Linguagem, poesia e exílio em Joseph Brodsky: esboço para um ensaio
Por João Arthur Macieira
Há uma entrevista realizada na
televisão holandesa e disponibilizada no YouTube na qual Joseph Brodsky comenta
o momento quando foi avisado pelo pai da morte de sua mãe.
Esse episódio também foi narrado em “A Room and a Half”, ensaio autobiográfico
no qual o poeta investiga, entre muitas coisas, a relevância que tiveram seus
pais e a literatura na sua formação (não apenas como escritor, mas como sujeito
no mundo [BRODSKY, 1986]). Talvez justamente pela superficialidade do que
desejo ressaltar aqui, certas características que fogem a(o próprio Brodsky
provavelmente discordaria dessa direção). Quer dizer aqui que a forma como o
poeta pronuncia as palavras em inglês — língua na qual aquela entrevista foi
conduzida — podem dizer mais do que conteúdo nelas transmitido. A entonação
geral é do tipo britânica, tragedie por exemplo; outras, como more,
soam completamente americanizadas. Rather, contudo, parece saída de um
personagem russo num filme americano. Na fala tranquila, acadêmica (Brodsky era
professor de literatura nos EUA) do poeta, tudo indica um deslocamento prévio,
que pode fazer seu ouvinte se perguntar “de onde veio esse senhor? Por onde
andou antes de chegar até aqui para falar desse jeito?”.
O caso lembra aquilo que
poderíamos pensar de outro Prêmio Nobel, V. S. Naipaul — para quem o tema do deslocamento, do não-lugar e
do estranhamento foram igualmente inescapáveis. Deliberadamente entonando as
palavras como se fosse um colonizador inglês do século XIX, Naipaul produziu
uma dissonância inigualável entre sua imagem (Naipaul tinha origem indiana),
sua nacionalidade — nascido no Caribe, em Trinidade Tobago — e sua voz1.
O que desejo destacar aqui é o fato desses dois sujeitos, cujas trajetórias
foram muito distintas, terem encontrado na língua inglesa não apenas sucesso
literário (não necessariamente financeiro), mas um lugar onde produzir aquilo
que não puderam em outras línguas (tanto Brodsky quanto Naipaul eram versados
em outros idiomas; o inglês nunca foi um imperativo). A escolha do inglês como
meio de produção de suas literaturas pode estar mais ligada ao caráter imperial
que essa língua assumiu no século XX do que à opção subjetiva desses autores.
Sobre a ideia de império, por acaso (ou não), ambos escreveram direta e
indiretamente durante suas vidas. Enquanto esse não é um estudo comparativo,
continuemos aqui com o russo.
Numa análise do (na verdade, uma
aula universitária sobre o) poema “September 1, 1939”, de W. H. Auden, Brodsky
comenta os primeiros versos como uma tentativa de estabelecer um lugar (talvez
um entre-lugar) nessas duas formas de língua inglesa (BRODSKY, 1986, p.
304-356). A admiração que Brodsky sentia pelo poeta é explícita no ensaio “To
Please a Shadow” (BRODSKY, 1986, p. 357-383). No mesmo ensaio, ele ressalta o
desejo daquele de ser uma espécie de Goethe atlântico, onde “Goethe” é menos
importante que “atlântico”. Pois, mais importante que o sujeito, segundo
Brodsky, é a linguagem e os caminhos para os quais ela carrega o escritor, e
consequentemente, carrega a si mesma através do tempo histórico. É a linguagem
que oferece ao presente a sua condição temporal, a consciência da existência de
um passado materializado em formas arquitetônicas ou poéticas, como em “A Guide
to a Renamed City” (BRODSKY, 1986, p. 69-94). E justamente nessa consciência da
linguagem enquanto continuidade do passado no presente é onde Brodsky parece
ter encontrado W. H. Auden (ao menos, nas suas predileções pela poesia rimada,
formalmente tradicional): menor o Eu, maior a linguagem que fala através
dos sujeitos.
Não nos parece exagero dizer que a
admiração sentida por Auden — talvez mais pela coragem de assumir a metamorfose
de sua língua materna do que pela sua poesia — faz-se presente na forma como o
poeta russo pronuncia as palavras em inglês. Não que o faça de forma
consciente, mas o simples fato de ter aceitado a língua inglesa na pronúncia
que adotou demonstra a decisão por um duplo caminho: como Sontag anotou
(veremos isso a seguir), existia nele o desejo de integrar-se e impor-se na
sociedade estadunidense. Esse desejo de falar com o outro (e quem seria mais “o
outro” para um russo-soviético do que os estadunidenses durante a Guerra
Fria?), impondo-se gentilmente, aceitando-os sem ceder suas referências
culturais é justamente o que Brodsky elogia em Auden.
É interessante que Brodsky comente
elogiosamente um caráter imperial na poesia de Auden. Ele mesmo saído da União
Soviética — que, se não podemos chamar de um estado imperial, certamente
podemos falar em proporções imperiais e práticas imperialistas em relação aos
estados vizinhos —, em seguida tornando-se morador dos Estados Unidos, teve ele
mesmo algo como uma “linguagem imperial” na sua poesia.
