ordem social.
De maneira que o território pisado
por Afonso Reis Cabral está distante de ser um desses lugares colocados à margem
da história, tampouco inexplorado fora das ambiências jurídicas, políticas ou ideológicas;
apenas nas artes, o acontecimento foi motivo para a canção composta por Pedro
Abrunhosa — Balada de Gisberta, que bem pode servir aos de nervos mais acurados como trilha sonora
para Pão de Açúcar — em peça de teatro e em documentário. Quer dizer, é
perceptível que a noção de preenchimento de uma lacuna da história é facilmente
questionável, tendo em vista que o romance se imiscui de ser outra peça entre um conjunto de objetos artísticos derivado das irradiações próprias que determinados episódios passam a emitir depois
de ingressados na grande bateia dos sedimentos do imaginário, os constituintes
do símbolo.
O que aqui chama atenção primeiramente,
em relação aos produtos criativos anteriores ao romance, é o título. Pão de Açúcar
se destitui de quaisquer referências diretas sobre o episódio fundador e estas só
ficam acessíveis pelo amparo dos recursos pré-textuais. Dentre as alternativas ignoradas
pelo escritor, podemos apontar o apagamento da personagem principal por outro substantivo
próprio que só ganha contornos no andamento da narrativa e mesmo assim pouco
diz dos seus acontecimentos, visto que, apesar de ser o lugar onde tudo se desenvolve, esse também não é, claro está, o cabeça ou o
fantasma dominante do grupo dos mal-intencionados atores. O disfarce é estratégico,
resta saber se cumpre seu papel.
O que o romance reimagina não são
as peças, mas as personagens dos acontecimentos, buscando recriar suas figuras
— incluindo uma biografia de Gisberta — pelo lado de dentro. Uma vez revelados
esses retratos, descobrimos que todos nesse universo estão carcomidos por uma
variedade de violências que suas manifestações exteriores são puramente
extensões mal resolvidas desses impasses. É notável como o narrador se percebe sempre
em deslocamento e à margem, como se fosse uma criatura habitante de um mundo
invisibilizado pelo mundo corrente, ainda que este, vez ou outra, se mostre, como
nas vivências com os instrutores na escola de reclusão ou com o proprietário da
tasca aonde sempre vai com os amigos como parte no passatempo de uma vida
integralmente esvaziada de propósitos.
O que envolve criminosos e vítima
é uma carência de tudo, principalmente de futuro, ainda que o narrador simule
uma preocupação com isso quando incentiva quem ele compreende como o mais
ajustado do grupo a investir no seu talento e ignorar a vida que levam juntos. Samuel
se interessa pelo desenho, reconhece em Gisberta os afetos impraticados pela
mãe e é — possivelmente influenciado por essas duas condições — o que vivencia
todo o desterro de dor, sem atuar como carrasco nos abusos praticados pelos
amigos. Sua atitude está longe de significar qualquer coisa de pureza do humano
porque não sobram espaços para isso em Pão de Açúcar, mas, pelo mesmo lado
da covardia se ilumina qualquer coisa de retorno dos pequenos afetos conquistados
na infância e que foram negados ao restante dos integrantes do grupo.
A certa altura, resulta visível algumas das feições de cada um desses adolescentes, mesmo o narrador não se interessando
em oferecer os registros completos de seus retratos. Fábio, o mais velho, é o mais
violento e por isso o mais temido de todos; Leandro e Grilo são comparsas desse
líder, obedecem, abusam e se deixam abusar, para reiterar os termos do
narrador; Samuel e Nelson, o desenhista e o calado, respectivamente. Essa posição deslocada de
Rafael para com o grupo, o permite compreender os comparsas, a si e a recriar os
acontecimentos, uma vez que ele se assume o narrador, o favorece como a
consciência precoce, estabelecida entre os limites de uma razão enquanto essas
fronteiras estão toldadas pelas diatribes da tribo.
Esse grupo singulariza mesmo a
experiência dos impasses envolvidos numa pré-história da coletividade,
incluindo aqui a ideia de territorialidade, de posse, de disputa, de liderança e de
fragmentações do grupo por interesses particulares de mando e poder. Apesar de não ser
novidade, ainda resulta espantoso que esteja nessa base a grande maioria dos conflitos com o pior
de nós e os aqui relatados formam apenas uma pequena parte deles.
Despossuídos de afetos, esses adolescentes são facilmente sequestrados
pelas garras da violência, esta senhora que garante aos seus signatários o
estamento do respeito acima de todos (que é uma maneira enviesada de se obter as
afeições negadas); metido nos seus braços, o indivíduo violento cega para quaisquer
nesgas de humanidade e encontra nas várias leis distorcidas (essas que circulam
livre e impunemente como extensão do senso comum) o ponto coerente de
justificação dos seus gestos. Eis a radiografia de Pão de Açúcar, mesmo
que folgue quaisquer interesses de se afirmar como um livro fora da zona de defesa das suas
personagens — algo, é claro, facilmente percebido como embuste sendo a narrativa
produto de quem é.
Podemos mesmo perguntar por quais
motivos esse narrador se confessa. E será que se confessa? Ou fabrica uma história
como se buscasse aliviar a consciência do horror? Existe qualquer coisa de
sagaz, no pior sentido do termo, porque essa atitude puramente individualista
se reveste de uma ampliação da violência praticada no passado: é o criminoso que, incapaz
de modificar o destino por ele próprio criado, reanima o vivido buscando
encontrar beleza onde nada mais existe que o horror.
