O corpo escrito de Severo Sarduy: a paixão do corpo, a paixão da escritura
Por Gustavo Guerrero
Queria descartar de início toda
interpretação biográfica ou autobiográfica do tema aqui tratado. Acredito que o
melhor testemunho sobre o corpo escrito de Severo Sarduy devemos a ele próprio
nas páginas memoráveis de El Cristo de la rue Jacob onde descreve suas
cicatrizes e compõe, com elas, um possível relato sobre sua existência. A marca
deixada por uma espinha, os quatro pontos de sutura na sobrancelha direita, a
operação do apêndice, um lábio partido, uma verruga e até o umbigo são aí capítulos
essenciais da vida de nosso autor, tal como quis relê-la através de seus
estigmas. Cada um é signo de uma história pessoal que se dispersa
fragmentariamente no tempo e só alcança uma certa continuidade graças ao
suporte espacial que o corpo representa. Engenhosa e, talvez algo mais, genial,
esta autobiografia dérmica limita, a meu ver, tudo o que se possa dizer stricto
sensu sobre o corpo escrito de Severo Sarduy e que culmina à glosa ou à
tautologia. Como ele próprio escreveu na introdução, essa arqueologia da pele,
“conta apenas na história individual o que ficou cifrado no corpo e que por
isso mesmo continua falando, narrando, simulando o evento que o inscreveu”.
A semelhança de El Cristo de la
rue Jacob fecha assim uma porta, mas, por sua vez, abre outra mais ampla e
mais livre: a que dá acesso ao vasto solar onde se velam e revelam os vínculos
entre escrita e corpo na obra do cubano. De fato, dificilmente encontraremos
outro texto de Sarduy que ilustre com maior força o papel destacadíssimo que
este paralelo desempenhou em sua imaginação e em sua reflexão. Com uma graciosidade
única, a autobiografia das cicatrizes subverte e parodia, entre chistes e
fatos, nossa diversa tradição fisionomista, o velho hábito mental que nos leva
a descobrir no aspecto físico de um indivíduo um claro reflexo de suas
qualidades morais e que constitui assim a pessoa de dentro para fora, como o
reflexo previsível do espírito na matéria. Sarduy muda as regras do jogo em seu
texto e se forja uma identidade de fora para dentro, mas forja uma
interioridade que é já puro corpo e onde a superfície da pele se converteu no
fundo a memória.
Não seria difícil citar outros
exemplos desse afã de reivindicar e de reinventar o corpo, pois basta percorrer
seus romances, os poemas e os ensaios do autor, para comprovar que foi, sem
dúvida, uma das suas grandes paixões. Ainda mais, foi o eixo constante de sua
crítica às hierarquias e dicotomias categoriais de nossa já muito desgastada
herança dualista que distingue entre natureza e cultura, entre fundo e forma,
entre aparência e verdade, e, também entre corpo e psique.
Assim, os numerosos travestis que
circulam por suas páginas num heterogêneo desfile cosmético o permitem brincar
com o equivocado jogo das identidades sexuais e analisar a construção social do
corpo como fetiche, a elaboração de uma imagem que nossa cultura tende a
reificar, naturalizando-a, para negar a arbitrariedade de seus signos. Num
sentido análogo, seu interesse na arte da tatuagem, na pintura corporal de Holgerson
e na body art não apenas o levam a explorar as possibilidades do corpo
como suporte artístico mas a elevação própria desse suporte à condição de obra
em seu mais puro caráter de matéria livre que exibe e cuja exposição marca um
evento: a presença do corpo como retorno do reprimido na consciência moderna.
O erotismo, por sua vez, abre
outros itinerários que, nos romances e na poesia de Sarduy, desembocam numa
celebração dos mistérios gozosos da encarnação. Seguindo Sade, Bataille e
Klossowski no despertar de Tel Quel, o cubano concebe o prazer como uma
força transgressiva que, dissolvendo as antinomias entre interior e exterior,
entre sujeito e objeto, engendra uma plenitude nova: a de um corpo em majestade
que não é apenas vetor de outros conteúdos mas fim em si mesmo, um corpo livre
como a eleição amorosa a autotélica com o desejo.
