Fernando Pessoa: empregado de escritório, ocultista, galáxia de escritores
Por Benjamin Moser
O surgimento de Fernando Pessoa
como um dos grandes escritores modernos do mundo, merecedor da monumental nova
biografia de Richard Zenith, levou quase um século para acontecer. Quando
Pessoa morreu em 1935, sua família encontrou um dos tesouros literários mais
sensacionais que veio à luz desde que Lavinia Dickinson descobriu 40 cadernos na
arca de sua irmã falecida Emily. No típico e simples baú dos utilizados para
guardar cobertores ou casacos de inverno, havia 25.000 páginas de escritos.
Alguns desses trabalhos estavam
concluídos. A maioria não. Era difícil saber o que fazer com esse legado, ou
mesmo o que era. Primeiramente, a caligrafia de Pessoa era notoriamente ruim.
Escreveu em português e inglês, fruto de uma infância sul-africana. Mas o mais
misterioso é que ele não parecia ser uma pessoa sozinha. Ele foi toda uma
galáxia de escritores — heterônimos, como os chamava, com personalidades
totalmente diferentes e diferentes, muitas vezes radicalmente conflitantes, visões
sobre poesia, estilo, natureza, política e antiguidade. Se todas as criações fossem
do homem chamado Fernando Pessoa, a variedade das dezenas de heterônimos
tornava difícil dizer quem era o próprio Pessoa.
Quando a sua obra-prima em prosa, o
Livro do desassossego, foi publicada em português — o que só aconteceu em
1982 — a edição imediatamente tornou-se inevitavelmente polêmica. Alguns
questionaram a organização dos editores das centenas de fragmentos que compõem
o livro inclassificável. Outros tentaram distinguir entre os escritos de Bernardo
Soares, o autor professo das passagens posteriores, as de Vicente Guedes, quem
iniciou a obra, e as do próprio Pessoa. Eram perguntas mais difíceis de
responder do que pareciam — porque tecnicamente, claro, Soares, Guedes e Pessoa
eram a mesma pessoa.
Se havia muita coisa inescrutável
em Pessoa, uma, à medida que surgiam esses restos, não era: ele carregava
aquele algo indescritível que só os maiores gênios possuem. Seu brilho singular
era ainda mais notável porque nada do lado de fora sugeria isso. À sua morte,
era um escritor de renome estritamente local que havia publicado em vida um
único livro de poesia em língua portuguesa. Foi um funcionário de escritório comum
que, depois do seu regresso da África em 1905 — o seu padrasto era cônsul em
Durban — nunca mais saiu de Portugal e, aliás, dificilmente se aventurou mais
de uma hora fora de Lisboa. No entanto, ele acabou por ser um mundo inteiro de
riqueza desconcertante, um mestre (ou mestres) excêntrico que inevitavelmente
atraiu biógrafos. Eles começaram a vasculhar sua vida logo após sua morte. A
primeira biografia apareceu em 1950, já com 700 páginas. O seu autor, João
Gaspar Simões, escreveu que quando conheceu Pessoa pela primeira vez, “ficou
impressionado com a forma como os seus pés mal pareciam tocar o solo, como se
estivesse suspenso por um fio preso a um prego invisível”.
Se algumas figuras ficam borradas
com o passar do tempo, Pessoa fica cada vez mais nítido. Foi necessário tempo
para trazê-lo de volta ao chão — para montar uma imagem completa do conteúdo de
seu baú. Zenith, um estadunidense residente em Lisboa, trouxe a tarefa para si
e construiu um vasto conhecimento fruto de mais de 30 anos de publicação,
tradução e promoção do trabalho do seu assunto; Pessoa, que teve poucas
relações íntimas na vida, teve a sorte encontrar este amigo póstumo. O livro de
Zenith é longo, embora não muito mais longo do que a biografia publicada há 71
anos, e se inclui fatos que já eram conhecidos, bem como fatos que vieram à
tona, seus verdadeiros méritos estão noutra parte.