O livro de Afonso Reis Cabral se
vale de um princípio de verossimilhança muito em voga no romance clássico — nesse
caso o do manuscrito reconstituído. Quando dizíamos de confissão do
narrador é porque o que se lê é produto do relato de um dos criminosos. Talvez
resida aqui uma possível justificativa para o problema do título levantado
anteriormente. Por mais que este narrador não negue o crime e participe da
violência gratuita impulsionada pelo que desempenha alguma função de líder do grupo, sobram incompreensões que
se deixam soterrar por uma memória que se faz muitas vezes vestida de uma
ingenuidade pueril e que encontra no lugar, Pão de Açúcar, sua materialidade.
O tempo livre
desses adolescentes destituídos de expectativas se bifurca em dois sentidos:
entre a ausência de responsabilidades e, como dissemos, o preenchimento da rotina com
trivialidades. E uma dessas é a ocupação desses lugares que formam uma
geografia fantasma, integrada e desintegrada ao urbano; são os escombros do que seria um supermercado que se coloca à margem dos interesses do grupo e que se formaliza como espaço de afeto no mapa das particularidades do narrador. (Registre-se, portanto, que não é propriamente sobre um lugar que falamos quando nos referimos a Pão de Açúcar — mas, um não-lugar, ampliando as determinantes da região periférica que predomina em toda a cena do romance).
A partir disso é possível designar
certa continuidade do perverso: aos olhos do narrador, o crime parece coincidir como o
resultado de uma consequência de disputa formada no interior do grupo desde
quando uma parte passa a conviver com algo negado a outra. Quer dizer, ele não assume de nenhuma maneira as dimensões mais profundas do crime,
tampouco que este foi desencadeado por uma cega ideia de posse que se
estabelece primeiro com as ruínas do supermercado e depois com Gisberta. Entre
um sentimento incompreendido por um adolescente envolvido no confuso processo
de descoberta da sexualidade e uma crise de pertencimento à tribo, o que Rafa estabelece
com esta mulher apartada do mundo para esperar a morte, é uma relação de posse
no sentido homem-coisa.
É notável que a Gi esteja
associada ao espaço; que antes esteja associada aos restos de uma bicicleta que
se torna material de vida do adolescente; e que depois se torne em criatura a
ele fidelizada. Vale repetir: não sobram espaços para humanidade em Pão de Açúcar.
Tudo aqui é ruína, degeneração, o longo crepúsculo de uma parte da civilização
escondida sob seus próprios olhos e só desabrochada quando irrompe como
violência na mídia, na justiça. E se conseguimos acreditar no humano neste
romance é porque estaremos fisgados pela teia armada por um narrador que busca encobrir o horror
pela fabulação, oferecendo-nos certo fio luminoso com qual tenta reduzir tudo e todos
sob a mesma sentença: a que reparamos desde começo como ausência de afetos. À
medida as coisas avançam na narrativa essa noção de posse fica visível e é o próprio
narrador quem diz que esse envolvimento é uma maneira de provar, primeiro para
si, depois para o grupo, certa condição humana. O contraditório é que as noções
de propriedade e de humanidade não se coadunam e, no final, a primeira se
impõe.
O relato de Rafael se assume
também como uma tentativa de se compreender. Incapaz de dizer sobre si, toda
sua busca se concentra em dizer do outro: da Gisberta, dos amigos, das
vivências nessa adolescência situada entre a liberdade e a libertinagem, de incertezas
e descobertas, medos e enfrentamentos. Notoriamente, como é caso recorrente em todas
as narrativas do tipo — isto é, em que a experiência é, de alguma maneira,
sobreposta pela especulação dubitativa — ao dizer sobre o outro, este narrador
finda por dizer sobre si. De alguma maneira, o crime se instaura como uma
ferida aberta que o narrador busca sempre um meio de ignorar; chegada a
impossibilidade de contornar o horror, este se descortina feito das fortes cores
que já sabemos mas interceptadas por certa singeleza do poético. Ou seja, nada
é inocente nos gestos desse narrador: o remorso é como o óleo do qual ele próprio tenta a qualquer custo se limpar, mas se conserva impregnado no corpo,
nos sentidos, na consciência.
Ora, Pão de Açúcar não se
faz de denúncia sobre a violência. É possível que os seus leitores estabeleçam
tais diretrizes, mas isso é intenção derivada e não inata do objeto literário.
A essa altura é importante que os escritores tenham superado a certeza vã de um
poder extraordinário da literatura. Sabemos que as maneiras de reconhecer a qualidade de um
escritor são muitas. E uma das melhores é descobrir que ele se situa fora das
determinantes que a crítica ou teoria literária tenham estabelecido sobretudo das que impõe uma condição moral limpa, clarividente, irretocável.
Vale sublinhar ainda que o maior
dos desafios neste romance se divide noutros três, mais estreitados com a
obra que com o fazer literário: expor uma história pelo ponto de vista do culpado
sem se perder em oferecer uma leitura predominante do acontecido (mesmo que
isso se imponha como armadilha); despertar o interesse por uma história sobre a
qual sabemos seu desfecho; transformar um episódio de horror num objeto
poético, sem, é claro, se desviar do horror. Por isso, este romance se fixa
como peça que ao invés de dizer, amplia os já-ditos, expansão indispensável e
necessária à memória, neste caso, a de como ainda dobramos totalmente (e não dobraremos) o tênue limite que
nos faz, simultaneamente, bichos e humanos. E isso, sim, tem sido tarefa
incansável da literatura desde sempre.
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