Extraordinários e malditos
Por Laura Fernández
É uma noite de inverno em Nova
York. No reservado de um pequeno bar subterrâneo na North Square, que serve
coquetéis com o nome da mulher que urbanisticamente salvou Manhattan, Jane
Jacobs, A. M. Homes, a escritora, fala sobre sua filha adolescente e Stanley
Elkin. Ela diz sobre sua filha que está preocupada porque não sabe realmente o
que se passa em sua cabeça. É um mistério, diz. E algo complicado, porque tem
amigos complicados. Sobre Stanley, diz que também era um cara complicado, mas o
que fazia ia me agradar porque era “muito engraçado”. “Ele era do Brooklyn”, diz.
“Como Gilbert Sorrentino”, acrescenta também. Quase nunca ouvi falar de nenhum
deles.
Pesquiso-os. Compro todos os
livros de cada um deles que consigo encontrar. Descubro que o primeiro nasceu
em 1929 e que o segundo nasceu um ano depois. Imagino suas mães cruzando-se com
eles em carrinhos de bebê pelas ruas do Brooklyn. Fantasio que se viram tantas
vezes no supermercado que começaram a se reconhecer e se cumprimentar. Elas não
sabem que os que esperneiam aí dentro, cada um nos seus carrinhos, um dia
tentarão quebrar tudo o que tocam escrevendo, de formas bem diferentes, mas igualmente
exuberantes e incorretamente malditas. E então eu os imagino os dois
encontrando-se coincidentemente em alguma biblioteca? Não, porque os Elkin se
mudaram para Chicago logo cedo.
E, no entanto, Elkin voltava a
Nova Jersey com tanta frequência — ele passou os verões em uma colônia de
férias judaica — que muitas de suas histórias se passam em Nova York. Seu senso
de humor é extremamente negro, macabro. Um bom exemplo disso é o incorretamente
delirante Magic Kingdom. O seu protagonista é um pai que acaba de perder
um filho e leva as sete crianças doentes para a Disney World.
As crianças estão morrendo de
todos os tipos de doenças raras. Há alguém que já é tão velho quanto seria o
mais velho de seus tataravós. Bale, um amante da vida — “Só os loucos acreditam
que a vida é difícil. Dura? Sim, é mais macia que um pijama de seda” —, quer
que essas crianças aproveitem o que lhes resta dela como marajás, como seu
filho não pôde — apesar de que este morreu sendo discretamente famoso por sua
doença, e feliz, por acreditar que o fariam uma escultura sua na casa de Madame
Tussaud —, morreu em meio a incontáveis testes absurdos. Elkin atira, do
aparente centro da mais incorreta incorreção, um agitado e invasivo deleite
estilístico, paradoxalmente cheio de vida.
“Um escritor que se preocupa com o
politicamente correto será, com toda probabilidade, incapaz de escrever sátiras,
porque a sátira, por natureza, ofende alguém ou algo”, disse Gilbert Sorrentino
em 1994, ele, sem dúvida, a julgar por histórias como a majestosa, lúdica e
perfeita “A dignidade do trabalho”, o professor mais lúcido de David Foster
Wallace — que acabou se perdendo, às vezes, numa frondosidade —. e por sua vez,
o suposto filho estadunidense do genial Flann O’Brien. Sorrentino, que morreu
em 2006, deixou uma série de títulos formalmente expansivos e suculentos
absurdos, tal como os vinte contos recentemente resgatados em The Moon in its
Flight.
Gilbert Sorrentino. Foto: Green Integer |
Ao contrário de Elkin, Sorrentino
estava onde deveria quando deveria, mas evitou sair em qualquer tipo de foto.
Em outras palavras, vadeava com os beatniks — foi amigo de um já velhíssimo
William Carlos Williams, o poeta sem o qual eles não teriam existido —, e transitava
por todos os movimentos poéticos da época — o Black Mountain ou os
projetivistas — e, é claro, pelo inevitavelmente desarticulado pós-modernismo
narrativo — os Gaddis, Barth, Coover, Vonnegut, Barthelme, Pynchon. Se situo,
quem sabe se conscienciosamente, à margem das margens, algo que o próprio Elkin
fez sem querer. E só por isso o mundo nunca disse o suficiente sobre um ou
outro.