O primeiro pode ser em relação à
ambição de Pessoa. Ao contrário de Emily Dickinson, que parece genuinamente
indiferente à sobrevivência da sua obra, Pessoa queria ser lido. Ele estava
quase obcecado com esse problema, constantemente desenhando planos para
publicação, começando revistas (as mais bem-sucedidas duraram duas edições)
para seu próprio trabalho e até mesmo, numa busca desesperada para se tornar um
editor, esbanjando uma bela herança que teria libertado ele de anos pagando
aluguel. Era ambicioso, às vezes ao ponto da grandiosidade. No seu primeiro
ensaio crítico publicado, intitulado “A nova poesia portuguesa sociologicamente
considerada”, anuncia a chegada de um Grande Poeta para superar Luís de Camões;
Zenith escreve: “Não mencionou que este presumível Grande Poeta era ele
próprio.”
A segunda conquista do livro é não
ignorar a homossexualização de Pessoa. Há muito que é óbvio para os leitores
gays que Pessoa era um deles. (Quantos homens heterossexuais escrevem longos
poemas lacrimejantes sobre Adriano e Antinoo?) Sua orientação sempre foi
escondida — pelos motivos usuais, mas também porque seus relacionamentos eram
platônicos; Zenith nos diz que ele morreu virgem. Outra razão pode ser que a
imagem popular de Pessoa, derivada de um punhado de fotografias
escrupulosamente inexpressivas, torna difícil associá-lo a qualquer tipo de
sexualidade. Zenith traz uma compreensão diferenciada para esta questão e descreve
como o poeta finalmente elevou seus anseios eróticos a uma castidade mística.
O início do século XX foi tomado
de fascínio pelo oculto, pelo paranormal, teosofia, Rosacrucianismo, cabala,
sessões espíritas, médiuns, astrologia e sonhos; se a maioria das produções que
emergiram desse movimento agora parecem datadas na melhor das hipóteses, Zenith
mostra como Pessoa transformou um moderno interesse amador pelo ocultismo numa
arte duradoura. Para ele, os heterônimos não foram só inventados quanto se
manifestaram — como os mortos-vivos numa bola de cristal ou uma alma ancestral
conjurada de um tabuleiro Ouija — posicionados em algum lugar entre o céu e a
terra. Não exatamente reais, mas também não falsas, essas criações têm, em vez
disso, a realidade elevada pela literatura.
A luta do poeta com sua
sexualidade, sua incapacidade de terminar projetos, suas oscilações entre a
grandiosidade e a depressão, seu senso de identidade fragmentada: tudo isso soa
terrivelmente familiar para qualquer pessoa que estudou o alcoolismo. O mesmo
acontece, é claro, com a morte de Pessoa aos 47 anos, já velho, com o corpo
destruído pela bebida. Ainda assim, em um livro repleto de considerações psicológicas
altamente fundamentadas, Zenith evita a especulação. Ele chama o fracasso de
Pessoa em publicar de “inércia”, por exemplo. Mas Pessoa era tudo menos inerte;
ele era alcoólatra. O fato de Zenith evitar a questão é, infelizmente, muito
comum na biografia contemporânea. Se o tabu em torno da homossexualidade é de
alguma maneira quebrado, o tabu em torno do vício permanece.
O que resta, também, e o que
importa, é o trabalho. Zenith descreve como “uma grande cidade cada vez mais
não construída, porque o construtor estava tão ocupado lançando as bases para
novas estruturas que quase nada se elevava mais do que um ou dois andares
inacabados”. Isso é correto. Ao contrário de tantos escritores, que construíram
uma casa bem mobiliada ou até mesmo um bairro, Pessoa realmente construiu uma
cidade inteira. Incompleta — hierática — caótica: mesmo assim uma cidade. Era
uma cidade que precisava de um guia. Graças a Zenith, finalmente tem um.
* Este texto é a tradução livre para “Fernando Pessoa: Office Worker, Occultist, Galaxy of Writers”, publicado aqui no New York Times.
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