Dois anos depois do falecimento do
poeta, Susan Sontag publicou um pequeno ensaio no qual toca nesse ponto:
Brodsky teria “permanecido visceral e expressivamente russo”, mas haveria nele
também um esforço “de fato generoso” de se adaptar aos americanos, assim como
de impor-se a eles. E continua:
“Tal adaptabilidade, tal
gentileza, pode até ser chamada de cosmopolitismo. Mas o verdadeiro
cosmopolitismo é menos uma questão da relação com o lugar do que com o tempo,
em especial com o passado (que é, pura e simplesmente, muitíssimo maior que o
presente). Isso nada tem em comum com aquela relação sentimental com o passado
chamada de nostalgia. Severa com aquele que a adota, trata-se de uma relação
que reconhece o passado como fonte de padrões, padrões mais elevados que os
oferecidos pelo presente. A pessoa deve escrever não para satisfazer seus contemporâneos
mas seus antecessores, afirmou Brodsky muitas vezes” (SONTAG, 2005, p. 424).
A longa citação acima, apesar de
ter pouco ou nada a ver com definições do conceito de império provindas da
filosofia ou ciência política, tem ao menos a vantagem de tornar uma coisa
clara: Sontag afirma que “os impérios nunca deixaram de estimular sua
capacidade de associação e de generalização aceleradas (…) A primeira, e no fim
a única, forma defensável de cosmopolitismo consiste em ser um cidadão do
império (SONTAG, 2005, p. 424)”. Esse império tem muito pouco a ver com um
formato institucional ou político, ele é materialmente linguístico e por isso é
concreto, histórico. Ele é explícito na sua aula sobre W. H. Auden: “impérios
não mantém-se unidos por forças políticas ou militares, mas por linguagens2”
Sem exageros, a literatura aparece a verdadeira protagonista na História
humana; suas formas e tradições literárias produzidas por gerações anteriores
de escritores são absorvidas no presente, através do trabalho de leitura e
transmitidos na cultura geral dos povos, mas sua continuidade depende dessa
figura essencial que é o poeta: essa é a figura responsável pela escrita da
língua, preservação de formas e ritmos.
Seria incorreto dizer que o
entendimento de Brodsky (2016) a respeito da História ou da literatura é
conservadora? Antes de buscarmos uma resposta (ainda que superficial), é
desejável lembrar duas coisas: ele inicia uma conferência sobre o lugar do
escritor exilado no mundo (isso durante o fim do século XX) lembrando que os
verdadeiros exilados são os milhares de cidadãos do terceiro mundo, saídos de
seus estados de origem por conta de guerras, fomes, perseguições, ameaças de
genocídios etc. Isso, contudo, para terminar fazendo um elogio da literatura e
do trabalho do escritor, uma vez que somente eles seriam capazes, como sempre
foi, de conduzir (ainda que inconscientemente) um processo civilizatório no mundo
contemporâneo.
O trabalho do poeta (ou do
escritor em geral) não é exatamente produzir, mas conservar um processo já
instaurado desde a presença do primeiro homem.
Mas, é possível evitar a pergunta: o que pode fazer de realmente
concreto a literatura — ao menos a literatura da maneira como Brodsky a entende
— num mundo como o nosso? Sem querer
voltar à famosa afirmação adorniana de que nenhuma poesia é possível depois de
Auschwitz, poderíamos perguntar se Brodsky não é ingênuo ao esperar da poesia a
verdadeira resposta para o contemporâneo.
Num outro vídeo, disponibilizado também no YouTube, Brodsky lê o poema “A Song”.
É absolutamente impossível definir o lugar de onde sai aquela entonação; ela
parece mesmo refletir a falta de lugar fixo que constitui o próprio Brodsky e
sua poética. Não é exatamente a pronúncia estereotipada do leste europeu (que
conhecemos quase sempre como violões nos blockbusters americanos),
porque guarda algo de acadêmico, intelectual. Mas ela soa exatamente como se
fosse de alguém de fora. E esse “de fora” é justamente o que constitui não apenas
condição do poeta enquanto sujeito concreto no mundo — um exilado russo morando
nos Estados Unidos até o dia de sua morte — mas também a condição do poeta
enquanto tal.
Em Kafka: por uma literatura
menor (2018), Deleuze e Guattari insistem na possibilidade de pensar a
língua oficial como o lugar da territorialização, mas de dentro do qual pode
sempre ser produzida uma língua menor, ou seja, um processo de
desterritorialização. Exílio de dentro da linguagem: esse também não é
ponto de partida, ainda que tome uma direção oposta no que diz respeito à
grandeza da literatura, de Joseph Brodsky?
Para Deleuze e Guattari (2011),
parece mesmo que são o nomadismo de pensamento e a menoridade do sujeito que
produzem: a diferença, ou a linha de fuga em vez da repetição, da
reprodução da tradição. Contra a tentação de deixar-se levar pelo imediato,
Brodsky vê na tradição — mais até do que na História — literária o lugar que dá
sentido e vida à literatura (e portanto, ao mundo) no tempo presente.