Ou seja, hoje é difícil encontrar
uma entrevista com qualquer um dos dois em uma publicação de classificação
superior a Brooklyn Rail — e não é nem mesmo uma entrevista quando parece
que faz isso, é um artigo escrito por um aluno de um deles, neste caso,
Sorrentino — mas quando termina, o que cada um deles diz sobre seu trabalho é
soberbamente lúcido. Por quê? Porque os únicos que se aproximaram deles sabiam
o que estavam enfrentando. É por isso que cada pequeno artigo, ou punhado de
perguntas, é quase uma tese sobre o seu trabalho. Ou seja, podem ter sido pouco
lidos, mas devem ter se sentido bem compreendidos. “O espetáculo não deve ser
confundido com escrita”, disse Sorrentino certa vez.
“A única coisa com que um escritor
deve se preocupar, se o escritor é entendido como um artista, é fazer arte. E deveria
poder se permitir ao luxo de fazê-lo da mesma maneira que o físico faz física e
o cirurgião opera. Se o preocupa em se tornar uma espécie de anacronismo, deveria
parar de escrever e se dedicar a outra coisa”, disse também. Ele falou que
deveria ser dado como certo que este escritor não iria vender muito — chegou a
dizer que não poderia ultrapassar 1.500 cópias, o que nos Estados Unidos é
quase um número infinitesimal — porque às vezes, ou quase sempre, isso acontecia
com a arte. Não houve menção ao fato de que os destinatários provavelmente se
tornariam escritores.
Escritores que poderiam, tirando
isso daqui e dali, se tornarem escritores que todos leriam e respeitariam em
todos os lugares. Como dois de seus alunos verdadeiros — sim, Sorrentino
lecionou em Stanford e em algumas outras universidades e era, lembra um certo
Eugene Lim, um professor “apaixonado” que falava principalmente sobre outros
escritores —, Jeffrey Eugenides e Jenny Offill. Em décadas diferentes, ambos
colocaram o mundo (editorial) a seus pés e, embora de maneiras diferentes, a
influência da desconstrução formal de Sorrentino é evidente e necessária.
Parece que os moldou, permitindo-lhes escolher um molde diferente em cada caso.
A mesma coisa aconteceu com Hubert
Selby Jr. Na época em que Selby Jr. estava começando a escrever, Sorrentino
estava editando uma revista, a Neon. Como eram amigos desde criança,
Sorrentino sempre olhava o que Hubert escrevia. E isso o encorajou a decompor,
como fez, as histórias — que de alguma forma se devoram entre si — daquele que
acabou sendo seu primeiro e mais bem-sucedido romance, Última saída para o
Brooklyn. Sorrentino estava convencido de que a estrutura, ou um conjunto
de estruturas, poderia, de alguma forma, “gerar conteúdo”, tornar-se “a própria
obra”. E isso foi usado exaustivamente.
Compôs, Sorrentino, contos e
romances, romances como Aberration of Starlight, que riem da própria
ideia da composição. Que, na verdade, expõe-na, a desnuda, o que inclui o
leitor no jogo da criação de sentido. Seu gênio não é incorreto, como o de
Elkin, se há algo de pós-moderno nele, é a maneira como constrói histórias
baseadas em personagens que são sempre gigantescas — como enormes muppets
— comparados ao enredo — apenas um fio anedótico que os une — e, também, a
maneira como parece querer sair do controle sem fazer isso. Mas está igualmente
condenada.
E ainda assim Elkin quase ganhou o
National Book Award, e tem uma rara estrela da fama numa calçada de St. Louis.
Como Bale, o protagonista de Magic Kingdom, parecia constantemente se
lembrar de que tinha “poucas chances de vencer”, mas isso não o impediria de
escrever. Como nada vai impedir Bale de levar aquelas crianças para a Disney,
mesmo que o mundo não queira nem ouvir falar sobre isso. “Ele era como um
músico de jazz jorrando riffs sem parar”, disse William Gass sobre ele. Cada disparo,
um ato de redenção e, ao mesmo tempo, um caminho inexplorado. Elkin e
Sorrentino, exuberantes e malditos, e, finalmente, entre nós.
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