O Ateneu, de Raul Pompeia
Por Pedro Fernandes
Há romances que sempre nos causam
espanto quando reencontramos com eles tantos anos depois de sua publicação. A
natureza desse sentimento é variada, mas parece que crescem por sua própria
conta. No caso específico de O Ateneu, de Raul Pompeia, cujo desfecho de
sua publicação coincide, qual libertação, com o dia de assinatura da Lei Áurea ― a
13 de maio de 1888 se publicava o penúltimo capítulo no folhetim da Gazeta
de notícias ― é o vigor da linguagem capaz de transformar o estatismo da
descrição em movimento. Esse tratamento faz do romance um livro à parte entre
as criações do seu tempo e, só apenas por convenção historiográfica, tratamos
de filiá-lo ao realismo quando o pensávamos melhor inscrito num naturalismo, num
simbolismo ou mesmo armado com os ventos do pré-modernismo. Resulta comum essas
indeterminações quando estamos diante de uma obra-prima.
Outro aspecto importante do livro que
ganhou essa forma em meados do mesmo ano de quando apareceu como folhetim é sua
forma sugestiva: começamos por acreditar, ao assistir o pequeno Sérgio admirado
ante a vida nova no colégio interno, que encontraremos um registro de
transformação formativa do menino, ou seja, a imagem passada que resultou no
Sérgio que mais tarde a rememora. A imagem é dada. Mas não sabemos o que foi
feito dela no adulto que se tornou. Da certeza inicial, chegamos ao final, com
apenas parte dela. A narrativa é interrompida inesperadamente, como se por
fastio de quem conta, e nada mais sabemos, uma vez que o presente do narrador
permanece continuamente à sombra.
Mas, nada é gratuito. A
desmistificação de que estamos diante de uma narrativa de formação é dada logo
à entrada do romance, no reiterativo conselho do pai do protagonista e narrador
de que no Ateneu, onde o filho é entregue para sua formação escolar primária,
escondia-se o mundo, e continuamente quando vemos vigorar o sentido oposto da
ideia. E está revelada indiretamente numa das últimas palestras do Dr. Cláudio,
o presidente do grêmio, na qual discute sobre o papel do internato na formação
dos alunos: “A educação não faz alma: exercita-as. E o exercício moral não vem
das belas palavras de virtude, mas do atrito com as circunstâncias”, diz ele.
Quer dizer, O Ateneu quer oferecer
um relato acerca desse embate assumido entre o que o indivíduo traz de inato e
o meio. Agora, se a princípio podemos pensar num Raul Pompeia completamente eivado
das teses naturalistas de seu tempo, isso é questionável: o que se mostra, mais
que o embate, é como este mundo se integra para a revelação do interior do
indivíduo. Ou seja, prevalece muito mais uma consciência reflexiva sobre a atitude
do mundo que as interferências deste numa determinação da natureza do infante.
O que acompanhamos numa relação
possível entre o Sérgio que deixa para trás a vida de conforto e proteção do
ambiente familiar com os cachinhos deitados fora pelo barbeiro e o Sérgio de dois
anos depois pasmado diante do inesperado episódio trágico que determinará outra
mudança no seu curso educacional é a descoberta de um mundo cujo estamento é
opressivo, brutal e maligno. Nesse ínterim, o que o narrador nos oferece pelo
trabalho de revisitação do tempo de formação dessa consciência e a explícita denúncia
sobre os modelos pedagógicos vigentes é o dilema do homem lançado no mundo. Encontramos
aqui o limiar do tratamento ficcional em que a tessitura do romance se constitui
pelos fios da crônica; assim, a verdade do narrado se confunde, envolve o
tratamento histórico.
Há uma variedade de elementos que
sinalizam ser esta obra uma metonímia da sociedade brasileira de então,
estabelecida entre a decadência do Segundo Império e os folguedos da República:
os vários estratos do internato e as relações estabelecidas entre eles; a galeria
de tipos construída pela visada panorâmica do narrador denunciando os vários
estamentos sociais definidos pela condição capital dos homens; a revelação sobre
as obsessões dessa variedade de personas, sobretudo o perfil onipresente
do proprietário do Ateneu, que atende pelo sugestivo nome de Aristarco; a demonstração
dos vícios e corrupções; a pompa e circunstância à presença de uma
desinteressada corte; a ruína do Ateneu; tudo isso, são algumas das propriedades
analisáveis numa compreensão do universo do internato enquanto lente pela qual
o que aí se observa passa-se dentro e fora de seus muros:
“Cada rosto amável daquela infância
era a máscara de uma falsidade, o prospecto de uma traição. Vestia-se ali de
pureza a malícia corruptora, a ambição grosseira, a intriga, a bajulação, a
covardia, a inveja, a sensualidade brejeira das caricaturas eróticas, a desconfiança
selvagem da incapacidade, a emulação deprimida do despeito, da impotência, o
colégio, barbaria de humanidade incipiente, sob fetichismo do Mestre,
confederação de instintos em evidência, paixões, fraquezas, vergonhas, que a
sociedade exagera e complica em proporção de escala, respeitando o tipo
embrionário, caracterizando a hora presente, tão desagradável para nós, que só
vemos azul o passado, porque é ilusão e distância.”