Uma vez que apresentamos essas
duas conclusões tão diferentes, acreditamos válido seguir com mais um
comentário a respeito de um objeto em comum: a literatura estadunidense. Em Crítica
e Clínica, Deleuze argumentou em favor de uma diferenciação relevante
encontrada na literatura estadunidense em relação àquela produzida no
continente europeu. Essa diferenciação seria num grau que somente a literatura
russa do século XIX lhe igualaria. Não será possível discutir com profundidade
o problema nesse ensaio, mas caberia aqui anotar alguns pontos de encontro
É interessante que Brodsky insista
em chamar os Estados Unidos de democracia — e isso provavelmente se deve a sua
opção de reduzir o entendimento sobre as formas de governo entre democracias e
tiranias — uma vez que, para ele, toda grande literatura está relacionada a
algum império. Se consideramos que a ascensão da literatura estadunidense
moderna começa na segunda metade do século XIX e encontra seu auge no século XX
(desde Melville e Twain, até Hemingway e Faulkner, por exemplo), ela segue
justamente a consolidação da política imperialista do país. É bastante
surpreendentemente que justamente essa literatura tenha tido sua relevância
dentro da União Soviética durante a juventude de Brodsky (ainda que a
perseguição aos tradutores e editores de textos norte-americanos tenha sido
comentada); chega mesmo a comentar que uma discussão Faulkner vs. Hemingway
(bastante comum nos Estados Unidos durante o mesmo período) poderia levar ao
fim de uma amizade.
Império, totalitarismo, tirania e
democracia são termos utilizados de forma nada rigorosa por Brodsky; seu
interesse pela precisão nas discussões políticas é muito pouco. Contudo, vale
aqui nos perguntarmos se a própria figura de Brodsky não oferece um lugar
bastante especial dentro da literatura do século XX para quem deseja se perguntar
dos sentidos do mundo pós-1989 (ou seja, o da queda oficial do comunismo
soviético) — sentidos que, se a literatura não pode sozinha nos dar, pode ao
menos funcionar como lanterna durante a busca.
O mesmo não acontece com a
filosofia, ao menos como ela aparece em Brodsky. Parece mesmo que, ao decidir inverter uma
frase de Karl Marx, utilizada como slogan generalizado pelo governo durante sua
juventude soviética, Brodsky apresenta o limite que dá ao pensamento
filosófico. Trata-se aqui, a meu ver, de um antigo problema.
Platão pensava a poesia como
imitação (subsequentemente, como uma espécie de falsificação), tornando o poeta
uma figura bastante suspeita na sua República. A possibilidade de
expulsão (e consequentemente, de viver como exilado) estava dada desde já, no
gérmen do pensamento filosófico ocidental. Ainda que tenha sido Sócrates o
personagem principal da trama platônica sobre o exílio (senão da cidade, da
vida mesma), é o poeta quem fica sob os olhares vigilantes no seu principal
livro.
Nessa improvável contraposição
entre Platão e Brodsky a respeito da poesia, talvez seja preciso dizer que o
segundo concordaria com a sua sentença. Se, para o russo, é a linguagem a
verdadeira condutora da poesia (e, em última instância, do próprio trabalho do
poeta), então ela não segue e jamais obedecerá quaisquer princípios éticos. Ela
não tem ou deve ter compromissos com a verossimilhança, com a moral, ou com
qualquer programa político: seu único compromisso é consigo mesma, seu eterno
devir. Aquele que se exila nela, exila-se não só de sua cidade — entendida aqui
como estado-nação — mas também da língua oficial desse estado.
Brodsky chega a pensar que talvez
um governante deveria ser escolhido por suas leituras e não pelas suas
concepções a respeito da política estatal, relações internacionais, economia…
questões sempre filosóficas, em última instância. Ao invés do governante
próximo da filosofia, como recomendariam Platão ou Kant, Brodsky quer o
governante leitor de clássicos da literatura. Tamanha ingenuidade, senão pura
polêmica, coloca Brodsky num lugar interessante: ou acredita piamente na
autonomia da linguagem como força capaz de conduzir a si mesma na realidade, ou
demonstra uma boa razão para ter se tornado poeta e não economista político.
Essa é a importância dada pelo poeta à literatura: a impossibilidade da
barbárie e, consequentemente, da tirania.
Notas
1 Ver, por exemplo, seu discurso de aceitação do Premio Nobel de Literatura em 2001.
2 Tradução livre (minha) de “empires
are held together by neither political nor military forces but by languages” (BRODSKY, Joseph, 1986, p. 309).
Bibliografia
BRODSKY, Joseph. Sobre o Exílio. Belo
Horizonte/ Veneza: Editora Âyiné, 2016
BRODSKY, Joseph. Less Than One: selected
essays. Nova York: Farrar Straus Giroux, 1986.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI,
Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011, vol. 2.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica.
São Paulo: Editora 34, 2011.
SONTAG, Susan. Questão de ênfase:
ensaios. São Paulo: Companhia das Letras. 2005
Comentários