Com ele, não podia faltar,
evidentemente, seu contrário: o corpo para a morte. A crítica sobre a obra de
Sarduy se ocupou muito pouco do tema, mas o certo é que ao longo do seu
universo literário, desde o Cristo de madeira de seu pai em De donde son los
cantantes até às confissões comoventes de Pássaros da praia, vemos
se suceder as pinturas negras de um barroco funerário, que representam a
enfermidade, a decrepitude e a decomposição, e nos recordam assim que o corpo é
também nosso limite ou, como dizia o próprio Sarduy, “um reservado hieróglifo
da morte”.
Não acredito que esta concisa
enumeração esgote o prolixo catálogo dos motivos do corpo e da escrita nos seus
textos. Há mais e melhores coisas nessas páginas que mereceriam mais e melhores
leituras. É possível entrever, sem dúvida, outro nível de relação que
corresponderia melhor ao campo do imaginário e a uma espécie de fantasia
criativa que circunda a obra de Sarduy. Não é um segredo que o título de seu
primeiro romance, Gestos, é uma homenagem a Franz Kline e a sua action
painting.
Desde cedo, no começo dos anos
sessenta, o cubano descobre a obra desse expressionista abstrato e fica
totalmente fascinado com as estranhas danças que o artista executa sobre os
lenços enquanto pinta. Gestos trata de reproduzir o mesmo protocolo
criativo e, como diz e repete então seu autor, se concebe ante todo como action
writing, o romance da escrita gestual. O título da tradução francesa de De
donde son los cantantes, Ecrit en dansat — literalmente, “escrita
dançante” —, celebra novamente Kline e prolonga a ideia de uma escrita que
seria como efeito de sua gênese, uma escrita que exibiria a impressão corporal
de sua realização.
Desafortunadamente, sabemos que,
na literatura de nosso âmbito cultural, a distância que impõe a linguagem entre
o escritor e a página reduz as possibilidades de concretizar tais sonhos. No
Ocidente, se fala do espírito e da letra, não da letra e do corpo. É verdade que
nossa muito antiga tradição retórica reconhece desde sempre a importância da
linguagem gestual e a da entonação como meios corporais que permitem
intensificar os discursos e modular o sentido. Mas Sarduy sonha com algo mais:
com uma escrita translúcida que, à maneira de um sudário, conservaria as formas
do corpo que a produziu. Sim, Sarduy gostaria, textualmente de escrever
dançando e deixar a marca dos seus movimentos como uma espécie de verbo
encarnado.
A meu ver, sua ambição mais íntima
não foi, pois, escrever ou pintar sobre um corpo, como disse, mas escrever e
pintar com o corpo; e sua maior fantasia não foi imaginar o corpo como
lenço ou a página mas como pincel e pena. Daí sua aproximação à arte da
caligrafia oriental, a essa soma de disciplinas religiosas, plásticas e
literárias que faz da execução um exercício físico, uma autêntica performance,
e vê no pincel ou na espátula uma articulação suplementar do braço do artista.
Não é improvável que exista também alguma influência mallarmeana nesta visão de
uma escrita sem instrumentos que uniria o escritor e a sua literatura num todo
análogo ao que formam o bailarino e a dança. Mas o essencial não está aí.
No meu sentir, o que realmente
conta é que Sarduy chegou a pensar alguma vez sua obra como um ato de presença
que nos levaria a descobrir seus gestos em cada traço de sua pintura e nos
faria reconhecer sua voz em cada linha de seus textos. Não acredito que hoje
nos pedisse outra coisa. Se sua mais secreta vocação foi essa entrega apaixonada
que o conduziu a identificar a linguagem e o corpo, não devemos menos que uma
leitura atenta de tudo aquilo que, nos seus quadros e nos seus livros, ficou incorporado,
a tudo aquilo que nos legou inscrito como corpo.
* Este texto é a tradução de “El
cuerpo escrito de Severo Sarday: la pasión del cuerpo, la pasión de la
escritura”, publicado em Letras Libres.
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