Mas, logo vemos que, não é de
transposição ou correlação pura e simples de formas o que encontramos no
romance. Amplia-se, pela universalidade que alcança. E, outra vez, parece ser
necessário recorrer àquela mesma passagem sobre o discurso de Dr. Cláudio,
quando assim observa: “Não é o internato que faz a sociedade; o internato a
reflete. A corrupção que ali viceja, vai de fora. Os caracteres que ali
triunfam, trazem ao entrar o passaporte do sucesso, como os que se perdem, a
marca da condenação.” Se por espelhamento, a imagem refletida não é nem o original
nem melhor que ele. Mas, o que aí se reflete é certo questionamento acerca da
compreensão naturalista do meio enquanto parte determinante para a formação dos
indivíduos ― sem desprezar a outra parte, a que, como observamos, lhe é inata. É por isso que o fim trágico do interno Franco
é narrado en passant, feito episódio enterrado pelo episódio seguinte,
da pompa e celebração das condecorações. Há, por toda parte algo que se esconde
ou apenas entrevisto enquanto a normalidade das coisas é mantida com grande
esforço.
A fala de Dr. Cláudio parece
estabelecer uma das diretrizes de leitura do romance: a educação não é um bem que
se constrói no internato, mas aí se aperfeiçoa ― isso já dissemos; e os
sucessos ou não dos estudantes se determinam pelo que trazem. Quer dizer, no
plano pedagógico, somos confrontados com uma verdade que, tantos séculos
depois, ainda não foi tornada prática entre nós: a educação não é um produto determinado
exclusivamente pelo aparelho escolar, o que, se não atesta toda a invalidez dos
métodos carcerários praticados pelas escolas de então, revela sua ineficiência
no resultado final, ainda mais quando se sabe que esse rigor é
continuamente corrompido por razões diversas: da financeira às de empatia,
sendo que, quase sempre, as duas estão aliadas e contribuem para a manutenção
do aparente.
Agora há um riso contido que envolve
toda a narração e muitas vezes se expande. E é aqui que se manifesta a
singularidade da linguagem do narrador de Raul Pompeia. À medida que se dá
conta de sua total solidão, da crueldade do mundo, Sérgio passa a estabelecer
vínculos que se somam aos seus interesses particulares; aprenderá que precisa
servir a dois deuses, o que dita regras e o que as negam. Indiretamente, o que se
estabelece é um cinismo ― acidental nos primeiros momentos e consciente em
muitos outros; mais tarde esse comportamento se torna tão vincadamente nele integrado
que deixa de ser visível mesmo para os que lhe assistem. Entretanto, se torna
inegável quando nos confrontamos com a dicção da narração: “O meio,
filosofemos, é um ouriço invertido: em vez de explosão divergente dos dardos ―
uma convergência de pontas ao redor. Através dos embaraços pungentes cumpre
descobrir o meato de passagem, ou aceitar a luta desigual da epiderme contra as
puas. Em geral, prefere-se ao meato.”
É embebido de todo barroquismo da
retórica que se confunde como sinonímia do homem de importância, o intelectual
letrado, que o narrador se equilibra na construção do fio narrativo que dá
forma ao romance. No início se mostra encantado pelo enovelamento da linguagem
e no fim se ri desses exercícios gratuitos praticados pelos oradores que passam
pelo Ateneu, mas, por uma razão vincadamente cínica se mostra discípulo da
mesma prática. Ora, este limiar do discurso (o narrador que ri de um modo
discursivo, mas se utiliza do mesmo estatuto) nos leva a compreender O
Ateneu como um romance construído em clave irônica. Estamos diante de um
narrador que compreende a linguagem como instrumento de poder e ― se capaz de
apontar as falhas do mundo ― também recriadora.
É por esse princípio que encontramos
os vários momentos que atestam a grandiosidade da linguagem neste romance. Ela
não apenas recria o universo rememorado, nele se infiltra e reconstrói
por vezes parcimoniosamente como um desenhista que acrescenta detalhes ao quadro
pronto ou de maneira atabalhoada como se quisesse desconstruir a pintura para
colocar outra no lugar, mais autêntica. Observemos essas duas passagens colhidas
aleatoriamente, mas parte de um mesmo episódio da narrativa:
“Passeio noturno de alegria sem nome.
As árvores beiravam a estrada de muros de sombra num e noutro ponto rendada de
frestas para o céu límpido. No caminho, trevas de túnel e a agitação confusa
das roupas, malhada a esmo de placas de luar brando ― réptil imenso de cinza e
leite em vagarosa subida. Que sonho de cócegas experimentaria o colosso, na
dormência de pedra que o prostrava ainda, espezinhado pela invasão! Subíamos.
