Manuelito: para além de um mestre da fotografia
Por Márcio de Lima Dantas
Oriundo do Ceará, veio residir em
Mossoró, permanecendo e trabalhando até o final de sua vida. Suas fotografias
deixavam entrever um indivíduo ancho nos limites estabelecidos pela vida. A
maneira como gostaria que fosse representado pela posteridade o conduziu a se
fazer fotografar com seus atributos: o material fotográfico parecia relacionar
o sentido que deu à vida, ou seja, o predomínio do sentido visão sobre os
demais sentidos, plasmando-se no ato de produzir retratos do seu entorno. Eis o
sal que neutraliza o insosso dos dias. Não trabalhava por obrigação, mas por
uma necessidade interior de registrar seu derredor, opondo-se ao movimento de
Cronos, que faz e desfaz.
Ao carbonizar tempo e espaço, fez
transcender os habitantes da pólis e sua paisagem, bem como detalhes e objetos
prosaicos que passam impunes ao espectador pouco atento ao que o circunda.
Manuelito estancava o tempo, não parece inconsciente, na medida em que mudou de
assinatura, nas fotos, ao longo da sua atividade de fotógrafo. Também fazia
registrar, em lápis grafite, o nome da pessoa ou o lugar, no verso da foto,
esmero registrando o que o sopro inexorável e violento do tempo, em seu
despotismo, outorga sobre os seres e a paisagem.
De estatura baixa, elegantemente
vestido em linho, como era feitio no seu tempo, autorrepresentava-se como indivíduo
que lançava à posteridade sua vasta produção, nada aguardando de resposta, como
sucede com todo grande artista que se sente grávido de futuro. O presente é
onde os olhos contemplam e registram, a labuta na qual espanta o passar dos
dias e sopra para longe o ócio não criativo. Com efeito, há uma sobriedade com
laivos de indiferença em tudo o que registrou no papel.
Vamos às assinaturas? Após a
instalação do Ateliê O Manuelito, assinava as fotos, em baixo-relevo, como
espécie de carimbo, em maiúsculas, como propriedade de um estabelecimento
comercial: O MANUELITO, caracterizando ausência de uma personalidade. Em
seguida, vem Munuelito, em letra cursiva, já definindo-se uma autoria.
Finalmente, Manuelito, em letra cursiva e visivelmente dotado de uma
grafia que provavelmente estava relacionada com sua letra. Eis o fotógrafo, com
sua dignidade. Caminho sem volta. Entrou na vera vereda do que sempre quis ser:
autoral, dizendo-se de si um artista, um mestre da fotografia.
Conquanto envelhecido, fez-se
fotografar com suas companheiras de uma vida toda: o material fotográfico que
trespassava seu corpo inteiro, sugerindo que imprimira à sua existência um
sentido, uma justificativa, e se a existência precede a essência (Sartre),
escolheu por meio do talento, que ninguém ousa duvidar, contemplar o mundo dos
humanos, com sua diversidade, imprimindo uma mundividência desprovida de
caricaturas ou preconceitos de classes. Havia uma ordem interior que o mandava
registrar o que se encontrava estático ou dinâmico no seu entorno de 360°.
Ousara romper com a etiqueta das classes dominantes e com as aparências e
hipocrisia da classe média.
Há uma coisa peculiar à fotografia:
é o registro de uma contingência, algo que não se repetirá na realidade,
registro de um instante, algo que só aconteceu uma vez. O fotógrafo, num gesto
amoroso, triunfa sobre o tempo, imprime nos álbuns uma data, coleciona as
diversas fases de um indivíduo. Sabe da opulenta alegria quando se apropriou de
um momento feliz, de um instante oportuno, o que os gregos chamavam de Kairós. E depois de muito tempo, lá onde o longe
folga seu orgulho e sua submissão paciente de habitar o âmbito passageiro do
presente, aqueles que cultuam a deusa Mnemósine, os retratos permitirão o
assomo do que fora, num ato assemelhado a uma prática religiosa, preso ao
silêncio plácido da contingência lapidificada.
Tudo interessou a Manuelito.
Retratos de crianças na primeira comunhão, de formatura, concentrações
políticas, inaugurações, enchentes do rio Mossoró, prédios, escolas, ruas, mas
também o cotidiano dos excluídos, vivendo à margem do rio que banha a cidade.
Conferindo à sua representação, um caráter etnográfico, histórico, sociológico,
semiótico, sem nunca perder de vista o inquirir do temperamento quando dos
retratos individualizados em estúdio. Tenho uma vaga impressão que levava tempo
para captar o momento no qual alguém num lapso de segundos retirava a máscara
demandada pelo rito do cotidiano.
Isso mesmo. Conseguia, num secreto
prazer, a apreensão do instante no qual uma psicologia estampa seu contorno,
por meio do olhar e da curva dos lábios, arrefecendo a pose, dando a conhecer
um lampejo de verdade interna que talvez em poucos segundos tornará à máscara
exigida pela vida em sociedade. Sem se dar conta que a objetiva, e quem estava
por trás, já captara o desenho de uma autenticidade.
Interior e exterior. Nada ficou
imune (impune?). Cumpriu uma ordem que assomava das entranhas. Se havia os
retratos como meio de vida, também houve as belas fotos, com seu claro escuro
exato, dos carnaubais ao redor da cidade, das salinas. Desse modo, inventariou e documentou a cidade
a qual veio habitar, sabendo da impermanência das coisas. Havia uma espécie de
pressa em registrar (mas não havia quando de esperar o bom momento) a soberania
do instante que se esvai. Manuelito parecia ter muito medo da morte. Manuelito
quis insculpir seu nome na eternidade. Manuelito logrou êxito: deu sentido à
sua vida, desafiando a morte, através de retratos detentores de uma
sensibilidade universal.
Um certo retrato colorido, já
envelhecido, com seus objetos, proporciona uma leitura de alguém que sente
que cumpriu uma forma de vida que estava associada a seu temperamento. Parece
contente, com um semblante estoico. Embora não sorria, como, via de regra,
sucede com os retratos de idosos. Contudo, o brilho opaco dos olhos e a curva
da boca desenham uma fisionomia de quem nada mais espera, pois cumpriu o dever
que se autonomeou com mestria, curiosidade, e involuntariamente registrou com propriedade
plena (posse, uso, gozo e disposição) uma cidade, seu cotidiano e seus
habitantes.
Ligações a esta post:
>>> O leitor encontra aqui um catálogo organizado por Márcio de Lima Dantas com fotografias de Manuelito.
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