Fernando Pessoa: empregado de escritório, ocultista, galáxia de escritores

Por Benjamin Moser

Fernando Pessoa, aprox. 1915. Arquivo: Casa Fernando Pessoa.


 
O surgimento de Fernando Pessoa como um dos grandes escritores modernos do mundo, merecedor da monumental nova biografia de Richard Zenith, levou quase um século para acontecer. Quando Pessoa morreu em 1935, sua família encontrou um dos tesouros literários mais sensacionais que veio à luz desde que Lavinia Dickinson descobriu 40 cadernos na arca de sua irmã falecida Emily. No típico e simples baú dos utilizados para guardar cobertores ou casacos de inverno, havia 25.000 páginas de escritos.
 
Alguns desses trabalhos estavam concluídos. A maioria não. Era difícil saber o que fazer com esse legado, ou mesmo o que era. Primeiramente, a caligrafia de Pessoa era notoriamente ruim. Escreveu em português e inglês, fruto de uma infância sul-africana. Mas o mais misterioso é que ele não parecia ser uma pessoa sozinha. Ele foi toda uma galáxia de escritores — heterônimos, como os chamava, com personalidades totalmente diferentes e diferentes, muitas vezes radicalmente conflitantes, visões sobre poesia, estilo, natureza, política e antiguidade. Se todas as criações fossem do homem chamado Fernando Pessoa, a variedade das dezenas de heterônimos tornava difícil dizer quem era o próprio Pessoa.
 
Quando a sua obra-prima em prosa, o Livro do desassossego, foi publicada em português — o que só aconteceu em 1982 — a edição imediatamente tornou-se inevitavelmente polêmica. Alguns questionaram a organização dos editores das centenas de fragmentos que compõem o livro inclassificável. Outros tentaram distinguir entre os escritos de Bernardo Soares, o autor professo das passagens posteriores, as de Vicente Guedes, quem iniciou a obra, e as do próprio Pessoa. Eram perguntas mais difíceis de responder do que pareciam — porque tecnicamente, claro, Soares, Guedes e Pessoa eram a mesma pessoa.
 
Se havia muita coisa inescrutável em Pessoa, uma, à medida que surgiam esses restos, não era: ele carregava aquele algo indescritível que só os maiores gênios possuem. Seu brilho singular era ainda mais notável porque nada do lado de fora sugeria isso. À sua morte, era um escritor de renome estritamente local que havia publicado em vida um único livro de poesia em língua portuguesa. Foi um funcionário de escritório comum que, depois do seu regresso da África em 1905 — o seu padrasto era cônsul em Durban — nunca mais saiu de Portugal e, aliás, dificilmente se aventurou mais de uma hora fora de Lisboa. No entanto, ele acabou por ser um mundo inteiro de riqueza desconcertante, um mestre (ou mestres) excêntrico que inevitavelmente atraiu biógrafos. Eles começaram a vasculhar sua vida logo após sua morte. A primeira biografia apareceu em 1950, já com 700 páginas. O seu autor, João Gaspar Simões, escreveu que quando conheceu Pessoa pela primeira vez, “ficou impressionado com a forma como os seus pés mal pareciam tocar o solo, como se estivesse suspenso por um fio preso a um prego invisível”.
 
Se algumas figuras ficam borradas com o passar do tempo, Pessoa fica cada vez mais nítido. Foi necessário tempo para trazê-lo de volta ao chão — para montar uma imagem completa do conteúdo de seu baú. Zenith, um estadunidense residente em Lisboa, trouxe a tarefa para si e construiu um vasto conhecimento fruto de mais de 30 anos de publicação, tradução e promoção do trabalho do seu assunto; Pessoa, que teve poucas relações íntimas na vida, teve a sorte encontrar este amigo póstumo. O livro de Zenith é longo, embora não muito mais longo do que a biografia publicada há 71 anos, e se inclui fatos que já eram conhecidos, bem como fatos que vieram à tona, seus verdadeiros méritos estão noutra parte.
 
