Notas para uma definição do leitor ideal, de Alberto Manguel
Por Pedro Fernandes
Na nota em modo de preâmbulo a estas
Notas para uma definição do leitor ideal, Alberto Manguel diz: “Cada
livro, cada história pode ser, assim como para Sherazade, uma estratégia contra
a morte; pode ser também um projeto para uma vida melhor, como Dante imaginou,
ou pelo menos um pouco mais justa, como sonhou D. Quixote. Acho que é apenas
isso, com ligeiras variações, o que venho repetindo nos meus textos desde o
princípio, há muito tempo.” Esses instantes de alumbramento se fazem
recorrentes ao longo dos ensaios reunidos neste livro — prefiguram o que
poderíamos designar como uma segunda voz, a de um leitor, atento à tarefa de
inferir sobre o que assevera o ensaísta, muitas vezes, assumindo-se parte
própria da constatação. Esta é uma maneira interessante de demonstrar que a
ensaística, pelo menos nesse caso, se organiza sob um duplo par de olhos, o do escritor
e o do leitor; é a transferência para o convívio interno do tecido textual da
nota colocada à margem.
Este livro assume um tom espelhar
e sombrio: o que se mira — jamais em gesto narcisista e sempre em maneira
questionadora — é a reconhecida erudição do seu autor e o que se projeta é uma
interrogação acerca do seu papel no início de uma era constatada por ele
próprio como a “da descrença na palavra”. Se fosse possível sintetizar o
espírito destas Notas, poderíamos nos valer de algumas inquietações recorrentes
a todos os funcionários da palavra: para quê literatura em tempos de
indigência, ou, qual a responsabilidade do leitor (e por extensão da
literatura) em circunstâncias de emergência ou quando é a ignorância que se faz
moda e imperativo. A primeira leitura nos revela um ensaísta soturno, entre o decesso
de um tempo para outro: um silencioso crepúsculo de era e a conturbada, no
sentido aterrador, chegada de outra.
A cartografia desse trânsito não
se deixa contaminar pelo pessimismo de um apegado ao passado — que infantil ou
romanticamente acredita que no pó de algures se contém toda uma autenticidade
perdida; ou por uma crença excessiva no contemporâneo como o tempo da utopia,
quando tudo é de alguma maneira melhor que o passado. Alberto Manguel é um
senhor cosmopolita, habitante de uma diversa geografia imaginária e física, se
é possível distinguir as fronteiras de domínio dessas duas territorialidades. Esse
convívio o favorece a reparar o mundo não como o que orbita no seu entorno mas
enquanto parte numa ordem feita de incontáveis órbitas, cada uma cobrando-lhe
uma atitude interpretativa. Não sobram espaços para o intelectual presunçoso, que
advoga o mundo em causa própria. É este um sujeito bifronte e interrogativo
para os dois lados que apontam a dupla face.
Há uma passagem do ensaio “A
leitura como ato fundador” que justifica o que afirmamos. Neste texto Alberto
Manguel revisita a história de chegada do conquistador espanhol Pedro de
Mendoza na fundação da Argentina. Dos apetrechos do colonizador, chama a
atenção do ensaísta, a biblioteca que, apesar de pequena, apela para uma
variedade de literaturas, atestando tanto a afirmação de uma natureza
intelectual como uma certa abertura para a multiculturalidade do seu
proprietário. Em contraponto, da novela de Cervantes, D. Quixote. Também um intelectual
que se faz conquistador, quando os livros lhe são censurados. Enquanto esses
dois homens se igualam, também se posicionam, paradoxalmente, em pontos
diametralmente opostos. Sabe-se da tragédia da colonização: a imposição de um
ponto de vista unilateral, a exploração predatória da natureza, a matança
indiscriminada e a escravidão dos povos originários, as censuras, as
injustiças, tudo isso que constitui matéria de luta do cavaleiro da triste figura.
A leitura sozinha, parece, não os
salva; “se trata de aprender como agir com respeito e estima pelo outro e como
buscar a justiça num mundo persistentemente injusto”, afirma o ensaísta a certa
altura. A atitude do D. Quixote, acrescentamos, constitui o que poderíamos
denominar de uma ética da leitura e esta é reexaminada e praticada por Alberto
Manguel quando busca acender qualquer chama de revolucionário que ainda sobre no
interior dos sujeitos não totalmente integrados às linhas dos modelos de
domínio, centrados no empobrecimento da experiência, na negação dos saberes e
afirmação do disparate, dos reducionismos e superficialismos — características
como sabemos recorrentes no contemporâneo.
