Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry
Por Pedro Fernandes
Os últimos dias para a resolução
de um conflito amoroso que se arrasta desde há muito quando dos primeiros
encontros dos amantes noutra vida de sentido talvez mais vivo — como é sempre
caso nas histórias de amor. É este o tempo de duração da narrativa de Debaixo
do vulcão, o principal romance do escritor inglês Malcolm Lowry, e é também
uma boa maneira de sintetizar a complexa tessitura da narrativa.
O que essa síntese denuncia, à primeira vista, parece ser a utilização do
consagrado modelo da tragédia: o drama encenado constitui apenas a parcela
superficial de uma história muito mais profunda. Acontece que este não é um
texto para teatro e o seu narrador desafia o limiar elastecendo-o até oferecer
(com altos e baixos) as minúcias dos seus protagonistas soterrados ora por
aquilo que criaram ora porque neles escasseiam certa vontade própria de,
assumindo seus defeitos, conseguirem contornar desacertos e estabelecerem certa
ordem possível que os livre do total afogamento.
E o último termo do parágrafo
anterior preenche dois sentidos: o literal e o metafórico. O fracasso dos
protagonistas em Debaixo do vulcão é preenchido continuamente pela bebida.
Das quatro figuras centrais da narrativa, o ex-cônsul Geoffrey Firmin, sua
ex-companheira Yvonne, um meio-irmão dele, Hugh, e o amigo Jacques, todos
encontram no álcool, em maior ou menor quantidade, a condição ideal de suportar
o mundo que carregam. A contínua referência à bebida irradia, entretanto, de
Geoff; para esta personagem, mais que uma maneira de seguir vivo é objeto de um
dilema entre a consciência de deixar o vício e a impossibilidade de cumpri-la.
Dessa resolução chega a depender —
ao menos é o que o próprio Firmin percebe — os planos secretamente alimentados
por Yvonne e dos quais não desistirá pela simples relutância do amante com o
vício. Depois de um longo périplo pelo mundo, seu regresso ao México se
alimenta da idealização de restauro do enlace amoroso e a condução de uma vida
feita do usual: o casamento, uma casa, a família e dedicação do casal aos seus
interesses. Embora ela não saiba ao certo quais são os seus — depois do fracasso
como atriz de Hollywood —, o do ex-cônsul é o de se dedicar a escrita de um
livro. Nos volteios imaginativos de Yvonne, ela se mostra bem ajustada ao papel
de secretária responsável pela agenda e a datilografia dos manuscritos do companheiro,
mesmo que nada saiba do trabalho.
Os dias dos acontecimentos da narrativa
assumem um valor simbólico assim como várias outras de suas expressões: o
retorno de Yvonne acontece na exata passagem dos Dia dos Mortos. Embora seu afastamento
não tenha transformado os amantes em mortos um para o outro, principalmente
para ela, quem, continuamente envia postais ou escreve cartas ao estilo de
Heloísa, correspondências que só alcançam depois da chegada de Yvonne a
Quauhnahuac, o que poderia ser o amor dos dois é arrastado para a sepultura. Assim,
é pelo menos duas as expressões desta data para a narrativa: sua força antônima
em relação às celebrações cristãs, a assumida pela cultura dos povos
mesoamericanos pré-hispânicos, que festejam entre 31 de outubro e 2 de novembro
o retorno dos mortos ao mundo dos vivos; e a primeira expressão, a de confirmação
da sepultura do laço entre Yvonne e Geoffrey.
A data permite ainda outras
implicações nos sentidos da narrativa de Debaixo do vulcão: os terríveis
episódios da guerra civil espanhola também situada no ano em questão dos
episódios romanescos, 1938; o alvorecer do nazismo e a Segunda Guerra no ano seguinte;
e o sangrento passado colonial desenrolado sob os lugares onde agora pisam
essas personagens vindas, sublinhe-se, de um país colonizador, e manifesto ainda
nos impasses entrevistos entre brancos e indígenas. Isto é, todo um espesso
magma que circula sob e entre a superfície da narração.
O principal episódio que funciona
como um dos reiterados afloramentos do passado se oferece pelo encontro entre
Hugh, Geoff e Yvonne, com o cadáver de um índio deixado à margem da estrada
quando os três viajam a Tomalín, o cenário para o estopim derradeiro da crise
amorosa. O acontecimento perturba os viajantes que não deixam de buscar uma
compreensão para o acontecimento quando se reúnem para o almoço. A situação
forjada pela letra de Malcolm Lowry é singular: entregues ao torpor dos sentidos
pelo que acabaram de vivenciar numa montaria de touros, pela bebida que volta a
corromper o volúvel senso de sobriedade do êx-consul depois do despertar
voluptuoso dos amantes para o valor do reencontro e certa atmosfera de impasse
sobre estender a viagem até Tlaxcala, como é de gosto de Geoffrey. O resultado
é que o assunto não chega a ser desenvolvido, as perguntas sobre a morte do
indígena se perdem entre interesses mais urgentes e o dilema histórico é
reduzido ao tom peremptório e rude de Firmin, numa clara demonstração de
alheamento da realidade imediata e aos dilemas sócio-históricos favorecidos pelo
duelo entre povos.