O primeiro pode ser em relação à ambição de Pessoa. Ao contrário de Emily Dickinson, que parece genuinamente indiferente à sobrevivência da sua obra, Pessoa queria ser lido. Ele estava quase obcecado com esse problema, constantemente desenhando planos para publicação, começando revistas (as mais bem-sucedidas duraram duas edições) para seu próprio trabalho e até mesmo, numa busca desesperada para se tornar um editor, esbanjando uma bela herança que teria libertado ele de anos pagando aluguel. Era ambicioso, às vezes ao ponto da grandiosidade. No seu primeiro ensaio crítico publicado, intitulado “A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada”, anuncia a chegada de um Grande Poeta para superar Luís de Camões; Zenith escreve: “Não mencionou que este presumível Grande Poeta era ele próprio.”
 
A segunda conquista do livro é não ignorar a homossexualização de Pessoa. Há muito que é óbvio para os leitores gays que Pessoa era um deles. (Quantos homens heterossexuais escrevem longos poemas lacrimejantes sobre Adriano e Antinoo?) Sua orientação sempre foi escondida — pelos motivos usuais, mas também porque seus relacionamentos eram platônicos; Zenith nos diz que ele morreu virgem. Outra razão pode ser que a imagem popular de Pessoa, derivada de um punhado de fotografias escrupulosamente inexpressivas, torna difícil associá-lo a qualquer tipo de sexualidade. Zenith traz uma compreensão diferenciada para esta questão e descreve como o poeta finalmente elevou seus anseios eróticos a uma castidade mística.
 
O início do século XX foi tomado de fascínio pelo oculto, pelo paranormal, teosofia, Rosacrucianismo, cabala, sessões espíritas, médiuns, astrologia e sonhos; se a maioria das produções que emergiram desse movimento agora parecem datadas na melhor das hipóteses, Zenith mostra como Pessoa transformou um moderno interesse amador pelo ocultismo numa arte duradoura. Para ele, os heterônimos não foram só inventados quanto se manifestaram — como os mortos-vivos numa bola de cristal ou uma alma ancestral conjurada de um tabuleiro Ouija — posicionados em algum lugar entre o céu e a terra. Não exatamente reais, mas também não falsas, essas criações têm, em vez disso, a realidade elevada pela literatura.
 
A luta do poeta com sua sexualidade, sua incapacidade de terminar projetos, suas oscilações entre a grandiosidade e a depressão, seu senso de identidade fragmentada: tudo isso soa terrivelmente familiar para qualquer pessoa que estudou o alcoolismo. O mesmo acontece, é claro, com a morte de Pessoa aos 47 anos, já velho, com o corpo destruído pela bebida. Ainda assim, em um livro repleto de considerações psicológicas altamente fundamentadas, Zenith evita a especulação. Ele chama o fracasso de Pessoa em publicar de “inércia”, por exemplo. Mas Pessoa era tudo menos inerte; ele era alcoólatra. O fato de Zenith evitar a questão é, infelizmente, muito comum na biografia contemporânea. Se o tabu em torno da homossexualidade é de alguma maneira quebrado, o tabu em torno do vício permanece.
 
O que resta, também, e o que importa, é o trabalho. Zenith descreve como “uma grande cidade cada vez mais não construída, porque o construtor estava tão ocupado lançando as bases para novas estruturas que quase nada se elevava mais do que um ou dois andares inacabados”. Isso é correto. Ao contrário de tantos escritores, que construíram uma casa bem mobiliada ou até mesmo um bairro, Pessoa realmente construiu uma cidade inteira. Incompleta — hierática — caótica: mesmo assim uma cidade. Era uma cidade que precisava de um guia. Graças a Zenith, finalmente tem um.

* Este texto é a tradução livre para “Fernando Pessoa: Office Worker, Occultist, Galaxy of Writers”, publicado aqui no New York Times
 

Comentários

c.eliseu disse…
Não chega ser grande conhecedor de C. Lispector, escreveu ainda um belo texto sobre F. Pessoa!

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