Reiteradas vezes, o autor das Notas
observa sobre o papel do leitor na engrenagem social e embora reconheça uma
impossibilidade para retomada do engajamento dominante noutras épocas — afinal,
por mais que queiramos alinhar os contextos vigentes aos do passado, não são
estes mas outros os contextos — entende que é tarefa nossa a participação nas
dinâmicas sociais do nosso tempo e a leitura deve ser o instrumento que nos
permita acessar novas possibilidades do coletivo sem esquecer os valores
humanistas que nos trouxeram até aqui.
Quer dizer, o leitor ideal,
não é formado apenas por essa paixão inexplicável que trazemos pelos livros, pelo
conhecimento e a necessária erudição que não nos integra totalmente à tolice ou
à imbecilidade. O leitor ideal também não é o educado para reproduzir
fixamente as mesmas práticas obsoletas, estas que ao invés de favorecer um
mundo habitável amplia as fronteiras da sua aridez. O último ensaio e é o mesmo
que intitula este livro de Alberto Manguel provoca, em modo de síntese,
especificamente nesse sentido: o lugar do leitor é o improvável, o oposto daquele
que julgamos nos encontrar. Das enumerações suas e alheias, vale citar uma,
como efeito de encaminhar este texto para o seu fim; diz: “Pinochet, que
proibiu D. Quixote por pensar que incitava a desobediência civil, foi o
leitor ideal desse livro.”
Ora, o que se reafirma nesse
quase-aforismo é a incitação de uma postura ativa do leitor; inclui-se nesta, a
necessidade de ouvir uns aos outros, talvez o mais caro numa era em que todos
podem dizer tudo mas poucos sabem o que dizem. O leitor ideal é o que nunca
está conformado com o mundo, porque este nunca alcançou — nem alcançará — a justa
medida. Há nisso certa verdade cara a esses dias muito nublados: assim como não
somos os melhores em relação aos nossos antepassados também não estamos, nem
somos piores. Acreditar nisso é não uma alternativa de ilusão, mas se deixar
levar por isso pode ser o primeiro passo para o retorno à barbárie. E é para
ela que todos os sistemas de mando e poder que vigoram nos empurram, porque diante da barbárie, tudo é
justificável, inclusive a valia dos sistemas obsoletos.
Nesse sentido, isso que poderíamos
designar como uma profissão-de-fé de Alberto Manguel pelos livros não está
apartada do mundo. E é sobre isso que nos alerta. Os livros sozinhos nada podem. Mas os leitores, sim. Por essa vivência se verifica a
possibilidade de conseguirmos reabrir novos e mais seguros caminhos para nossa
ordem individual e coletiva, itinerários que passam distante dos valores
dominantes oferecidos gratuitamente pelo imperativo do controle capital, este que
continuamente tem nos reduzido ao estatuto de coisas — e no qual as redes
sociais têm se assumido como a coroação definitiva dessa condição.
Quer dizer, os valores empurrados pela
sociedade do consumo ainda são os mesmos contra os quais há muito nos debatemos
mas agora nos alcança com uma violência mais sutil e por isso mesmo mais perigosa.
O que parece coerente e necessário aos leitores desse novo tempo não é a ingênua
atitude da negação ou do cancelamento — essa é saída mais frágil porque nos
transforma pelas mesmas amarras dos enredos que queremos desconstruir;
precisamos encarar os monstros que nós próprios criamos. E é na literatura ainda
o único espaço possível para tanto. Sua maior importância para os tempos de arrogância
continua a ser a de nos fazer compreender nossas discrepâncias, para do seu
convívio encontrar alguma saída sustentável. Então, leitor, é preciso deixar de
lado a culpa que nos é imposta sobre a ineficiência dos nossos gestos. É o primeiro passo de ação. Quem,
se não nós, mesmo que estropiados, desencantados e incapacitados, fará algo por nós? Os que
nos ignoram e nos escravizam, esses, nunca foram, nem serão.
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