“Mais uma madalena, por favor!”
Por Lourenço Duarte
Revisitar o passado sempre pareceu
uma das grandes obsessões poéticas e literárias de sempre. Disputando o pódio
com o amor, ou Amor, e a morte, as lembranças distantes assumem-se como um
forte motor da poiesis, da criação. E é ao debruçarmo-nos um pouco mais
sobre o tema que vemos surgirem certas premissas, por vezes opostas, acerca
deste movimento de retorno: o ser que relembra em nada difere do conteúdo
relembrado, do sujeito ido?; será impossível à pessoa atual transportar a sua
consciência pelas coordenadas do tempo até ao instante remoto?; finda a
memória, permaneço o mesmo, ou trago já no bolso da existência aquele que
recordei? Estas seriam algumas das questões pertinentes a colocar.
A primeira ideia é bastante
sedutora. De facto, assim como a crença de não estarmos a sonhar, quando o
estamos, também as memórias nos fazem acreditar que nada é, naquele momento,
mais do que aquilo que é. A velha questão cartesiana. Assim sendo, quem somos
senão aquilo que estamos a pensar ser? Haverá razão para exilar as recordações
rumo ao reino do cogito, do pensamento, e lá mantê-las prisioneiras? Proust
já parecia tender para a resolução deste enigma, ao banhar de poder as famosas
madalenas que, quando provadas, permitem à personagem a viagem acima dita.
Talvez seja seguro afirmar a metamorfose ôntica como consequência da recordação
sofrida.
Mas nós, os seres humanos, somos,
por excelência, eternas transformações. Da criança com medo da sombra dos ramos
projetados na janela, evoluímos para pessoas mais maduras, pessoas com outras
questões metafísicas. Não querendo desvalorizar a sombra dos ramos projetados
na janela — o que até parece terrivelmente assustador! — poderíamos até achar,
hoje, alguma graça à infantilidade de tais receios. Mas eles existiram! Esses
episódios pertencem ao mundo do factivo, do real, assim como a certeza de que o
sol nascerá. Logo, são fenómenos verdadeiros a que podemos aceder sem a
necessidade da imaginação, quase como quem consulta um compêndio de leis
antigas.
Só que é exatamente aqui que a
trama se adensa, no deformar dos factos pela imaginação. Assim como o livro
que, lido há uns anos, nos dizia umas coisas, e hoje parece dizer outras,
também as memórias se assumem como uma espécie de plasticina à mercê da pessoa
atual. Daqui apenas decorrerá que lembrar nunca poderá ser sinónimo de reviver,
mas sim de insinuar, de sugerir. Entre a coisa lembrada e a coisa acontecida,
há alguém a manipular tudo pela via da perceção. Se me pico numa rosa,
automaticamente altero a memória de todas as rosas que vi, cheirei ou pensei,
nem que apenas de forma ligeira. A memória afigura-se, pois, como um eterno
espelho, um quadro ao qual se acrescentam novas versões por cima das
anteriores. O estado epistémico em que me encontro possui efeitos retroativos
absolutamente avassaladores!
E esta ideia, para uns triste,
poderá também ser belíssima para outros, ao comprovar o pensamento hegeliano de
que nos encontramos em perpétua síntese, antítese e tese. Ousamos, por defeito
ou virtude, bater sempre as asas, vagueando pelos ponteiros do tempo rumo a
lado algum. E isto, senhoras e senhores, é magistral!
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