As relações com o histórico não são
gratuitas. Tudo neste romance, aliás, é perfeitamente ajustado à sua unidade e
contribui para os seus sentidos. A abertura dos amantes para a vida a dois de
Geoffrey e Yvonne tem como cenário Granada, na Espanha; Hugh, mais que homem capaz
de despertar o desejo feminil como acusa o êx-consul, é o jovem feito de outros
idealismos, o que empunha a bandeira de salvação da Espanha das garras de
Franco e outras injustiças passadas em toda parte. Dos três que vivenciam o
encontro com o índio morto na viagem a Tomalín é o único que demonstra acurado
interesse em descobrir as causas do fim trágico. No mais, sendo este um romance
sobre falências afetivas fica impossível deixar de perceber todo o contexto
bélico, passado, presente e por vir, como o igual produto de um fracasso civilizatório
da humanidade. Envolto no acesso feito de certo radicalismo questionável é esta
a expressão utilizada por Geoffrey numa ocasião em Tomalín quando se questiona
sobre o padecimento das nações alheias com os dilemas selvagens de outras.
Todo o imbróglio amoroso entre
Firmin e Yvonne se alimenta por extensão do mito asteca de Popocatépetl e
Iztaccíhuatl. As duas montanhas entre as mais altas do México estão ligadas por
uma extensão geográfica designada Paso de Cortés; são os dois vulcões cuja
onipresença se observa em toda a narrativa do romance de Lowry e, claro, a
partir da qual se estabelece o próprio título da obra. Diz a história asteca,
referida en passant em Debaixo do vulcão, que
Iztaccíhuatl era uma princesa apaixonada por um dos guerreiros sob a designação
de seu pai; este, desinteressado no casal, promete fazer cumprir o enlace amoroso
tão logo Popocatépetl regresse dos combates em Oaxaca. Mais tarde, ela recebe a
notícia da morte do amante e perece de desgosto. No retorno, sabedor da morte
da amada, o dissabor também arrasta o guerreiro para o fim trágico.
Além do episódio mítico, que o
leitor precisa ler o romance para descobrir se a narrativa o perfaz em sua
integridade, vale recobrar outros sentidos para a sustentação do imbróglio
amoroso conseguido por Malcolm Lowry. O Itza é a segunda montanha mexicana a possuir
glaciares permanentes, enquanto nas profundezas do seu interior repousam os
rios de lava; o Popo depois de um despertar na década de 1990 perdeu sua
geleira e passou a emitir continuamente gases — é este, aliás, o sentido do seu
designativo, montanha fumarenta. De maneira muito simplista, essas
observações se ajustam perfeitamente ao temperamento das personas dos amantes
em Debaixo do vulcão: Yvonne, oscilante entre quente e fria — fria em
relação ao ex-cônsul e quente porque presa ao desejo por reativar o abrasivo
amor do passado. Geoffrey, por sua vez, demonstra ser um orgulhoso resmungão
que na primeira tentativa de ceder aos seus impulsos interiores vê sua atitude fracassada.
Mais que perceber certos detalhes
— e são muitos num romance magistral como este — vale perceber como Malcolm
Lowry rege uma variedade de estratos de linguagem sempre equilibrando-os sem
fazer com que o ritmo do romance, entre altos e baixos, não se perca entre um
ou outro limite. Nesse aspecto o que mais chama a atenção é o trânsito entre uma
narrativa em ordem para a sua desordem restituindo pela camada da escrita a
alteração dos estados de consciência de Geoffrey Firmin. Quer dizer, embora
seja aquele narrador universal que conta a história, esta é continuamente infiltrada
pelo estágio interior das suas personagens e os do ex-cônsul está sempre
afetado pela presença ou ausência da bebida. Nesses estágios, o romance angaria
os movimentos de uma linguagem alucinada propondo representações poéticas de
dimensões alheias ao efeito realista.
Qualquer leitor encontrará nisso
uma riqueza inquestionável. É assim com toda obra literária no sentido mais
estrito desse adjetivo. O motivo para o enredo é simples, os caminhos e o
aprofundamento formam a qualidade constitutiva de todo bom romance. Chama
atenção ainda como Malcolm Lowry manipula os mais variados campos da língua e
da linguagem para elaboração da sua obra. Para um tempo feito de simplificações
gratuitas, sempre amparadas na falsa ideia de transparência da linguagem, o contato
com uma escrita com domínio profundo dos seus muitos meandros, alarga nossa
experiência com a língua e com o mundo, isto é, cumpre a obra mais que o falado
efeito estético e, o mais caro para os dias atuais, não se submete ao veneno
raso da ideologia. É notável que um romance sobre o fracasso não seja um
fracasso. É o que parece mais válido quando o imperativo da barbárie nos despe
até mesmo daquilo que nos categoriza como humanos.
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