Pelas abertas do arvoredo devassávamos abismos; ao fundo, a iluminação pública
por enfiadas, como rosários de ouro sobre veludo negro.”
“O espaço aparecia mais claro sobre a
renda das ramas; as últimas estrelas por entre as folhas emurcheciam como
jasmins, e fechavam-se. Aristarco deu ordens à banda. A subida recomeçou em
festa, um dobrado triunfal rasgou o silêncio das montanhas espavorindo a noite;
o bombo de Rômulo trovejou robusto, com imensa admiração da passarada que o
espiava metendo o bico à beira dos ninhos, que o cobiçava talvez para genro,
aturdindo os ecos com um repente brutal de alvorada.”
As descrições se referem à subida ao
Corcovado ainda no escuro do dia, numa das vivências escoteiras de alunos e
professores do Ateneu. O grupo, entrevisto como um “réptil imenso de cinza e
leite em vagarosa subida”, para para o lanche e breve descanso e em seguida retoma
o itinerário que finda com a chegada ao topo do morro e o raiar do dia. É
singular como o narrador consegue transmutar situações em imagens e fundir
várias delas numa só plano de descrição: a passagem do tempo, a subida ao morro
e o estado de espírito seu e dos de sua equipe. No excerto destacado não vislumbramos
o acento irônico da linguagem, mas a descrição, longe de nos apresentar uma
imagem estática, nos coloca diante de um vistoso movimento marcado pelas infiltrações
poéticas ― noutras ocasiões é a farta numeração e o desfronteiriço temporal
o que resulta nos sentidos suscitados na passagem acima. À medida que somos apresentados
ao acontecimento, somos levados a partilhar dos sentidos nele envolvidos ou
dele derivados pela perspectiva fabulada pela memória do narrador. Isso
significa que meio e indivíduo se interpenetram e não são unidades distintas
como parecia acreditar os criadores do tempo de Raul Pompeia.
Como observa Lêdo Ivo, no seu
excelente O universo poético de Raul Pompeia (Editora Unicamp, 2013), ensaio
que conduz o romance ora lido ao lugar definitivo da literatura brasileira ao
compreendê-lo enquanto narrativa que oferece, pela primeira vez nesta cena, a
memória das sensações, este romance “proclama, às escâncaras, a
hostilidade de Pompeia aos usos estéticos fundamentados na cópia servil da
natureza. Ele não copiou a natureza nem os homens, como o queriam os
naturalistas, e sim os reinventou, com a sua sensibilidade sismográfica que
sabia captar as impressões mais fugazes, criando um deslumbrante mundo verbal,
num desafio ao mundo natural.”
Outro aspecto que as descrições oferecidas
por esse minucioso narrador e que conformam esse mundo à parte repousa na
dimensão visual alcançada a partir do estrato verbal. Quando organizou os
folhetos para publicação em livro, o próprio escritor, um arguto desenhador, se
encarregou de construir um conjunto variado de imagens que, como bem observou
José Paulo Paes, resulta impossível de ser desgarrado do texto escrito. Em alguns
casos é um rico quadro panorâmico sobre o que se narra e, de repente, solta-se
em forma viva; noutros, é a revelação do escultor de perfis com palavras. A
esse respeito, vale citar o registro do interno Ribas dado pelo narrador e a
relação deste com o desenho da personagem realizado pelo escritor. Dele, o
narrador observa primeiro aquilo que o magoa no período de depressão
contemplativa por que passa, “não tinha o ar angélico do Ribas, não cantava
tão bem como ele.”
“Ribas, quinze anos, era feio, magro,
linfático. Boca sem lábios, de velha carpideira, desenhada em angústia ― a
súplica feita boca, a prece perene rasgada em beiços sobre dentes; o queixo fugia-lhe
pelo rosto, infinitamente, como uma gota de cera pelo fuste de um círio...”
É indiscernível o que veio primeiro, se
o retrato desenhado ou o escrito. O cotejo das duas imagens serve ainda para
corroborar com essa capacidade inusual imaginativo-criativa de Raul Pompeia que
o coloca em destaque na literatura brasileira de seu tempo. Trata-se de uma
característica nem sempre reparada pelos leitores deste que ficou sendo o único
romance completo desse escritor visto que o imperativo das estéticas literárias
contribuiu para ofuscar as especificidades do objeto literário em questão.
Nesse sentido, o tempo ― “a ocasião passageira dos fatos”, “o funeral para
sempre das horas”, o que o faz ser em nada justo conosco, como parece apontar a
direção da narrativa de O Ateneu ― é quase sempre justo com a literatura.
A prova é que só a partir do século seguinte conseguimos compreender alguns
matizes de um criador afoito, mas perfeitamente ajustado com os tratamentos
criativos que participavam do epicentro formativo da história literária ocidental.
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